Das desleituras nas artes ou Quem pagará o enterro, se eu morrer de amores

por Lee Pontes

Mulher com livro. Pablo Picasso


Quando Aristóteles escreveu sua “Arte Poética”, não desenvolveu ao prazer do acaso critérios de juízo para definir o que é uma obra artística. Ao contrário, realizou uma leitura acurada das obras disponíveis em seu tempo e definiu-as e/ou separou-as dos textos em geral. O juízo de valor erguido tinha por base o processo de representação do mundo redefinido por uma mímese, ou seja, o que se dá pela desrealização do real com vistas à universalização do particular (deve-se entender aqui como particular o estrato retirado do mundo em um determinado tempo e num determinado espaço).

O processo de desrealização feito pela Arte (falamos aqui de arte em geral) não seria uma imitação do mundo, porém tratar-se-ia de uma perda do real para focar-se na essência do objeto de discurso concebido pela criação artística. A catarse aristotélica não se trata de uma simples purgação, embora se dê, antes, uma busca por libertação das imperfeições e impurezas existentes a fim de chegar ao sumo, ao núcleo, à base do particular que leva, assim, aos espaços universais. A criação artística faz com que o mundo (a realidade) seja um lugar possível de viver.


Amar para ler ou ler para amar?

Harold Bloom, em A anatomia da influência – Literatura como modo de vida, fala sobre amor literário, ou seja, é preciso amar a literatura. Mas em que consiste esse amor literário? O “Amor Literário” de Bloom é, simplesmente, o amor. É preciso está apaixonado pelo ato de ler, não temos muito amores e nem se dá de modo unilateral o amor. Tratar-se-ia como um processo de cristalização, como bem explicou Stendhal em “Do amor”. Pegue um galho pequeno e jogue dentro em uma mina de Salzburg. Em pouco tempo, o galho será coberto de cristais de sal. O mesmo processo se dar no amor, quanto mais exposto estamos à leitura, vamos ficando coberto de pequeno cristais de amor.  Um leitor tem seus livros favoritos, aqueles poemas que, retidos na memória, recita ao acaso. Alguns leitores, com esse que você lê, têm seus amores literários, poetas favoritos de vários períodos e nações. Quem não guarda um trecho desfeito de Drummond, uma passagem de Machado de Assis daquele conto, uma recordação de Stendhal ou sonha está na Catedral à espera de Madame Bovary. Isso é “amor literário”.

Aos 10 anos, fui dominado pela Odisseia. Passei semanas lendo e viajando. Quando me detive na tragédia de Édipo, a figura da Esfinge reinou em mim. Passado o tempo, ao ler as cartas de Horácio aos Pisões, encontrei-me com a quimera. Será mesmo impossível a união de oposições? Não tem o poeta o direito de unir os opostos, os improváveis ou não assiste a literatura o direito de ser a quimera e perguntar-te: Decifra-me ou devoro-te? É impossível uma resposta ao intertítulo.


Leitura crítica da arte como desleitura da arte

Para entender a desleitura da arte duas figuras são importantes: a Esfinge de Édipo e a Penélope da Odisseia.

A quimera não está dentro da tragédia de Sófocles, esta só aparece nas lendas como o monstro que castigava a cidade de Tebas. Ao cruzar com a Esfinge, Édipo encontra-se com seu destino e, resolvendo o enigma, faz nascer à tragédia, talvez a mais importante narrativa grega. A quimera é uma composição arbitrária, mesmo olhando para as quimeras existentes (ornitorrinco ou morcego), e encantadora por seduzir e por apresentar o contrato: decifra-me ou devoro-te. A composição da Esfinge é: o rosto feminino, o corpo de leoa e asas de águia. A quimera é a própria arte. Não trata-se de uma união de elementos ao acaso, mas a união é arbitrária, pelo fato de não existir solidariedade com o objeto a representar (Mistério ou Enigma). A sua proposição atua como a lua num eclipse, sabe-se que o sol está oculto, mas está lá. A face de mulher representa o próprio enigma, por isso seduz. O corpo de leoa revela a força, motivo pelo qual intimida. As asas de águia mostram a transitividade do ficar (pense no poema “As pombas”, de Raimundo Correia).

