Proust e seu mundo mataram Roland Barthes

Por Christopher Domínguez Michael

Roland Barthes. Foto: Marion Kalter.


 
Em 26 de setembro de 1905, faleceu Jeanne, a mãe de Marcel Proust, e em 25 de outubro de 1977, Henriette, a mãe de Roland Barthes. Entre essas duas datas, bem pode se projetar a posteridade de Barthes (1915-1980), que se questiona, em Roland Barthes por Roland Barthes (1975), diante de uma foto sua quando criança, se, uma vez que, quando “começava a andar, Proust ainda estava vivo e tinha acabado de escrever Em busca do tempo perdido”, ele e Proust poderiam ser considerados contemporâneos, ou confessa seu aborrecimento porque a mãe/avó do romancista não era realmente sua mãe.1 Por isso, o último fruto dessa associação é Marcel Proust. Mélanges (2020), uma compilação de tudo o que Barthes escreveu sobre seu autor favorito, mas sobre o qual nunca elaborou um livro unitário, por motivos que chamam ao hipotético ou ao divinatório.
 
A semiologia barthesiana e sua festa de neologismos vem se retirando de cena para ficar confinada a alguns herméticos cubículos universitários. O estrago já estava feito — separando a crítica da teoria literária e exaltando esta como a única chave para entrar na “escritura” — e não foi Barthes, mas seus seguidores mais obtusos, junto com o resto dos maîtres à penser, os responsáveis mais conspícuos. Embora não tenha fechado formalmente sua “escola”, como Jacques Lacan fez com a sua em janeiro de 1980, Barthes, a partir dos anos setenta, começou a abandonar teorias e manias para se tornar “apenas” um grande escritor francês, na linhagem de André Gide e Jean-Paul Sartre, seus mestres sempre justificados. Tanto que Antoine Compagnon — um de seus amigos mais irreverentes — o fez fechar Os antimodernos: De Joseph de Maistre a Roland Barthes (2005) fotografando em cores sua retirada do campo da vanguarda, em cuja retaguarda — Barthes dixit — morreu após abjurar de maneira mutante e paradoxal, como era típico dele.
 
Para falar deste Marcel Proust de Barthes — “artifício e reparação” segundo seu compilador —2 seria necessário rever, ainda que brevemente, o que ele escreveu sobre figuras isoladas da literatura francesa. Sua aparição, com um Michelet (1954), não poderia ter sido mais afortunada. Embora se considerasse marxista e no final daquela década tenha feito declarações quase stalinistas graças a uma devoção a Bertolt Brecht que nunca abandonou completamente, seu Michelet — manual de uso e “estrutura” — é uma antologia anotada onde o jovem crítico fala mais do que o historiador do século XIX e Barthes rompe o vínculo entre o autor de A mulher (1859) e a rígida tradição do republicanismo francês.
 
Michelet aparece como um gênio capaz de “produzir” (utilizo com relutância o clichê barthesiano) significados e significantes ou símbolos e signos (como os consideram, para simplificar maliciosamente, seus críticos anglo-saxões)3 tão precisos quanto desconcertantes: o sangue conjugal e o sangue patriótico, tédio, o cristomorfismo da Revolução Francesa e o zoomorfismo de Robespierre e Marat, as diferentes formas de morrer em compasso com a Natureza, a bruxa e mil peças de um quebra-cabeça que, por mais que seja montado (ou abandonado), mais do que atende ao que se espera do crítico literário: reler um autor canônico e apresentá-lo a uma nova geração como uma novidade fecunda.
 
Mais problemático de ler é Sobre Racine (1963), não só porque o livro em si aparece apagado pela posterior e muito violenta polêmica com Raymond Picard, onde ambas as partes recorreram ao insulto da ordem militante e às patadas da grelha acadêmica, mas porque os franceses nunca conseguiram universalizar seu teatro nacional por excelência e para além do hexágono, os Racine, os Molière e os Corneille perdem sua aura mítica e fundacional. Em outras palavras: entendo pouco de Racine, mas Barthes (nas palavras de Fumaroli e Compagnon) também não sabia o suficiente. Ele ganhou aquela polêmica por razões ideológicas (“o sistema da moda”, do qual ele era o próprio exegeta, estava com ele) mas, em outras condições, a erudição de Picard (o compilador de Racine na Pléiade) o teria colocado em maiores apertos. Barthes cumpre bem seu propósito político — expulsar a história da literatura e substituí-la pela escrita em benefício do inventário estruturalista — mas deixou, em Sobre Racine, um de seus livros mais datados. É o que diz Compagnon, que para seus alunos, sobre Racine, prefere o mauriciano Thierry Maulnier.4
 
