É urgente redescobrir a poesia de Hilda Hilst



Entre os nomes que ousaram intervir com os chamados temas pouco poéticos está o de Hilda Hilst. Isso está agora ainda mais claro porque se tem acesso ao mais completo panorama de seu trabalho com a poesia: a publicação de um novo volume que compila toda sua obra do gênero. Hilda, talvez pela razão de ser avessa a dogmas, aos modelos do establishment cultural de seu tempo,  e porque não se interessou pactuar com determinados grupos do Olimpo (leiam a expressão com a máxima de ironia possível), porque fez-se sozinha, foi parar no rol daqueles cuja obra melhor ficaria se caída no esquecimento.

Contra essa última imposição podemos pensar na saída engenhosa construída por ela: muitas vezes, na parte de sua obra mais vista, passar-se pelo que não era (ou será que era?) no intuito de, enquanto se desfazia da voz comum de rebaixamento seu trabalho, se mostrar igualmente como as outras já ingressadas por toda sorte de subterfúgios ao panteão dos sacrossantos. Essa posição é arriscada e não serve aos fracos, aos que cedem facilmente ao encanto bruxuleante da fama do bem-aceito e esquecem do lugar devido do poeta – o não-lugar.

Hilda fez-se em trânsito e construiu aberturas para ruir com alguns interesses escusos da crítica conveniente e do leitor inconivente que zelaram, os dois, por jogá-la no limbo. Há nela uma essência naturalmente subversiva, e portanto, não subserviente, que orienta seu trabalho criativo e que, fundamental a todo poeta, permitiu-lhe romper com determinados modelos e ampliar importantes traços da nossa poesia moderna – um deles muito provavelmente reinaugurado por ela no Brasil: aquele cujas raízes remontam ao êxtase poético de Santa Teresa d´Ávila há muito enraizado na poesia latino-americana e conceituado por Octavio Paz como “ascetismo erótico” (até escreveu um livro embebido dessas influências, Poemas malditos, gozosos e devotos); além, é claro, da verve satírico-erótica, da metapoesia, dos estreitamentos entre a poesia e a memória, para citar alguns outros fios cuja cor ganham destaque na sua poética.  

O poeta é e não é homem do seu tempo. É porque não é possível se desfazer das obsessões que lhe tomam no momento de composição; não é porque, mesmo expondo às claras os motivos do seu tempo, estes não são sorvidos à sua maneira pelos leitores imediatos. Isso justifica a perenidade de determinadas obras; justifica o caso de redescoberta da poesia de Hilda Hilst há pouco mais de uma década. É o processo de contínua leitura motivado em parte pela exposição escusa da crítica de seu tempo quando não o silêncio em torno da sua obra – silêncio lido pela poeta como o pior dos castigos da Musa contra o trabalho do poeta, silêncio que sempre foi preenchido pelas banalidades produzidas por outros poetas – que faz finalmente sua obra alçar outra dimensão na e para a literatura recente.

Não se trata isso de reconciliação do centro com os das margens – porque além dessas duas dimensões possuir suas limitações, sobretudo a segunda, a releitura de uma obra nem sempre é feita com o interesse de corrigir a visão deturpada de um tempo. É porque finalmente é feita uma leitura coerente e não sentencial de sua obra. Nesse momento parece que sempre ouviremos ela nos dizer, “fico besta quando me entendem”. E, afinal, pode nem ser entendimento somente; é que obedecendo certa posição repetível entre os grandes, Hilda esteve em contato com as vozes de um tempo porvir, ainda que este tempo de hoje ora pareça tão mais retrógrado, corrompido, coberto por uma espessa camada de fumo com os elementos do pior da civilização. E esta não é uma posição pessimista; é somente uma constatação do próprio malgrado humano lido pela poeta em “Poemas aos homens de nosso tempo”.

Da extensa e multifacetada obra de Hilda Hilst, a poesia, tal como sua prosa, esteve interessada em expor, dentre outras questões ou temas, os conflitos centrais entre sujeito mundo e os discursos sempre apresentados como acabados ou não-sensíveis ao campo do poeta; tal posição está em consonância com o que se esperava da obra de um poeta do seu tempo, mas, tudo se filia a uma condição marcadamente única só possível de ser realizada através de uma escrita interessada no trabalho não de permanência mas de desestabilização das trivialidades. Árduo trabalho de lapidação com a palavra.

“O primeiro verso surge como um fluxo sanguíneo e é sempre um espanto. A partir dele procuro continuar o trabalho mantendo a coerência das figuras e a mesma intensidade”, diz a poeta numa entrevista recolhida no apêndice de Da poesia. Assim se revela o sentido da poesia para ela: espanto e criação – os dois recursos indispensáveis ao bom poema, que se feito de um ou só de outro corre o risco de não se suster, ser peça falsa. Talvez só agora observemos que devemos a Hilda sua perspicácia e inteligência em afastar-se da mesmidade dos temas no interesse de uma obra autossuficiente; que fez da contradição e dos rigores estabelecidos dos discursos matéria vital para sua poesia – coragem dispensada em muitos poetas e utilizada com o vigor necessário na construção de uma obra desde sempre igualmente necessária.



