Sol artificial, de J. P. Zooey

Por Pedro Fernandes

J. P. Zooey. Foto: Gens Fernando



É apenas por convenção que filiamos a dúzia de textos reunida nesse conjunto que atende pelo título de Sol artificial ao conto. O livro composto por um refrão — certa visão sobre uma nova civilização começada a partir do advento da era de democratização da imagem em movimento, da qual a televisão foi o primeiro aparelho de um sistema agora muito mais complexo que atua diretamente na metamorfose do homem e da realidade, alçando-nos para um mundo e tempo outro, feito de transparências e indistinções — é uma provocação à forma, escrito num modelo que sempre chamamos, em modo de contraste a uma literatura mais rente à realidade factual, de inventivo.
 
O texto norteador para o restante da obra se apresenta logo à abertura; trata-se de uma carta dirigida a J. P. Zooey e assinada por ele próprio. Essa ideia que nos remete para a capsula do tempo há muito adotada individual ou coletivamente oferece algumas inquietações: a primeira é certa discrepância entre os dois sujeitos, autor e leitor, apesar de se tratar da mesma pessoa. Ou não, se pensarmos que aquele é um calouro que se percebe trocando a vida comum, de uma juventude promissora de curtição e afeita para a literatura, pelos bancos de faculdade e as leituras de filosofia, e este que agora (se) lê, enxerga o mundo por outra lente. No passado, o autor compreendia, por exemplo, que a vida acadêmica o afastaria de uma autenticidade das coisas, o que não se confirma, mesmo depois de desenvolver uma capacidade de leitura que o torna incapaz de acessar objetivamente as conjeturas feitas na carta. A este texto, o leitor, acrescenta outra camada que não é puramente uma tentativa de expor o sentido do seu autor, do contrário, ergue outra estrutura igualmente original em relação à primeira apontando duas direções no mundo corriqueiro: a crise de leitura sobre passado e para o diálogo.
 
Esse gesto escapa ainda da superficial natureza cambiante assumida entre o passado e presente e da alterabilidade dos sentidos: de um que não podia esclarecer o futuro tal e qual; de outro que não consegue acessar, da mesma maneira o passado. Mas, nem tudo, é impasse. Prevaleceu entre os dois o interesse pela escrita: e o conteúdo que se faz o livro que lemos é a prova irrefutável disso. O da carta deixou alguns textos para lembrá-lo se uma promissora vida pela palavra ainda se faria viável depois de descobrir a mecânica da leitura e da escrita que um curso de filosofia nele despertaria. E é possivelmente, graças a essa redescoberta, que o Zooey do presente se motiva a juntar àqueles escritos novos textos, os que acompanhamos, como dissemos, nas onze entradas seguintes.
 
São dois fios ou dois os conjuntos de textos que se entrelaçam na organização do livro: num primeiro, textos de cariz ensaístico e especulativo que se conectam muito claramente ao tom da carta, ou seja, certamente o grupo de produções que o Zooey do passado deixa para o do futuro / presente. O outro fio é formado por uma série de entrevistas com figuras excepcionais, tocadas por uma profecia radicalmente negativa sobre os rumos de uma civilização enredada nos artefatos tecnológicos. A excepcionalidade dessas personagens é de se observarem, mesmo integradas aos modelos vigentes, como os últimos vestígios de lucidez num mundo integralmente submetido às sombras, como se outra vez voltássemos ao lugar na caverna, para recordar o mito de Platão.
 
Conseguimos observar a linha estabelecida no entrecruzamento dos dois materiais, mais é possível que não passe de uma miragem. Logo no primeiro texto que forma parte no segundo conjunto de escritos encontramos Umberto Matteo, um homem que se acredita imigrado do futuro e com quem os do presente não consegue estabelecer um diálogo a partir de suas matrizes psicanalíticas. Estudado por um grupo de psiquiatras, Matteo é reencontrado por Zooey depois de ver os registros em vídeo de uma entrevista sem qualquer conclusão. A nova entrevista ao menos serve para explicar o que no passado chamava de Bionet: uma rede que gera e administra nossas composições genéticas. O italiano, portanto, fixado na taxonomia das loucuras ainda não catalogadas, se revela um dissidente desse sistema. Mesmo a internet, que demonstra como o primeiro nível da Bionet, ele desconhece porque sua consciência parece tratar de reprimi-lo da tecnocracia, como se nota na sua incapacidade de dizer o refrão de uma canção dos Beatles que, aliás, toma como obra sua — tocando na crise de autoria que já agora atravessamos com o plágio. Então, seria mesmo o refrão de Sol artificial o que aqui se especula ou seria a camada outra que acrescentamos na nossa leitura?
 