No entanto, minha releitura da controvérsia me surpreendeu. Convertido o pós ou neoestruturalismo em passado histórico, mesmo para quem — como eu — que fomos educados contra a folhagem logocida desses pensadores, minha linguagem (não meu léxico) como crítico é um pouco mais parecida com a de Barthes do que a de um Picard. Antes da conversão fatal dessa doutrina inovadora em academicismo e antes de Barthes — inimigo da Sorbonne e denunciante da perseguição por parte dos saudosos de Vichy liderados por Picard e outros “reacionários” — chegar ao Collège de France uma década depois e com muito alarde, era evidente que sua “crítica de interpretação” (na qual acolheu generosamente não apenas seus partidários e amigos, mas críticos adversos como as da Escola de Genebra) prevaleceu contra a velha “crítica universitária” representada por Picard e sua rotineira explicação de texto. Essa batalha foi vencida por Barthes em nome de todos, apesar de a interpretação infinita, originada em um certo Nietzsche (se o filósofo matou Deus, por que Barthes não faria o mesmo com o Autor?) e devida à Desconstrução, seja uma de suas incômodas consequências.
 
Segue S/Z (1970), aposta tão malsucedida em apresentar um modelo e um método que Barthes não entendeu que a carta que Claude Lévi-Strauss lhe escreveu sobre aquele livro era uma paródia, não porque fosse fraternal menos venenosa,5 porque essa “antiexplicação” do texto de Sarrasine (1830), um conto de Honoré de Balzac, é uma ficção suprema. É também um dos livros mais originais e engenhosos da história da crítica literária, mas, afinal de contas, uma obra de arte, não é científica (porque o gosto não está sujeito a refutação) e todas as tentativas que conheço de replicar S/Z (Rulfo sofreu no México, por exemplo) resultaram intransitáveis. O mictório de Duchamp pode ser reproduzido assim como a engenhosa leitura de Barthes, mas Lévi-Strauss, moderno por ser antimodernista desde o início, entendeu que o resultado só poderia ser paródico. Em S/Z, a narração “realista” e a história deslocada de cena, Barthes exercita, para além dos códigos, lexias, semas e proairetismos, “o prazer do texto” na hora de interpretar as sexualidades do escultor Sarrasine e do castrado Zambinella. Sexualizar sim, historiar nunca.
 
Logotetas, assim chamava Barthes, recorrendo a uma palavra grega, ao que hoje chamaríamos de “intelectuais públicos” e expô-los é no sentido de Sade, Fourier, Loyola (1971). Pode parecer estranho usar esse anglicismo para descrever o marquês libertino, mas o uso dado a Sade pelos letrados franceses do século passado não é outro: o autor de Justine ou os infortúnios da virtude (1791) foi postulado como a consciência extrema da modernidade, como esse “más allá erótico” (como disse Paz, um dos poucos escandalizados por esse culto, entre Camus e Onfray) que atingia todas as consciências preocupadas com o prazer, a dor e a transgressão, oferecido pelo pornógrafo como um produto desnazificado, exemplar de um anarquista de direita ou mesmo de um revolucionário nas sombras de maio de 1968. Nem mesmo Compagnon, tão próximo de Barthes, pôde afirmar se Sade era de fato o escritor favorito do semiólogo, acima de Proust, ou se o leu como uma maneira de passar com a nota mais elevada para reinar em Saint-Germain-des-Prés e no qual Blanchot, Bataille, Lacan, Klossowski, Paulhan, Beauvoir ou Foucault o precederam. Mais tímido, Sartre fez de Genet um Sade de baixa intensidade.6
 
Ninguém como Sade foi tão útil a Barthes para fazer da escritura uma função da linguagem onde a questão moral era, no mínimo, neutra. Mais do que uma filosofia (em todo caso, a de um materialismo iluminista muito vulgar), Sade é, muito naturalmente, o inventor do sadismo, entendido como a crudelíssima repetição regular de um mecanismo. Junto com ele, Charles Fourier e Inácio de Loyola são outros dois “fetichistas”, como diz Barthes, um dedicado ao amor universal da transparência absoluta e o outro aos exercícios espirituais chamados a influenciar o século, no espaço secular e mundano, com más intenções de vigilância e castigo. Quem os admira é um Barthes que em 1971 teria concordado em ser, também, a logoteta da contracultura, indiferente ao totalitarismo de Sade (um aristocrata dissoluto do Antigo Regime, que estava à frente do universo dos campos de concentração como Pasolini viu bem em Saló ou 120 Dias de Sodoma, um filme que perturbou Barthes e sobre o qual ele não sabia bem o que dizer),7 de Fourier (cujo socialismo, utópico e amoroso, está longe de ser um humanismo) ou de Loyola, fundador da Companhia de Jesus, ante da qual são notórias as poucas credenciais do estruturalista, ignorante do espanhol e capaz de associar grosseiramente o chicote das almas da origem basca com místicos como Juan de la Cruz ou Teresa de Ávila.
 
