Em má companhia, de Vladimir Korolenko

Por Pedro Fernandes



Quem por acaso já tiver lido Capitães da areia, do brasileiro Jorge Amado, não deixará de lembrá-lo durante a leitura de Em má companhia, do ucraniano Vladimir Korolenko. As narrativas que compõem o romance e a novela dos dois escritores se assemelham porque estão marcadas pelo protagonismo da gente simples; em ambas prevalece uma radiografia do mendicante habitante da periferia da zona urbana e vítima de um triste modelo opressor responsável pela segregação de camadas diversas da sociedade, sobretudo aquelas que vidas não foram agraciadas com determinadas benesses oferecidas a uns poucos. Os dois livros, aliás, se utilizam da mesma regra de composição: a fim de melhor comover o público, as narrativas são entrevistas pelo ponto de vista da criança marginalizada, um público recorrente em toda literatura interessada em denunciar alforra causada pelo capital.

O título de Vladimir Korolenko recupera um daqueles caros conselhos que nos dão na infância sobre quem escolhemos para nossa companhia. É notório, em grande parte das vezes, que o termo má-companhia sempre recupera uma dimensão de preconceito, porque não oferece possibilidade de determinar o que nos vendem como tal se simplesmente ignoramos à primeira vista aquele que nos parece uma amizade inadequada, capaz de nos arrastar para o mau caminho. E, grande parte do preconceito recai sobre aqueles cujos padrões de aparência não se deixam revelar superficialmente. O tal conselho se beneficia erroneamente do medo infantil – e natural – para com as figuras de aparência destoante do trivial, e é capaz de deixar sequelas irreparáveis na formação do indivíduo. No caso, aqui, as más companhias são os mendigos que vagam pela cidade e dos quais o menino Vássia deve tomar cuidado, segundo os preceitos do pai e da babá.

Mas Vássia, desde a perda da mãe, e o afastamento progressivo da irmã imposto pela babá quem, novamente sob o signo da má-companhia, evita que os dois mantenham-se muito próximos porque na visão dela ele é um traquina e má influência para Sonia, que o menino desenvolve um interesse por esses seres transeuntes pelas ruas. A desatenção da babá e o trabalho ostensivo do pai, um juiz, são motivadores ainda para que Vássia exerça toda sua liberdade em também vagar pelas ruas e descobrir sobre essas personagens que à sua primeira vista escolheram um modo de viver melhor que o seu. É quando, depois de descobrir a intriga que separou o grupo de mendicantes entre os que vivem nas ruínas de um castelo e os que vivem na capela de um cemitério abandonado – dois extremos da cidade.

Antes de saber por qual grupo o menino se decide é necessário lembrar duas condições impostas pela narrativa. A primeira delas são as incursões da história na representação dos espaços e mesmo a compreensão sobre as relações de poder, outra constante dessa obra. No capítulo que abre a novela, “Ruínas”, o narrador ao apresentar o velho Ianuch e um grupo de mendigos que convivem e brigam entre si pelo espaço do velho castelo, este lugar é apresentado com um extenso passado sobre o qual esses novos moradores habitam; os cadáveres da história provêm dos conflitos variados entre os povos do entretrecho Ucrânia, Turquia e Rússia. Remontam sobretudo ao período da Guerra Russo-Turca de entre 1768 e 1774. Com que objetivo, além do contextual? O de compreender a proveniência desses mendigos que agora vagueiam pelas ruas – como descendentes de um lugar da história que os fizeram errantes e sem lar. É notável como Vladimir Korolenko participa abertamente das discussões acerca das itinerâncias e errâncias dos povos. O agravante da miséria dos habitantes das ruínas do castelo é o levante desse modelo social que penaliza esses que historicamente já são massacrados.



Embora a narrativa traga a mendicância envolta numa espécie de tom idílico (e não poderia ser diferente já que a lente pela qual o narrador enxerga os acontecimentos de um passado é a da infância), reside uma sutil mas clara denúncia acerca de tais imposições marcadas pelo jogo de poder entre os povos. Isso se concretiza melhor ainda quando desenvolve o impasse entre os do grupo; mesmo irmanados pela mesma condição, o velho Ianuch, por exemplo, impõe-se como um separatista e obriga grande parte dos que dividem o mesmo espaço no castelo a debandarem para outras partes da cidade. Não é gratuita essa imagem da dissidência quando estamos num contexto no qual esse é um tema recorrente entre povos daquela região da Rússia. Tema, aliás, que nunca ficou sepultado e encontra alta ressonância no atual contexto histórico com os grandes fluxos de imigração na Europa do começo deste século.

