Coisas transparentes, de Vladimir Nabokov

Por Rodrigo Fresán



Sabemos que F. Scott Fitzgerald é aquele mártir autodestrutivo que – muito além das luzes verdes em sua obra – ensina aos escritores, com sua vida atormentada por bandeiras vermelhas, a como não ser tão bons na hora em que as coisas saem inexoravelmente mal, muito pior, crack-up...

Vladimir Nabokov – ao contrário – é o melhor e mais invejável (bom) exemplo possível: a saga de um começo incerto e final MUITO feliz de um autor excêntrico que volta ao centro com um livro com nome de menina e que, sucesso desde então, lhe permite ser mais excêntrico até sua morte. Sim. Poucos escritores mais felizes consigo que o russo de nascimento mas estrangeiro universal que domou como ninguém o idioma inglês para logo trabalhá-lo como ninguém.

É regozijador a leitura que chamo indispensável para o volume Cartas para Vera (tradução livre para Letters to Véra, título ainda inédito do Brasil, editado em 2014 nos Estados Unidos pela Penguin Classics). Porque nesse conjunto de missivas está o modo como o escritor via esse universo literário que foi forjando; além do carinho expresso no colorido dos desenhos que mandava junto com as correspondências para sua companheira. Foi o contato com essa edição que me levou regressar à sua obra.

Agora bem, por qual porta entrar no Grand Hotel Nabokov para instalar-se por toda uma temporada ou para realizar apenas uma passageira escala? Há muitas opções e, confesso, hoje em dia sigo sem conseguir abrir a fechadura (e não o único nabokovista que passa por isso, Martin Amis e John Banville também fracassaram na intenção) dessa suíte de luxo que é Ada ou ardor.

Tampouco é recomendável começar a regressar sobre os passos da magnífica mas muito exigente A dádiva (um dos outros espécimes precoces escritos em sua língua materna) ou com os formidáveis experimentos sobre o ponto de vista como A verdadeira vida de Sebastian Knight, Desespero, Fogo pálido, a autobiografia alternativa Somos todos arlequins e a memoir seletiva Fala, memória. E, claro, Pnin (que deveria ser filmado por Wes Anderson) ou Lolita seriam reentradas um tanto óbvias.

Minha recomendação então é enredar-se nesse destilado tardio, o qual, em frasco enganosamente pequeno, guarda um perfume requintado (é um desses livros muito maiores por dentro que por fora) e aí está todo o Nabokov e todos os Nabokov: chama-se Coisas transparentes e foi publicado em 1972.

Nouvelle bastante incompreendida em seu tempo (“As críticas oscilam entre a mais desesperançada adoração e ao ódio mais impotente. Muito divertido”, anotou Vladimir Nabokov certa vez em seu diário). Com os anos, me parece mais um flagrante e uma iluminação sobre mundo Nabokov. Aí, de novo, a valsa espasmódica de quem se recorda e o twist lento de quem decide esquecer, a onipresença do passado e a textura do tempo, uma ninfeta volátil e mariposeante, a paixão desatada e os nós da desilusão romântica, a animação de objetos, um assassinato amoroso e fou, os sonhos como repositório nada freudiano da realidade, uma Suíça, um grande escritor espectral, a suspeita de que pode haver um além mais regido por uma inteligência superior e divinamente autoral e ex machina e, por cima de tudo e de todos, um inconfundível homo Nabokov.

O anti-herói editor e sonâmbulo corretor de provas estadunidense Hugh Person, cujo brilho opaco não supera sua resplandecente e quase oblomoviana preguiça. E cujo destino é, também inequivocamente, inequivocamente nabokoviano: abraçar a loucura para logo poder recuperar a razão. Ou abraçar a razão só para poder depois recuperar a loucura. As misteriosas últimas linhas de Coisas transparentes são, na realidade, a bem-vinda de um novo começo em outra parte, todavia distante, muito distante. Partir para poder voltar. Nada avança mais que o inverso.

Numa ocasião, um crítico apontou que o retrofututista Coisas transparentes “é um livro feio e nada adorável que começa a tocar o leitor só pela segunda vez. É, por isso, uma obra-prima”. É no que também acredito e por isso este texto. Vamos outra vez – para trás e para frente – rumo a esse lugar a que nunca devemos ir.

Ligações a esta post:
>>> Leia postagem que fizemos sobre Cartas para Vera, aqui.
>>> No Tumblr do Letras reunimos uma série de imagens dessas coloridas de Nabokov para Vera.

* Este texto é uma tradução de "'Mondo'" Nabokov", publicado no jornal El País


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