O logoteta, ao contrário de Michelet ocupado com os humores hipocráticos ou do autor de Sarrasine destituído de seu lugar como notário da Restauração e da Monarquia de Julho, influencia a sociedade por mais que a leitura de Barthes aspire a ser “pura” e essa contradição não poderia passar despercebida por ele mesmo. A partir desse momento, apesar de suas declarações frívolas ou “terroristas” (“a língua é fascista” etc.) ou suas tolices de companheiro de viagem (como o périplo na China com seus amigos de Tel Quel), se decide encarnar o paradoxo: o de ser um eficaz escritor didático (o midiático autor dos Fragmentos de um discurso amoroso (1977), e também de uma releitura do Werther goethiano e de alguns psicanalistas como Winnicott) e ao mesmo tempo, após a morte de sua mãe, uma nostalgia cada vez mais marcante dos antigos pré-modernos, como Chateaubriand.
 
Diante de ser um logoteta ou permanecer como pregador arrependido, Barthes se apega a Proust, ainda ligado ao mundo antes de 1914. Não é em vão que nunca publicou um livro sobre ele, mas Em busca do tempo perdido atravessa toda a sua obra, como a má consciência do romance, “uma reserva mítica”,8 e Proust aparece como o imperador noturno desse paraíso que Barthes havia negado, por várias razões, a Balzac e a Sade e seu amigo Sollers, em um livro de 1979, inconsequente por ser endogâmico e local. No primeiro, S/Z, a arte de ficcionalizar é banida em nome da escritura e no segundo o romance é apenas o nome da maquinaria, embora às vezes Barthes escape e faça de Sade outro amoroso, nada menos. Por outro lado, ao ler Marcel Proust, com conforto póstumo, nos encontramos com uma espécie de abjuração.

Marcel Proust. Foto: Fine Art Images.


O livro é composto por uma resenha entusiasmada de Marcel Proust (1966) de George Painter, uma biografia passada à pré-história do abundante inventário das vidas do romancista, porque o inglês é hoje visto como um competidor fracassado do próprio Proust, como um mau biógrafo. O surpreendente é descobrir que o autor de Crítica e verdade — no mesmo ano de 1966 — gostava de biografias — alguém pensaria que este é o mais antibarthesiano dos gêneros — ou pelo menos essa, a de Painter, bastante lírica — “antiga crítica” se havia então — para os padrões anglo-saxões. Em seguida, vem o mais canônico dos textos, “Proust et les noms” (1967), em que Barthes tenta ler o romancista no sentido de suas aproximações a Racine e Balzac; “Une idée de recherche” (1971), em que admite que toda crítica é anterior à criação e a fagocita como um pretexto, saída de tom não muito ortodoxa; segue um registro histórico-biográfico e filosófico sobre Proust, o suficiente para resultar numa longa conversa e temos também uma entrevista muito chata para a France Culture em que Barthes atua como cicerone diante das câmeras de TV e comenta os “lieux de mémoire” do Sr. das madeleines, para quem em sua homenagem até uma região leva o nome oficial de Illiers-Combray.
 
O texto capital, de outubro de 1978, é “Longtemps, je me suis couché de bonne heure”, conferência proferida no Collège de France e publicada postumamente em 1982, onde Barthes, um ano após a morte de sua mãe, se identifica plenamente com Em busca do tempo perdido, e discorre como uma “alquimia genial” que fez de um livro, ao mesmo tempo, ensaio e romance. Escrever um romance foi a última obsessão de Barthes, preocupação redundante na opinião de Compagnon, pois o que mais são as ficcionalizações barthesianas (S/Z, segundo eu) Roland Barthes por Roland Barthes, Fragmentos de um discurso amoroso ou A câmara clara (1980), onde de foto em foto, através do punctum e do studium, desencadeia uma história maravilhosa. Em busca do tempo perdido já é em 1978 o livro dos livros para Barthes, pois se origina de um ensaio abandonado (o Contra Sainte-Beuve arquitetato por Fallois em 1954) e é escrito numa carreira contra a morte. Em Marcel Proust, Barthes assume-se como um marcelista e não um proustiano, o que significa que há livros de Proust que o aborrecem, como O Caminho de Swann e, por outro lado, tudo o que tem a ver com o cidadão e escritor Marcel Proust (1871-1922) “diz respeito a ele pessoalmente”.9
 
