Julien Gracq

Por Christopher Domínguez Michael

Julien Gracq. Foto: Louis Monier


 
Ao rejeitar, em 1951, o Prêmio Goncourt que lhe fora atribuído por Le Rivage des Syrtes, Julien Gracq subscreveu outro venerável costume literário francês, o anticonvencionalismo, estipulado em La littérature à l'estomac, esse tipo de manifesto pessoal. Gracq, nascido perto de Nantes, com o nome civil de Louis Poirier, em 27 de julho de 1910 e falecido em 22 de dezembro de 2007, havia chegado ao século XXI como um dos poucos autores vivos incluídos em Bibliothèque de La Pléiade. Sobrevivente heterodoxo do surrealismo, Gracq transitou entre o romance, o teatro, a crítica ou o livro de viagens sem prestar contas ao mercado de valores das ideologias políticas ou das modas intelectuais.
 
Autor de André Breton, quelques aspects de l’écrivain (1949), Préférences (1961), En lisant, en écrivant (1980) ou Lettrines I e II (1967 e 1974), Gracq também foi um crítico que lutou pelo romance, acusado como farsa do século XIX até mesmo por “conservadores” como José Ortega y Gasset e por “revolucionários” como André Breton. Ainda alguns poetas consideram elegante dizer que “não leem romances” como alguém que atesta, sem ninguém perguntar, alguma forma de virgindade. Gracq teve que lidar justamente com Breton, cuja posteridade foi um tanto maltratada por seu desprezo pelo romance e, pior ainda, pela música. Mas em 1938, quando Gracq publicou Au château d’Argol, recebeu a aprovação de Breton, encurralado contra a parede pela glória de Kafka e Joyce. O “romancista do surrealismo” tinha que ser batizado e não podia ser o comunista Louis Aragon, que tentara desde Anicet ou le Panorama (1921) e Le Paysan de Paris (1926), assim Breton licenciou o jovem Gracq.
 
Essa licença bretoniana fala mais do tradicionalismo do poeta do que de Gracq. Au château d’Argol é uma nouvelle que une dois caminhos que se dirigiam, inadvertidamente, para o surrealismo: o romance gótico e a questão da Bretanha, ou seja, o lendário ciclo do Rei Artur, estabelecido no século XIII. Da infusão pré-romântica preparada por Ann Radcliffe e Charles Maturin, Gracq tirou mais do que sombras e numens. Au château d’Argol revê a lenda do Santo Graal, referindo-se à versão contada por Chrétien de Troyes: Percival vê uma donzela curar o rei pescador com um vaso. Seja a hóstia consagrada ou o chifre da fartura dos celtas, o Graal ficará na lenda como receptáculo da Última Ceia, mais tarde usado por José de Arimatéia para coletar o sangue do Cristo crucificado. Com María Casares como protagonista, Gracq levou o episódio ao teatro em 1948 com Le Roi pêcheur.
 
Através do retorno iniciático de Albert à fortaleza onde o espera o casal andrógino anjo e demônio, Gracq revela, narrando Au château d’Argol sem interesse algum na experimentação, o quanto havia no surrealismo de um feliz retorno ao simbolismo medieval. O romance de Gracq é uma variação do Parsifal de Wolfram Von Eschenbach, a germanização do Percival arturiano: buscar no Graal, mais que um objeto milagroso, a cifra da condição humana.
 
Gracq se aproximou ao surrealismo quando estava experimentando sua fértil decadência. E, sem renegar Breton, se afastou dele para escrever Le Rivage des Syrtes (1951), romance cuja semelhança temática e cronológica com O deserto dos tártaros (1940), de Dino Buzzati, expressa a profunda ansiedade de meio século. Em Gracq, a agonia imemorial de duas potências inimigas que não conhecem a paz nem guerra, é um sinal que vai além da história e reaparece em Un balcon en fôret (1958), onde Grange, um oficial esquecido nas Ardenas durante a drôle de guerre de 1939-1940, se serve do esquecimento para encontrar o Eterno Feminino.
 
Paul Valéry e Breton acreditavam abertamente que a experiência do romance nasceu e morreu no século XIX. Nunca confiaram que outro Lawrence Sterne, um novo Cervantes, uma segunda ou terceira Lenda dourada pudesse ser encontrada no futuro. O problema não era a que horas a condessa partia, mas quem era. O romance sacia porque tenta beber o Graal até a última gota. Gracq, que foi o anfitrião, na França do pós-guerra, de Ernst Jünger, outro descrente na morte do romance, refutou a obsolescência do romance que Valéry acreditava demonstrar.
 
Não sei se o “romance surreal” já existiu. Foi no conto que Leonora Carrington ou Alberto Savinio conseguiram apresentar, não tanto a linguagem dos poetas surrealistas, mas a dos seus pintores. Gracq tirou do surrealismo, como alguns dos grandes poetas latino-americanos, a liberdade de voltar no tempo. Seus romances, muitas vezes irrespiráveis, terminam abençoados pela aridez de um misticismo geométrico, onde Angelus Silesius ilumina quem espera o Graal, a guerra, a mulher, como em Au château d’Argol, Le Rivage des Syrtes ou em Un balcon en fôret.
 
Em busca do sagrado, o surrealismo foi a menos atual das novidades do século. isto. É por isso que foi a mais profunda. Obra de mágicos, videntes ou charlatães, o surrealismo teve em Julien Gracq o escritor que, entre outras coisas, o reconciliou com o romance.
 
* Este texto é a tradução de “Julien Gracq (1910-2007)” publicado aqui em Letras Libres.

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