Mais de 7 mil cartas de Darwin digitalizadas

Darwin e Hooker trocaram cartas durante quatro décadas. A correspondência entre os dois é um material rico em história da ciência e da vida dos cientistas. (fotos: Universidade de Cambridge, Universidade da Carolina do Sul | montagem: Sofia Moutinho)



Num texto de Sobre Literatura – o primeiro, se a memória não me deixa pecar – em que busca um conceito para o termo "literatura", Umberto Eco parte do lugar geral e diz ser todo o conjunto de escritos já produzidos pela humanidade, desde uma bula de remédio a um soneto de Petrarca. É verdade que a reflexão do escritor considera literatura como qualquer coisa escrita e está certo. Quem nunca ouviu os termos "literatura médica", "literatura da história"? Fora isso, a divisória entre literaturas é coisa muito recente: se formos voltar à gênese da escrita encontraremos os textos religiosos, os tratados de filosofia ou mesmo os livros de história como pertencentes à literatura – e aqui não estou no lugar de Eco, mas me referindo à condição de arte, uma das divisões que criamos bem depois e levou à separação aquilo que é literatura de fato e o que não é. Nesse sentido, é que se pode considerar num mesmo terreno da literatura enquanto arte obras com a de Charles Darwin.

E é sobre os escritos de Darwin – não A origem das espécies – mas, o antecessor da sua obra, o que queremos tratar nessa postagem. Mais especificamente, são as cartas trocadas entre o cientista e o botânico Joseph Dalton Hooker durante 40 anos de vida de trabalho, de 1843, até a sua morte, em 1882. É que esse achado junta-se a outros materiais seus já digitalizados pela Universidade de Cambridge.

Numa época que nem era sonhada a criação de métodos de comunicação tão velozes como os que foram criados desde o surgimento do telefone (o telégrafo era a única coisa mais próxima daquilo que dispomos hoje), as cartas – guiadas por todo um conjunto de normas e usos – foram o meio através do qual muito se ensaiou o conhecimento. Até mesmo depois do advento de determinados meios, elas ainda serviram como exercício de perlaboração teórica de muitos estudiosos, que o diga, para citar um exemplo próximo sobre o qual comentamos nesta semana, as correspondências de Octavio Paz. Então, com as correspondências de Darwin não foi diferente: muito do que ele desenvolveu no clássico A origem das espécies foi amadurecido através da escrita de cartas.

É o que revela as tais correspondências agora tornadas públicas. Só o acervo de escritos entre Darwin e Hooker somam 1200 cartas, em que, além da teoria da evolução das espécies, quase de tudo o remetente comenta com seu receptor. Isto é, vão desde conversas científicas às de cunho pessoal como da negociação com editoras para a publicação de seu livro ou o pedido de apoio pessoal quando depois da morte de sua filha de seis anos de idade.

Nesse conjunto vasto de correspondências – ainda boa parte pedindo para ser analisada – a mais importante já observada pelos estudiosos é a que Darwin escreveu a Hooker em 11 de janeiro de 1844. Escrevendo de sua casa, em Kent, Darwin pergunta a Hooker sobre sementes, conchas e espécies do ártico que estavam na sua mente, desde quando fez uma de suas viagens ao continente. O manuscrito se refere a um borrão de notas que já havia elaborado dando contas de um trabalho de rumo presunçoso – após anos de pesquisa o tal trabalho do pesquisador era a gênese da teoria da evolução, publicada quinze anos depois na já referida edição A origem das espécies. Na carta Darwin antevê sua convicção de que "as espécies não são imutáveis", ideia que ele caracteriza como "confessar um assassinato".

Noutras conversas, Darwin expressa impaciência com o processo de construção de sua tese, como quando busca tratar da distribuição geográfica das árvores. Observador nato, todas as vias possíveis vão sendo desenhadas pelo teórico oferecendo ao leitor o processo de construção de um pensamento. Mais que isso, aponta que as ideias ou descobertas não nascem do acaso, como parece sondar boa parte dos que desistem da ciência pela demora em encontrar uma resposta suscetível.  

Colocado on-line este ano, o Projeto Correspondências de Darwin já arquivou mais de 7 500 cartas; entre as raridades, além dessa missiva com a gênese da Teoria da Evolução, está uma cópia do telegrama enviado para casa quando estava a bordo do Beagle. Darwin tinha 22 anos quando se juntou a uma equipe para mapear a costa da América do Sul, numa viagem que estava prevista para ser de dois anos e se estendeu por cinco anos. Há coisas inusitadas também, como a correspondência que escreveu ao seu pai assim que teve o primeiro ataque de enjoo.

Quem vê assim, pensa mesmo que Darwin poderia ter desistido logo aí ou em qualquer outra ocasião – que, como notamos, foram muitas delas – mas, o que teria sido da ciência se isso houvesse ocorrido. Além de tudo, vale ver: o valor que tem toda essa documentação para literatos e estudiosos da linguística. Atenção seja dada já de então para as formas de abreviação usadas na época como recurso para acelerar a escrita ou como economia de papel.

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