Este Marcel Proust continua com um magnífico prólogo que Barthes preparou para uma edição de Em busca do tempo perdido no Livre de Poche, que nunca foi feita porque a transição dos direitos autorais de Proust para o domínio público estava em discussão legal devido ao interregno dos anos da guerra e da ocupação e esse prólogo, é preciso dizer, Barthes o interrompeu porque — como assinala Compagnon em L’âge des lettres (2015), suas memórias sobre o semioticista — só trabalhava por encomenda. Esse escrúpulo professoral, parece-me, o defendeu de seu sentimentalismo, sentimentalismo à moda de Rousseau ou sentimentalismo simples, o mesmo que aparece, sem que Barthes nunca deixe de ser elegante, em Marcel Proust.
 
Este Marcel Proust, portanto, é obra de um dândi, surpreendentemente wildeano. O que Proust nos ensinou, pode-se inferir de Barthes, é que, com efeito, a Natureza imita a Arte e que um Robert de Montesquiou importa porque encarna em Charlus e não o contrário. Se prestar essa homenagem à ficção não é original, se é isso o que é justamente Barthes, o antigo semiólogo, que, em vez de entrar Em busca do tempo perdido e fechar a porta atrás de si para ficar em um quarto higienicamente isolado do mundo e de seus doenças, como o moribundo Marcel, partiu para encontrar Proust na realidade e no mais decididamente documental. Se o grande romancista não deixou de ir ao Ritz nos últimos meses de sua vida, Barthes não vai se privar da festa em busca de Marcel, fugindo da “prisão da linguagem” estruturalista, como chamava, não sem alguma timidez, Fredric Jameson.
 
Os fragmentos apresentados depois, por Comment, em Marcel Proust, são os referidos em A preparação do romance, último curso de Barthes no Collège de France, no início de 1980 e cuja última edição crítica é apenas de 2015. Neles, ele retorna à gênese de Em busca do tempo perdido em Contra Sainte-Beuve, um dos temas recorrentes nas 184 fichas reproduzidas em Marcel Proust, a maioria em grande formato e alguns fac-símiles. Antes do processador de texto na tela, Barthes é — não poderia ser de outra forma – o último “escritor” e era sua a ficha de anotação acadêmica, a “escritura Bic”, uma oficina artesanal que não pode deixar de emocionar aqueles de nós que estudamos na anos setenta e oitenta do século passado e em que Barthes era um delicado ourives nessa atividade simplista que o assemelha (isso e não seu infeliz livro sobre o Japão, O império dos signos, de 1970) aos calígrafos orientais. Ver essas fichas expostas em enormes quadros transparentes pendurados, como aconteceu no Centro Georges Pompidou em 2002/2003, foi muito bonito; não é menos lê-las em Marcel Proust.10
 
Nessas fichas persiste um Barthes anterior — embora não seja preciso muita sagacidade estruturalista para ver que a descoberta dos nomes é essencial em Proust, embora seja também em Faulkner, digo eu — e aparece outro, mais infiel, para quem existem as circunstâncias biográficas, que, embora não sejam determinantes nas descobertas estéticas, são responsáveis ​​pelo “regime de preparação da obra”. Esse regime está, para Barthes, nas fichas e para Proust precisamente na ideia, que em má hora criticou Sainte-Beuve contra Balzac, da reaparição dos personagens que no século XIX vai de romance em romance e, Em busca do tempo perdido,11 é comprimida genialmente através das anotações manuscritas utilizadas por Proust para ampliar infinitamente sua obra, para desespero de seu editor Gaston Gallimard e dos tipógrafos. Outros temas assinalados nas fichas são, por exemplo: o Contra Sainte-Beuve deve ser publicado contiguamente ao romance porque a obra de Proust é uma totalidade que admite imitação à maneira neoclássica; se Rivière, depois da morte de Proust, queria podá-lo das passagens mundanas para deixar apenas as psicologizantes, Barthes faria o contrário; atrás de Madame de Villeparisis está Sainte-Beuve, enquanto a avó de Proust é o oposto do crítico; o paradoxo de todo o livro proustiano é que as últimas páginas são as primeiras a serem escritas.
 