É, portanto, um luxo o que seus leitores (os conhecidos, a nova geração que agora descobre sua obra e os que ainda a encontrarão ao acaso e ficarão, primeiro abismados e depois entregues a ela) têm agora em mãos. No ritmo das grandes reedições e reorganizações da obra de importantes poetas – começou com Paulo Leminski (Toda poesia), depois Ana Cristina Cesar (Poética), Waly Salomão (Poesia total) – comandadas pela Companhia das Letras, Da poesia foi publicado em 2017.

Trata-se de uma antologia que reúne todos os livros de Hilda Hilst, que não são poucos: Presságio, Balada de Alzira, Balada do festival, Roteiro do silêncio, Trovas de muito amor para um amado senhor, Ode fragmentária, Sete cantos do poeta para o anjo, Trajetória poética do ser, Odes maiores ao pai, Iniciação do poeta, Pequenos funerais cantantes ao poeta Carlos Maria de Araújo, Exercícios para uma ideia, Júbilo, memória, noviciado da paixão, Da morte. Odes mínimas, Cantares de perda e predileção, Poemas malditos, gozosos e devotos, Sobre a tua grande face, Amavisse, Via espessa, Via vazia, Alcoólicas, Do desejo, Da noite, Bufólicas, Cantares do sem nome e de partidas. Muitos desses títulos recuperados na edição agora apresentada estavam há algum tempo fora de catálogo, embora, não tenham faltado esforços de renovação sobre sua obra.

Agora, não é apenas o registro de mais de cinco décadas de entrega à poesia, correndo sempre o risco de enfrentar o profundo silêncio da chamada (e mesquinha) elite cultural brasileira. Da poesia é a antologia de uma vida; reúne alguns poemas inéditos ou exercícios de escrita que ficaram escondidos durante anos nos arquivos da poeta na mítica Casa do Sol, onde atualmente funciona um instituto que, entre outras atividades, zela pela memória da poeta, ou na Universidade de Campinas, de onde partiu os primeiros gestos de renovar o fôlego em torno de sua literatura. Os rascunhos são pequenas chaves, um gesto, como é possível ler na apresentação da antologia, de “observar de perto o processo criativo da poeta”, seu ímpeto e trabalho com a palavra. Hilda Hilst é caso raro entre os poetas da literatura brasileira porque não apenas construiu esse imponente império de palavras, mas porque nunca esteve descuidada, mesmo quando quis estar, do zelo com a língua, sorvendo sentidos, ampliando-os, ressignificando, oxigenando os foles da linguagem – ela que, frequentemente, para mencionar outra vez a apresentação do livro aqui comentado, inventava palavras.

Isto é, Da poesia afirma-se enquanto testamento lírico, para correr o risco de nomear este projeto editorial com o mesmo título empregado pela poeta num dos seus poemas. E não se faz um testamento apenas com as palavras do autor – que no caso de Hilda Hilst são por si só suficientes; faz-se ouvindo os de seu convívio e os ecos que já agora ressoam em torno de outra obra, mais quista, possivelmente mais lembrada pelos estudiosos da literatura, uma parte pequena da mesquinha elite cultural.



Dos diversos ecos, o leitor encontra a palavra de Victor Heringer, num posfácio elucidativo sobre a biografia e a obra poética de Hilda, mais as vozes de Lygia Fagundes Telles, quem desde nova manteve uma estreita relação de amizade com a poeta, Caio Fernando Abreu, o moleque que se derreteu de amores pela enigmática mulher que deixou todo o luxo e o convívio do falso brilho da cidade grande para viver entre cães e palavras num sítio, e algum resquício da própria voz da autora em relação ao trabalho de fabrico de seu universo.

“A poesia tem a ver com tudo o que não entendo. Tem a ver com a solenidade diante do mundo. Algo sagrado e importante que eu queria perder, e ela sempre vem quando estou prestes a perder isso. A poesia é a hora dos trombones. Tem tudo a ver com esse fio terra que eu quero contatar, uma ligação da vida com a intensidade”, assim se refere a poeta na entrevista copiada no apêndice da antologia aqui referida. Justamente, por isso, é sua obra do gênero um extenso território, com altos e baixos e tecido com uma variedade de tonalidades, entre o sagrado e o profano, o sublime glorioso-trágico e o rebaixamento do riso. É urgente redescobri-la. A oportunidade está lançada. 

Ligações a esta post:
>>> Hilda Hilst: a transgressão fundamental

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

Cinco coisas que você precisa saber sobre Cem anos de solidão

Boletim Letras 360º #613

Dalton Trevisan

Boletim Letras 360º #603

Boletim Letras 360º #612

Seis poemas de Rabindranath Tagore