Czesław Miłosz



Czesław Miłosz nasceu em 1911 na região de Szetejnie, quando o país ainda pertencia ao Império Russo. Essa parte da geografia europeia passou por largas intervenções; essa região onde Miłosz nasceu, por exemplo, na época território da Lituânia, era uma parte da Polônia – esta que esteve dividida não só com o Império Russo, mas com a Prússia, a Áustria e até deixou de existir como Estado no fim do século XVIII e só veio ressurgir em 1919 com uma parte considerável dos antigos territórios. Ao final da Segunda Guerra Mundial as fronteiras da Polônia são deslocadas para o oeste, ficando esses importantes centros culturais poloneses sob domínio da União Soviética. Foi em Vilna, outra região polonesa, que Miłosz viveu sua juventude; interessou-se desde então pela poesia e, durante sua formação em Direito, foi um dos protagonistas do círculo Zagary que reunia poetas e leitores do gênero. O grupo vanguardista que ficou conhecido como os catastrofistas foi responsável por impulsioná-lo à publicação dos seus primeiros livros.

“Na infância nunca pensei nos versos, porque o que mais me atraía eram os mistérios da natureza e, sobretudo, a vida das aves”, confessou o escritor muitos anos depois, quando já era um dos poetas poloneses mais conhecidos. “O amor pela natureza passou quando me convenci de que, na teoria de Darwin existiam teses inquestionáveis, mas muito desagradáveis, como a luta entre as espécies”.

Miłosz fez parte da redação jornalística na rádio de Vilna, isso na mesma época quando se reunia com os catastrofistas; como dizíamos, é quando publica seus primeiros livros. Um deles, em 1933, ano de estreia literária; nesse mesmo ano organizou uma antologia de poemas de forte teor social. Estávamos antes do estopim da Segunda Guerra Mundial e antes que chegasse 1945 publicou Três invernos e no ano quando começou o conflito outro título com poemas relacionados à guerra intitulado A salvação.

Durante a guerra, já muito conhecido nos círculos literários da Polônia, participou ativamente em Varsóvia no envolvimento cultural clandestino que formava parte da resistência antinazista e e escreveu assiduamente para a imprensa. E, mesmo com todas as dificuldades publicou mais um título de poesia, O canto à independência. No período que vai de 1945 a 1949 desempenhou diversos cargos para o regime comunista polonês; foi representante cultural em missões em Washington e em Nova York e secretário na Embaixada da Polônia em Paris.

Quando, em 1951, depois de visita à Varsóvia em pleno apogeu do stalinismo, decepcionado com os rumos do comunismo ante o que se passava na Europa do Leste, declarou rompimento com o governo de seu país e pediu asilo à França – decisão que o tornou alvo de ataques dos dois lados, do regime e dos anticomunistas. Para os primeiros, era um traidor, por tornar-se inimigo aos princípios que sempre havia defendido; para os outros, também um traidor porque havia colaborado com os comunistas.

Mesmo fora de seu país teve de conviver por longo tempo com a perseguição vinda dos dois lados do poder. Período que resiste com a mesma determinação de outros intelectuais da época: não se subornar a nenhuma das duas frentes. Gil, a personagem de seu romance A tomada do poder, é exemplo para esse momento da vida do escritor; igualmente perseguido, mas tendo de trabalhar numa tradução de Tucídides porque “o Estado tinha suas razões para querer editar os clássicos, ainda que fosse em pequenas tiragens, ostentando com isso ser o continuador das civilizações anteriores”. Gil é o protótipo do homem lúcido ante uma mudança de poder que não modifica o seu uso próprio, mas simplesmente sua propriedade e é perfeitamente consciente disso. Seu problema é que deve sobreviver em meio à negligência, à substituição de uns opressores por outros opressores. “Não estou só”, diz, “também está aqui Tucídides, ao que chamam o primeiro dos historiadores, embora devo reconhecer que nossas circunstâncias tenham sido muito diferentes e que há uma profunda diferença entre o que o viu e o que eu vejo”.

Isto é, Miłosz pertence a esse tipo de intelectual cujo sentido crítico deixa fora de todo e qualquer grupo organizado, seja um partido ou um movimento literário. E há que reconhecer que entre os desse tipo se encontra alguns dos espíritos mais fortes da segunda metade do século passado. De certo modo, seu estilo de exilado não se refere apenas à nação, mas a um exílio de pensamento. A figura de Miłosz evoca o lutador solitário e insubornável capaz de inserir opiniões que o tempo e a preguiça convertem em evidências posteriores aceitáveis e aplicáveis de modo universal. Ele sabia de quanta razão tinha suas análises da realidade e que elas cairiam em ouvidos surdos até o momento em que fossem adotadas pelos representantes da intelligentsia estabelecida – da qual estava excluído. Mas, seu pensamento crítico não se reveste de rancor, e sim de convicção e firmeza em defesa de suas ideias. Possivelmente, a um homem de seu temperamento haveria o tempo em que lhe concederiam a razão; o importante para ele era tê-la como própria na medida que havia chegado a ela através de um exercício de lucidez e honestidade.

