Carlos Monsiváis e a arte moderna no México

Por Renato González Mello



 
Em outubro de 2003, o Museu Carrillo Gil, então dirigido por Carlos Ashida, abriu uma exposição com curadoria de Ricardo Pérez Escamilla: Estética Socialista no México. Siglo XX. O texto de Carlos Monsiváis no catálogo, breve como a maioria dos muitos que escreveu, expressa algumas ideias panorâmicas sobre a história da cultura mexicana no século XX. Vou analisá-lo aqui brevemente, com um esclarecimento prévio.
 
As opiniões de Carlos Monsiváis sobre a arte e a cultura visual mexicana do século XX estão em sua coleção, preservada no Museu Estanquillo. Esse acervo mereceria um estudo monográfico que elucidasse seus critérios e interesses, mas sobretudo as alternativas que o ordenaram. Embora seu interesse pela cultura popular e pela política seja claro, é provável que pelo menos parte de suas decisões de aquisição tenham sido baseadas em critérios bastante formalistas. Não estou me referindo, obviamente, às fotos de Tongolele e Tin Tan, mas à seleção que fez de artistas como Leopoldo Méndez. Se isso pode parecer contraditório (critérios formalistas e arte política), é porque justamente nessa combinação de aparentes opostos pode-se estabelecer uma parte da originalidade do personagem — que se interessou tanto em defender a Love Parade quanto em opinar sobre a incorporação de um estrangeiro nacionalizado na seleção de futebol — e cujo foco sempre esteve na cultura mexicana moderna, seja a de Altamirano ou a de Salvador Novo. Nesse sentido, creio que seu ensaio mais completo, exigente e que revela com maior profundidade sua angústia ética é aquele que dedicou a este último poeta: “O marginal no centro”. Uma reflexão lúcida sobre as contradições do autor de Novo amor, ele organiza seus argumentos — bastante críticos — em torno de uma história concisa, na qual o apego aos fatos não o leva a estabelecer um distanciamento do personagem. Teria sido fácil esconder-se por detrás da análise da poética do autor de Return Ticket, mas Monsiváis procurou compreender o aspecto menos simples do personagem: a sua proximidade a um regime que, em diversas ocasiões, tinha sido organizador entusiástico de uma homofobia sistemática como parte de seu discurso cultural. Como Novo, que nos anos vinte tem gestos como sacar sua caixa de pó em público, pode ser tão obsequioso com essas burocracias pudicas e machistas?
 
Em 1965, Carlos Monsiváis participa dos debates ácidos sobre o Salão Esso, concurso de pintura organizado com o apoio de diferentes autoridades diplomáticas dos Estados Unidos. Monsiváis assume uma posição contrária às posturas nacionalistas e publica em La Cultura en México, o suplemento de Siempre!, uma sátira mal disfarçada sobre os artigos que Raquel Tibol vinha publicando na revista Política. É um sainete onde Xóchitl Hospicio Cabañas, Moctezuma B. Chapingo e Chepe Mendoza, os três fictícios críticos de arte, cantam hinos de entusiasmo diante das paisagens mexicanas. A sinopse do breve texto revela os recursos retóricos que Monsiváis utilizou com frequência em seu trabalho jornalístico, apoiado na enumeração paralela: “A propósito do mural onde se desmascaram as alianças canalhas dos tlaxcaltecas com os espanhóis, se demonstra que em Cholula se iniciou a primeira pérfida passagem em direção ao abstracionismo, verifica-se que Pedro de Alvarado fugiu e saltou para escapar ao compromisso com a realidade e Malinche é exibido como cúmplice e instigador de Cortés no esforço de minar, desprezar e não recompensar as verdadeiras amostras da arte vernácula”.¹ O recurso não é rebuscado e dá um efeito que pode ser comparado a uma guitarra elétrica que reverbera in crescendo. Deste modo, e bastante indiferente ao espaço construído em cada obra de arte, Monsiváis criou um pequeno espaço autónomo em cada um dos seus ensaios e sátiras — muito difícil de distinguir entre os dois.
 
Em 1986, escreveu o texto da exposição de Francisco Toledo, Lo que el viento a Juárez, e utilizou o mesmo recurso para lidar com um personagem difícil: por um lado, é o ícone central da cultura oficial do PRI; por outro, não é possível pensar em liberdade religiosa no México sem lembrar Benito Juárez. “A aparência indescritível de Juárez transborda as solenidades da época, a rigidez forçada dos heróis diante do pintor ou do fotógrafo, o cumprimento das exigências de comportamento facial da história e da sociedade, as lições austeras que cada um dos retratados, ministro ou camponês se sentia obrigado a transmitir com sua única presença.”² Nos anos oitenta, os textos de catálogo eram breves. Nesse pequeno espaço, Monsiváis se esforça para definir o espaço mitológico de Benito Juárez, entre seu próprio trabalho legislativo e político e os ataques sinarquistas, na década de 1940, contra seu monumento. Quando finalmente fala da obra de Toledo, e deste procedimento, interpreta-a num sentido completamente alegórico. Isso não é incorreto, mas é um pouco limitado, já que Francisco Toledo frequentemente tinha o propósito de elaborar uma arte narrativa; a incorporação da efígie de Juárez às histórias que ouviu em sua infância e juventude constrói um personagem abstrato que corre, nada, voa e dá cambalhotas como parte de uma história que o integra ao mundo das culturas camponesas do México. Isso é deliberadamente irônico, pois Benito Juárez tinha uma relação bastante ambivalente, às vezes hostil, com essas comunidades.
 