Para Matteo o mundo de Bionet — reparamos, feito das interferências entre a biologia e a tecnologia da informação — se forma do mesmo interesse: “Todos querem ser outros”. E porque sendo outros passam estes simulacros a agirem por sua conta, não sem os resquícios do que guardamos na nossa inconsciência. É o caso do quarto texto, quando outra vez, numa entrevista, J. P. Zooey apresenta um homem que laborou na libertação dos campos de concentração fabricados no ciberespaço. A autonomização dos outros oferecida pela vida virtual favorece a organização de colônias e estas logo são feitas refém de outras tomadas por outros interesses escusos. Ora, o Dr. Diego Grenstein diz das extensas interferências que os grupos reprimidos ao longo da história por suas condutas antidemocráticas se organizam para o desmantelamento das ordens sociais estabelecidas, como acompanhamos diariamente desde o levante dos extremistas ao poder graças a conivência perigosa entre o capital financeiro e os moços do Vale do Silício.
 
Os extremismos assumem posicionamentos variadas, podem estar à direita ou à esquerda, mas em todos os casos começam — ou seja, a prática ainda é a mesma de sempre — por uma desfiguração da linguagem. É o que acompanhamos na entrevista com Nicolás Aspié, em “A questão Hamlet”. O inválido programador de informática tanto dedicado ao ofício que se fez um incapaz para o mundo natural e se contenta com sua bolha de estímulos cibernéticos, relata de quando um sistema para o departamento de literatura forjado por ele atua sozinho adulterando a célebre passagem do Hamlet, de Shakespeare: ao invés de se ler “Ser ou não ser, eis a questão”, passa a “Ser & não ser, eis a questão”. Mais que a autonomia de um sistema em recusar o modelo que o mantém — entre uns e zeros passa a existir um & — e a revolta de uma máquina contra a aparência de um mundo forjado sobre a estrutura ou-ou quando na prática somos e-e, a corruptela, ao modificar a estrutura, encoraja o desfazimento total de uma ordem por outra que se diz inclusive mas é impositiva em relação a estrutura anterior. Ou seja, se o que vivemos é uma ditadura da língua, o que é então a que se impõe pela forçada adulteração do sistema linguístico?


 
Cada uma das entrevistas forma um fértil território de debate e, mesmo sem ceder aos polos de conflito, não deixa de registrar que a Nova Era centrada na imagem se institui como o novo deus desse estágio civilizatório. É notável que J. P. Zooey indiretamente nos diz que não alcançaremos integralmente esse modelo outro — em meio a isso, o destino nosso é o da autodestruição tal como a física, ou no caso de Sol artificial, Ramiro Schwazer Filho descobre a partir da decomposição das digitais humanas a civilização do porvir. A princípio ficamos presos a uma noção nietzschiana do super-homem — de onde parece nascer a ideia em “O Deus do oceano lúdico” —, mas este que o engenheiro genético designa de deus se mostra qualquer coisa de terrível e incapaz de acessarmos fora a extensão do seu horror. Que mais seria isso se não nosso aniquilamento?
 
Para alguns, como Matilde Cristófora, essa condição já foi atingida a partir de quando os homens perderam suas almas, quando essas foram metamorfoseadas em expressões virtuais. Desenganada pelos médicos, essa senhora que viverá algumas décadas a mais na perspectiva de vida, por birra própria, imagina-se que a morte só a alcançará quando chegar no céu. O motivo, entretanto, nada se oferece como transcendental; é antes a matéria de alguém que, como parece a quase todos os entrevistados de J. P. Zooey, não quer ceder sua humanidade para uma máquina do mundo que se abre majestosa e sedutora. Essa imagem central, que Dante Alighieri quando alcança o cume de seu périplo designava como Deus, aqui se sintetiza com o Sol, e por sua vez, o sol artificial, como especula a última entrevista — com Sara Levi, uma engenheira eletrônica sobrevivente de Auschwitz. Sara borda obsessivamente a imagem do sol que se espalha por toda a casa; fascinada pela televisão, o primitivo protótipo do centro da civilização biotecnocibernética, ela designa que a primeira vez quando vimos Deus foi por esse dispositivo feito janela que se abre para a captura do invisível por uma rede de elétrons; “a televisão rompeu a barreira que separava o mundo animal do humano”.
 