A segunda questão impossível de passar despercebida é a cidade enquanto personagem da narrativa ou mesmo sua protagonista, uma vez que o estágio a que são submetidos esses habitantes é não apenas um produto da história, do modelo social, mas um problema associado aos modelos de cidade que desde sempre prezaram pela fixidez da morada, seus confortos, em oposição aos modelos de nomadismo, abrigo em qualquer parte com o conforto mínimo contra as intempéries da natureza ou mesmo aos modelos rurais. Isto é, o processo civilizatório foi também um dos responsáveis pela aparição de novas necessidades para as quais nunca se chegou a uma solução precisa para todos. E o da urbanização é só um deles.

Não é necessário trazer aqui o debate para que não deixemos de lembrar o quão sério é o problema da morada ao redor do mundo, seja entre as sociedades que ainda estão no início de alguns desses processos civilizatórios, seja entre as sociedades marcadas pelas crises financeiras que desalojam milhares do conforto de seus lares, seja ainda entre essas sociedades marcadas pelos fluxos migratórios. Em parte, a cidade é, na novela de Vladimir Korolenko, esse monstro voraz que condena seus habitantes.

O capítulo “Naturezas problemáticas”, por exemplo, apresenta-nos isso claramente, ao nos mostrar a urbe como a responsável pelo agravamento das más condições dos que vivem ao relento, além, é claro, de favorável à transformação desses indivíduos em figuras à margem da lei e entregues ao descaminhos da violência: “A cidade sabia que na escuridão e na chuva vagavam pelas ruas pessoas tremendo de fome e frio, encharcadas, e entendia que no coração dessa gente nascia a crueldade. Portanto, a cidade mantinha-se alerta e dirigia a essas pessoas suas ameaças. E à noite, como que propósito, descia à terra algo como um dilúvio gelado, que depois ia embora, deixando sobre ela nuvens pesadas”.

Por este tom, é perceptível que a narrativa de Em má companhia é construída sob o signo da denúncia e crítica aos impasses que condenam ou colocam homens uns contra os outros, além de uma exacerbada compaixão – e novamente fica impossível não lembrar Jorge Amado – para com esse que são massacrados, vitimados ou injustiçados nesses processos de articulação do poder. Agora, ao contrário de Capitães da areia, em que os modelos estabelecidos são apenas extensão da narrativa ou o lado oposto à miséria fabricada por eles mesmos, na novela de Korolenko a visão sobre o fosso entre classes é percebida pelo ponto de vista de uma personagem bem estabelecida socialmente. Isto é, compreende-se que o embate entre classes não se constitui de um mero jogo de oposições ou imposições, mas é trânsito, isto é, os diversos níveis sociais mantêm alguma relação de convivência (e nos casos mais graves de conveniência com a miséria, tal como denuncia a certa altura da narrativa a maneira como o padre e a Igreja da cidade se relaciona com os mendigos).

Vássia, quem desenvolverá aos poucos uma aproximação com o núcleo dos mendigos que vivem na capela, a partir das crianças que aí habitam, construirá aos poucos uma sensibilidade para com esses indivíduos que nada tem de ingênua, mesmo que a princípio pareça ser apenas o encontro de um garoto que descobre na rua os afetos que não tem em casa. No vagar pela cidade o menino testemunha o desemparo, a ruína, os medos, as perdas, o escárnio contra os sem teto, os tons diversos da miséria e o que fazem os miseráveis para sobreviver; constrói também, além das sensibilidades para com as gentes desamparadas, o outro que difere de si, uma sorte diversa de conceitos fundamentais para a vida, tais como, a descoberta dos afetos, do companheirismo, da amizade. Tais condições, compreende, são vitais para o não desfazimento das relações ou uma maneira de amainar os dramas comuns de existir. Abre-se, ainda, uma perspectiva utópica acerca do fim das desigualdades sociais e a convivência harmoniosa entre os homens, tal qual denuncia o desfecho da novela, na reconciliação definitiva da família de Vássia com as companhias de rua.

“A infância e a juventude são as grandes fontes de idealismo”, assinala este narrador adulto que contempla esse passado com ar idílico. A frase é paradigmática, tanto responde pelo conteúdo do narrado ou como esse olhar se porta para com as situações aí recordadas, mas traz uma intenção interessante que é a da necessidade de recobrarmos esse olhar para recompor nossas próprias perspectivas por um mundo mais justo e menos cruel. Não é, portanto, um idealismo vazio; é uma revisão sobre a necessidade de se trabalhar em torno de uma revisão dos modelos cruéis estabelecidos pelos embates de força entre os homens.

Ligações a esta post:


Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

A poesia de Antonio Cicero

Boletim Letras 360º #609

Boletim Letras 360º #600

Mortes de intelectual

Seis poemas de Rabindranath Tagore

É a Ales, de Jon Fosse