A Esfinge é a transitoriedade, ela não fica. Entretanto, ao fincar o toque no chão, é perenal, pois volta-se ao eterno questionar e devorar. O indivíduo, mesmo não sendo devorado pela literatura, é devorado pelas dúvidas oriundas do enigma inscrito nas entrelinhas das tramas fiadas pelo autor-tecelão. Surge a imagem de Penélope, a esposa zelosa de Odisseu, que tece e destece a mortalha/salvação de sua própria narrativa. Instala-se um paradoxo: tecer uma mortalha a fim de evitar o casamento. Para a tradição grega, o tecer é ligado aos mitos de Atena e Aracne e as Moíras. O tecer de Penélope é o seu sudário de lamentações, se concluído, significa seu fim. Casar-se seria um bem para ela, mas não é, seria mais possível abraçar a inércia do mundo, acatar o aparente destino.  

O autor-escritor tece não uma simples mortalha, mas uma salvação. Os acontecimentos são tecidos em longos anos de meditação, existe uma dívida, mas não sabe a quem deve e porque deve, apenas tece e destece. Os fios são colhidos e suas origens são as mais diversas regiões. No fim da tecelagem, tem-se uma Esfinge. Entretanto, a obra não está completa e ela não pode ser completa.

Uma das telas feitas por Elifas Andreato tendo como inspiração o poema "O haver", de Vinicius de Moraes

A arte realiza desleitura da arte. Não trata-se de uma leitura simples e fácil. Como Penélope, a arte vai refazendo o tapete, refazendo o tapete de outra Penélope, pois devorado pela Esfinge, tenta resolver o enigma instalado. Um caso de desleitura são as 14 Esfinges feitas por Elifas Andreato no poema “O haver” de Vinicius de Moraes. Não digo “esfinge”, como falava Horácio aos Pisões, em que se reuniram elementos tão diferentes, “estranho” (Leia o texto “O Estranho” de Freud) para se compor e questionar, mas no sentido de enigma oculto por imagens sobrepostas. O artista diz que devia a Vinicius, Bloom entenderia como um sentimento de angústia ao poeta-pai e pagou por meio de uma série de ilustrações ao mencionado poema. Cada quadro reflete uma dimensão pessoal da vida de ambos artistas, poema e pintura são experimentações particulares, talvez a pintura já existisse dentro do poema, cabia só que uma desleitura feita pela própria pintura.

Andreato fala de um inventário de vida retido n’O Haver e diz que partilha com o poeta-pai a necessidade de ser útil e de comprometer-se sem necessidade. Existe sim um diálogo entre ilustrações e versos, são coisas diferentes e tão próximas, coisas oriundas de um estar apaixonado pelo objeto amado. Quando amamos um texto somos capazes de interpretá-lo, compreende-lo e de remontá-lo. As ilustrações da vida, as imagens retidas nos versos de Vinicius, cores e formas, vão se delineando nas formas languidas dos versos.

A desleitura só é possível depois de muita leitura, passar pelas fases da angústia da influência e, por fim, não matar o poeta-pai. Entretanto, deve-se erguer o novo poema, mais belo, com reorientação do já dito. A originalidade é possível, deve-se, para tanto, deixar sentir a obra amada. “Resta esse diálogo cotidiano com a morte, esse fascínio pelo momento a vir, quando, emocionada ela virá me abrir a porta como uma velha amante sem saber é a minha mais nova namorada”, Vinicius de Moares.

Notas:

Sobre as ilustrações aqui comentadas a partir da obra de Vinicius, elas estão viajando o Brasil e ficam exposta na Caixa Cultural, para saber mais e conferir algumas imagens, acesse o site e confira. A exposição conta ainda com vídeos e amigos de Vinicius de Moraes.

***

Lee Pontes é jornalista e linguista. Estuda o mal na literatura no Grupo de Estudos Vertentes do Mal na Universidade Federal do Ceará. Atualmente, é bolsista CNPQ em Linguística de Texto  (UFC). A literatura surgiu na infância como forma de castigo, virou um hábito e uma forma de vida. Toma a escrita como forma de expressão superior, pois é a língua em sua potência máxima. A graduação em jornalismo foi pela Universidade Estácio de Sá e o curso de Letras é na Universidade Federal do Ceará.

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

Boletim Letras 360º #605

A vegetariana, de Han Kang

Cinco coisas que você precisa saber sobre Cem anos de solidão

Rio sangue, de Ronaldo Correia de Brito

Para lembrar João do Rio, o ficcionista

Boletim Letras 360º #596