De certo modo, pode-se dizer que Miłosz é um sobrevivente das numerosas purgas intelectuais que o pós-guerra e a guerra fria produziram na segunda metade do século XX no campo chamado de esquerda intelectual ou, como seria melhor chamá-lo, do establishment da chamada esquerda intelectual. A luta pela vida e o entendimento se ajusta perfeitamente ao processo de criação de sua poesia: desde uma primeira complexidade, sua capacidade de manter o coração das coisas lhe empurra cada vez mais até uma aparente simplicidade que condensa preocupações muito complexas. Ele próprio susteve que poesia é um dom. Lendo-o parece mais que isso; em todo caso, é o produto de alguém que conquistou o dom de alcançar uma ética da dúvida como forma de consciência. A verdade é que Miłosz se converteu com o tempo e como pessoa num símbolo da liberdade e da independência ante qualquer forma de corrupção vinda do poder; por isso seu romance é também emblemático, um protesto para ele, que colocou toda sua capacidade criativa ao serviço da poesia, a qual é, muito provavelmente, o mais perdurável de sua obra.

Como disse seu personagem Gil ao término de A tomada do poder: “Quem poderia ser tão arrogante como para saber quais são os atos que se unem e sustentam mutuamente e quais os que caíram no ridículo perde o que merece chamar-se um patrimônio? Em vez de insistir nisso, mais vale que imponhamos a nós mesmos a única norma importante: nos mantermos livres de tristeza e indiferença”.    

O poeta em 1948.

Da França, Czesław Miłosz foi para os Estados Unidos, onde trabalhou como professor convidado na Faculdade de Literatura e Línguas Eslavas da Universidade de Berkeley na Califórnia. Sua chegada ao país já numa idade em que muitos escritores entram numa fase de solidificação de sua obra ou de declive, assinala para ele, o começo de nova fase que culminará com o Prêmio Nobel de Literatura em 1980. Prêmio que renovará sua esperança de retornar à Polônia, mas que, ainda não será o tempo devido: durante toda esta década de 1980, quando surgiu o Sindicato Solidariedade para enfrentamento da ditadura comunista, o escritor esteve à frente das lutas não apenas pela democracia, mas pela independência do seu país de predileção. Possivelmente terá sido de uma obra de grande relevância sobre temas da condição humana e as reverberações políticas de seus atos que também fizeram marca na sua obra os principais fatores para o maior galardão da literatura cair em suas mãos.

“Formo parte da literatura polonesa desconhecida no mundo pelas dificuldades sobre sua tradução para outras línguas e muito possivelmente por isso os escritores de meu idioma constituem uma espécie de congregação secreta que convive, antes de tudo, com os mortos e em que, as lágrimas e o sorriso, o patético e ridículo, coexistem como direitos iguais”, sublinhou o escritor no discurso de recepção do Prêmio Nobel. Foi Miłosz, em nome desse grupo de desconhecidos, quem apresentou a conterrânea Wislawa Szymborska fora das fronteiras da Polônia, seja em ensaios, seja em antologias.

Até a queda do comunismo, não apenas o escritor, mas a obra de Miłosz esteve fora da Polônia; a censura não permitia sua publicação. O escritor regressou ao seu país em 1989 e em 1994 mudou-se para a Cracóvia. “Essa cidade me atraiu sempre, porque me lembra muito Vilna, a cidade de minha juventude, ainda que polonesa”, explicou em certa ocasião. É o seu retorno que assinala o período de inserção de sua obra naquele país; a primeira edição de sua poesia rendeu, de imediato, a venda de mais de duzentos mil exemplares.

Em Gdansk foi erguido um monumento às vítimas do regime e aí figuram duas citações: uma frase da Bíblia e um verso do poeta. Pelo pequeno percurso sobre sua vida e sua obra, é possível dizer que Miłosz revela três preocupações – ética, metafísica e estética. Sua poesia oscila entre a dúvida e o assombro. E do gênero (há muitos títulos) se destacam Poema sobre o tempo suspenso (o livro de 1933), Tratado poético (1957), Do sol que se levanta (1974), A terra inalcançável (1986) e Isto (2000); em 2003, a Editora da Universidade de Brasília apresentou uma tradução de 24 poemas de vários títulos do poeta e reuniu na antologia Não mais e, antes, em 1994 foi publicada uma edição com poemas de Miłosz, Wislawa Szymborska e Zbigniew.

Wislawa Szymborska e Czesław Miłosz

Para Regina Przybycien, professora da Universidade Federal do Paraná, os temas da poesia de Miłosz “são profundamente filosóficos (e às vezes teológicos) tratando das grandes questões sobre as quais têm se debruçado filósofos, teólogos, cientistas e poetas: o sentido da vida e da morte, a inexorável passagem do tempo, a origem do cosmos, a consciência humana. Miłosz parece dialogar e polemizar com os cientistas e suas teorias pelo pouco que sabem, apesar do extraordinário avanço científico, dessas questões que têm, desde sempre, afligido a humanidade. Temos, portanto, um poeta-profeta do século XX que, a sua maneira, retoma os temas dos grandes poetas do passado como Dante, Milton, Goethe, poetas que pensaram o homem e sua inserção no cosmo”. A experiência das guerras, o autoritarismo das ditaduras, o exílio são experiências que marcam profundamente sua poesia, diz Regina; refletem-se em temas como a tensão entre vida e arte: o efêmero e o horrível da vida contrastando com o permanente e o belo da arte.

Em prosa, além do romance que citamos, há títulos como, O vale do Issa (1955) e ensaios como Mente cativa (1953), Âmbito nativo (1982),  O imperador da terra e A terra de Ulro (os dois de 1977); no Brasil, a Editora da Universidade Federal do Paraná editou do gênero O testemunho da poesia (de 1983).

Abaixo o leitor tem acesso a um catálogo que editamos com alguns poemas do escritor e um conjunto de fotografias muito raras.




Ligações a esta post:
Leia notas sobre Mente cativa, aqui.


* Parte deste texto são notas de “Czeslaw Milosz, premio Nobel de Literatura 1980” (José María Guelbenzu).

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