Ética e espírito absoluto em “Memória de minhas putas tristes”, de Gabriel García Márquez

 
Por Wagner Silva Gomes

Ilustração: Ginnie Hsu.



Memória de minhas putas tristes (2004), como discorre o pesquisador Pedro Fernandes em texto escrito para o blog Letras in.verso e re.verso (ver o final do texto), é um romance envolvido por uma névoa onírica romântica, que percebo acionar do romantismo o seu poder subjetivo em mexer com o imaginário da forma que o homem branco liberal melhor entende, com as visões de liberdade que impulsionaram o Velho Mundo. 
 
O protagonista é um senhor de idade avançada, que mora em um casarão herdado e tem como atividade escrever uma crônica semanal para o jornal local. É quando pensa em escrever sobre o seu aniversário de 90 anos, ao invés de escrever sobre música, como lhe é corrente, que a personagem traz à tona os lapsos temporais de sua memória. Ao dizer que sua crônica será uma glorificação sobre a velhice, sobre a consciência de ser velho, a protagonista nos coloca em dúvida se tudo o que diz realizar no presente em que vive é mesmo verdade ou se não passa de exercício metalinguístico de retórica.
 
O principal gesto para comemorar o aniversário é contratar com uma cafetina uma virgem adolescente a quem poderia tirar a virgindade. A jovem nunca aparece. Uma chave para a compreensão do texto pode estar na passagem do livro em que a protagonista diz que desde menino teve mais bem formado o pudor social que o da morte, se contradizendo, pois contratar uma virgem adolescente foge, e muito, ao pudor social, e ao mesmo tempo lhe remete ao apego que tem pelo sentimento platônico, a capacidade jovial da abstração com o imaginário liberal patriarcal do Velho Mundo.
 
É então que o recurso do fluxo de consciência é acionado com vigor, passando pelo formalismo do pai, que nunca cometeu um erro, pela morte por tuberculose da mãe, tida como pura, santa (o que remete às figuras virgens e pálidas enaltecidas no romantismo — como em Lira dos vinte anos, de Álvares de Azevedo), ao sexo com a empregada e as contas que fazia de cama, como diz, remetendo ao título do livro: já que a personagem conta que nunca se deitou com mulher alguma sem pagar.
 
Observa-se aqui que a personagem tem dois modos de viver, que mostrarei segundo conceitos de Hannah Arendt. Um é o da vida activa, que considera sem grande valor, sempre a desejar (é um solteiro sem porvir, jornalista medíocre, professor medíocre, nunca teve grandes amigos etc.). O outro é o modo de vida que mais valora, o da vida contemplativa (se formou bacharel, lê clássicos da literatura e ouve e escreve sobre música erudita).
 
Em meio aos elementos citados, o que o autor estetiza de forma prolongada é a crônica, mostrando que ela funciona no romance como estetização do espírito absoluto conservador do patriarcalismo ocidental. Pois, se como diz Hegel, a Europa é o continente que atingiu o apogeu cultural, na visão da personagem, o homem branco, classe média, dedicado à contemplação, está destinado a fazer de seu espírito algo grandioso, por mais que sua vida seja medíocre, já que o seu manejo estético lhe autoriza.
 
Gabriel García Márquez, assim, faz com que o mote principal de seu romance seja o questionamento que Leonardo Boff fez sobre Heidegger, a quem diz ter cometido um erro crasso, refletido na conduta social e intelectual: o de não escrever um tratado sobre ética que o fizesse medir os princípios, a conduta, o humanismo. Por isso, a personagem principal, mesmo tendo condutas condenáveis (sexo pago com adolescente virgem, sexo com a empregada etc.), faz valer a estetização de um espírito absoluto que resista, o que nos leva ao questionamento se não é esse o espírito colonialista, racista, sexista, que, por sua qualidade estética, muitas das vezes faz com que passe despercebido as opressões.

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