O ensaio “A tomada do poder a partir das imagens (socialismo e arte no México)”, publicado em 2004 para a exposição Socialismo no México, é diferente.³ Monsiváis reitera nos primeiros parágrafos os lugares comuns sobre o surgimento do muralismo, afirmando que “com a Revolução Mexicana as ligações possíveis ou desejáveis ​​entre arte e política são aceitas pela primeira vez”; e repudiando tudo no mesmo impulso: “Dos gêneros pictóricos e escultóricos, o consagrado à História pretende recriar cenas da mitologia greco-latina, e modestas substituições de personagens: onde estava Aquiles está o imperador Cuauhtémoc; onde as musas ou bacantes vagavam, se imobilizam as irmãs e viúvas dos heróis; onde César se dirigia para os punhais da conspiração, Morelos se prepara para o martírio” (p. 23).
 
Esse tipo de sobreposição retórica não dialoga com a história da arte recente, que tem apontado inúmeras articulações políticas (principalmente do lado conservador) na arte do século XIX. O objetivo central do ensaio é um acerto de contas com a história das esquerdas e, sobretudo, da esquerda socialista ou comunista. O problema que Monsiváis encontra no sistema cultural dos comunistas não é o gosto pela propaganda, mas a renúncia à política: “A finalidade fundamental do PCM é a defesa da Revolução internacional, muito mais do que a busca da Revolução proletária no México, o que nunca é dito dessa forma é considerado impossível […] a tomada do poder não está na ordem do dia e o que corresponde é a tomada das consciências” (p. 26). Agora, se essa passividade política o desesperava, o sistema cultural que gerou não parecia uma solução ruim em si: “A estética revolucionária surge da intersecção e fusão de dois símbolos poderosos […] aqueles que vêm do Estado-nação e aqueles que surgem da utopia socialista […] a combinação é boa.” A contradição, afirma, constrói “a auréola romântica que eleva a contemplação das obras de arte” (p. 26-27). De qualquer forma, uma referência ao Pseudo-Dionísio, o Areopagita, possivelmente sobre Os nomes de Deus, sugere que seria uma boa ideia explorar seus interesses em teologia, que muitas vezes passam despercebidos ou rapidamente, aludindo a denominações religiosas frequentemente imprecisas.
 
É difícil interpretar a mudança em um autor que se baseou em paradoxos para aumentar o peso de seus argumentos. Quase sempre seria muito difícil estabelecer sua posição inicial, localizada exatamente na encruzilhada entre as alternativas opostas. Há, no entanto, um ponto de inflexão entre os textos mais desconfiados do nacionalismo oficial da segunda metade do século XX e essa reflexão fundamentalmente otimista sobre a arte da esquerda no México. O que aconteceu são as eleições de 2000, nas quais o Partido da Ação Nacional (PAN) ganha a presidência com Vicente Fox como candidato. A um mês das eleições, é publicada no Proceso uma entrevista de Antonio Jáquez na qual Monsiváis critica, com boas maneiras, mas evidente descontentamento, o apoio a Fox por parte de numerosos simpatizantes e militantes de esquerda. Monsiváis reiterou suas posições ao longo do mês seguinte: “A alternância [...] exige pactos explícitos, não o suicídio eleitoral da esquerda”. E essa autoimolação era inquestionável, em sua opinião, devido ao catolicismo intolerante que o candidato Vicente Fox havia demonstrado em diferentes declarações públicas.4 Parece que a vitória do PAN gerou duas condições: por um lado, uma urgência renovada do discurso jacobino; por outro, o abandono da tradicional submissão da esquerda socialista. Uma nova esquerda teria que ter vontade de poder e a luta ideológica contra a intolerância do catolicismo mexicano seria igualmente importante. Nesse sentido, ele parece ter pensado que poderia haver uma esquerda que não estivesse destinada à derrota perpétua, mas que não o levou a concluir que era necessária uma mudança cultural que coincidisse com tal vocação de autoridade e governo.
 
É difícil imaginar como o sistema de cultura semioficial que os socialistas compartilhavam com os governos do PRI poderia sobreviver em um contexto de predominância ou hegemonia das esquerdas. O que foi um poderoso recurso de resistência e crítica, quando articulada a partir de posições dissidentes (ou como aconteceu com Siqueiros, desde a prisão), torna-se um discurso rouco e monótono quando se torna pura e simples na ideologia do Estado. A frustração da dissidência era um alimento mais nutritivo que a felicidade do consenso; o horror da discrepância superou os prazeres da unanimidade; o murmúrio dos resmungos soava mais alto que as fanfarras dos novos otimistas; a pequena tristeza dos descontentes era maior do que a magnanimidade dos novos cocheiros da débil carruagem triunfante.
 
Notas
 
1 Reproduzido em Ruptura, 1952-1965: catálogo de la exposición, Museo de Arte Alvar y Carmen T. de Carrillo Gil, Museo Biblioteca Pape, INBA, SEP, México, 1988, p. 105-9.
 
2 Toledo, F. Lo que el viento a Juárez, Ediciones Era, México, D. F., 1986, p. 5.
 
3 Pérez Escamilha, R. (ed.). Estética socialista en México: siglo XX: Museo de Arte Carrilo Gil, 15 de octubre de 2003 a 25 de enero de 2004, Instituto Nacional de Bellas Artes, Museo de Arte Alvar y Carmen T. de Carrillo Gil, México, 2003, p. 23-32.
 
4 Monsiváis, C. “Diario de campaña”, Proceso, 17 de junho de 2000. 


* Este texto é a tradução livre de “Carlos Monsiváis y el arte moderno en México”, publicado aqui, em Nexos.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Seis poemas-canções de Zeca Afonso

Boletim Letras 360º #580

A bíblia, Péter Nádas

Palmeiras selvagens, de William Faulkner

Boletim Letras 360º #574

Boletim Letras 360º #579