Agora, muito antes, no segundo texto que forma a sequência herdada pelo Zooey autor da carta, a imagem do sol já se mostra tematizada. É em “Réquiem para o homem do barro”. Aqui, o autor especula sobre o ponto-limite da traição do homem em relação ao Criador; à sentença de sua origem se refaz agora como massa virtual. Ao contrário do produto genesíaco, o barro, o novo homem é feito da liquidez. Permanece claro que esse outro substrato, indisciplinado, desfaz o primeiro e, o pior, o conduz para a ruína. A criação nos deu a vida do barro pelo calor do sol que o líquido agora o esfria; infiltrado por dentro de nós pelas frestas que se fizeram janelas naturais para o Criador, o olho é a forma que captura pela luz as formas do mundo. A frialdade também nos cegou. “Noite é o estado atual do mundo, para o qual são necessárias tecnologias que ajudem a olhar: a luz elétrica, a televisão, o monitor do computador, os anúncios publicitários, os raios luminosos da discoteca.” Ou seja, somos agora modelados à luz artificial, ao sol artificial.
 
Todas as metamorfoses que nos trouxeram até agora, participam no aprimoramento dos sistemas que estabelecemos como ordem civilizatória. Nesse processo, afinamos um modo econômico e cultural ao tratamento de domesticação dos instintos. Se a psicanálise é uma forma obsoleta de tentativa de descoberta dos modelos simbólicos que nos dominam, não perdeu sua função ao esclarecer que a civilização é produto de um longo investimento de recalque. Em “Histeria e capitalismo afetivo”, se examina exatamente como a limitação que o modelo vigente, centrado no homem, impôs ao feminino, motivada ora pelo medo do informe e do irregular, ora por uma tentativa de alcançar o inconsútil. É com o negaceio do controle — reduzindo a histeria ao patológico, um mal de mulher capaz de derruir a ordem — que se forja a negação do sexo, em várias frentes, incluindo a cultura da monogamia.
 
O embarrareimento dos instintos está nas bases de tudo que criamos. E para tapear os vazios deixados pela impostura das negativas o ampliamos com estabelecimento de um complexo sistema de recompensas baseado no efeito acumulativo — o que primeiro se designa como capitalismo se expandiu tão vertiginosamente e encontrou na tecnologia um campo ideal. Sozinhos, incapazes de regresso ao que de longe passamos a contemplar como forma autêntica de vida, transformamos tudo, mesmo os nossos afetos, em projeções e mesmo estas em objetos. “O capitalismo afetivo não se preocupa com a profundidade dos vínculos, mas com a quantidade dos contatos”, observa J. P. Zooey. Ao buscar entender como o mundo seria se as escolhas tivessem sido pela histeria e pelo feminino o texto não quer oferecer uma alternativa ao vigente nem cair no simplismo de admitir que o nosso destino seria outro melhor; seu interesse é esclarecer como uma limitação de acesso à nossa própria natureza nos empurrou para um mundo administrado e envolto numa crise jamais contornada.
 
É quase comum que a literatura trate de nosso destino ou seduzida por certo apanágio da tecnologia ou receosa de que esta se arme contra nós. Em Sol artificial, as imagens de um apocalipse são apenas entrevistas; suas personagens atravessam um instante de descoberta sobre a falibilidade da biotecnocibernética nos rumos de uma posição melhor da humanidade, simplesmente porque esse que não é apenas o designativo de um grupo mas uma qualidade sua começa a esvanecer. É possível nossa atitude de abismados pelo conforto que toda a parafernália que inventamos, mas o homem do futuro cobra olharmos para o do passado e perceber se não desviamos demais do percurso que nos fez assumir as feições humanas. Podemos ler este livro de J. P. Zooey como essa carta, agora, não dele para ele no futuro, mas de nós do futuro para o nós do presente.
 
É um livro estimulante, situado fora das margens do que designamos como centro da literatura, seja pelo hibridismo dos tecidos textuais, seja pela autenticidade como provoca outras possibilidades de confrontarmos o mundo em curso. Se o leitor tiver chegado até aqui, notará o termo entrevista que marca um dos conjuntos de textos que formam Sol artificial. E é mesmo a estrutura — reiterado pelos subtítulos dos textos — o que se pratica. Quando não, isto é, os textos que se portam fora desse modelo, é a textura do ensaio e da especulação o que prevalece. Em “A pergunta pelo click” talvez possamos encontrar uma resposta para essas escolhas, fora da eventual leitura que possamos fazer de ruptura com a mecânica comum da ficção. Fechamos com o que aqui lemos porque é esta também a síntese de um livro que se mostra desobrigado de oferecer respostas: “Perguntar é abrir no espaço. Produzir um vazio. Todo perguntar abre um vazio em um lugar fechado: a selva dos sentidos.”

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