Barthes se civiliza graças a Proust. Sua mediação permite conciliar o que parecia irreconciliável no estruturalismo: rejeitar o antropocentrismo e seu desprezado humanismo, esquecendo que na humanidade da linguagem reside seu sentido, seu sentido e sua intenção, o que irredutivelmente tem de humano na consciência, segundo Manfred Frank.12
 
Suponho que somente Proust poderia completar a abjuração de Barthes, impedi-lo de retornar completamente ao vício do distanciamento (mais que o “realismo”) de Brecht. Por isso, sua reivindicação da autonomia estética de toda obra permanece longe do solipsismo que o ameaçava em Sobre Racine e Crítica e Verdade e que foi o beco sem saída de Derridas e companhia.
 
Essa necessidade de realismo, essa urgência de rua, esse desejo de história (e não só dela, mas biografia e até de anedotas) deslumbra na parte gráfica de Marcel Proust intitulada “Proust et la photographyie. Examen d’um fonds d’archives photographiques mal connu. Séminaire du Collège de France” (1980). Nessa seção são reproduzidas cerca de sessenta fotografias de época em que aparecem, em ordem alfabética, as pessoas reais que poderiam encarnar, com as devidas reservas da crítica literária entendida sob os critérios do senso comum, nos personagens romanescos de Em busca do tempo perdido. Temos aí Alfred Agostinelli, os marqueses de Albufera e Castellane, Maurice Barrès, Sarah Bernhardt, Albert Arman de Caillavet e a sua viúva amiga de Anatole France, Gaston Calmette, Claude Debussy, Lucie Delarue-Mardrus, a marquesa Boni de Castellane, a Condessa Gyp, Reynaldo Hahn, Charles Haas, Marie de Heredia e um longo etc. que conclui com a fotografia de Jeanne Proust, nascida Weil, a pranteada mãe de Proust, como foi para Roland Henriette Barthes, nascida Binger, suas duas fontes do amor sentimental, literário e vívido. “Para suportar a vida”, lemos em algumas das fichas, “especialmente após a morte de mam estou condenado a um trabalho presente. Meu problema não é a memória: por isso que não sou proustiano, nem freudiano, nem bergsoniano”.13
 
Mas o surpreendente de Proust está nas frases seguintes que justificam por que essas imagens devem ser vistas no contexto de um seminário no Collège de France. Barthes diz, dirigindo-se a seus alunos: “O objetivo do seminário não é intelectual: trata-se apenas de inebriá-los com um mundo, como eu com essas fotos, como Proust com seus originais.”14
 
Maior reivindicação da autoria, da literatura como fixidez, do barulho do mundo, não se encontra num Barthes que morreu apaixonado pela poesia. São uma verdadeira abjuração se a modernidade tardia for associada às últimas vanguardas, pois, assim como Baudelaire desconfiava da fotografia como arte, Barthes estava inebriado com o cinema, a imagem em movimento ameaçadora, a atrofia contemporânea da memória. Essa nostalgia da chamada Belle Époque, do mundo de Marcel como uma toxina tônica, é a grande lição desse póstumo Marcel Proust. E como prova disso, Bernard Comment, na entrada da seção gráfica de sua edição, diz o seguinte:
 
“Foi na pressa de verificar a correta instalação do projetor no salão do Collège de France que Roland Barthes foi atropelado por uma caminhonete, na rue des Écoles, em 25 de fevereiro de 1980. Levado ao hospital da Salpêtrière, ele sucumbirá um mês depois ao que era então considerado complicações pulmonares. Não houve nenhuma sessão desse seminário nem foram pronunciadas as palavras introdutórias aqui publicadas na forma de notas escritas.”15
 
Notas
 
1 Barthes, Marcel Proust. Melánges, ficha 31.
 
2 Barthes, Marcel Proust. Melánges, p. 10.
 
3 Philip Thody, Roland Barthes. A conservative estimate, Chicago, University of Chicago Press, 1983, p. 142.
 
4 Antoine Compagnon, L’âge des lettres, Paris, Gallimard, 2015, p. 77.
 
5 Tiphaine Samoyault, Roland Barthes, Paris, Seuil (Fiction & Cie), 2015, p. 358-359.
 
6 Éric Marty, Pourquoi le XXe siècle a-t-il pris Sade au sérieux?, Paris, Seuil, 2011, p. 104.
 
7 Compagnon, , L’âge des lettres, p. 78-79.
 
8 Barthes, Marcel Proust. Melánges, ficha 31.
 
9 Barthes, Marcel Proust. Melánges, p. 128.
 
10 Marianne Alphant & Nathalie Léger, R/B. Roland Barthes, catálogo da exposição apresentada no Centro Pompidou de 27 de novembro de 2002 a 10 de março de 2003, Paris, Seuil/ Centre Georges Pompidou, 2002.
 
11 Barthes, Marcel Proust. Melánges, p. 157.
 
12 Manfred Frank, ¿Qué es el neoestructuralismo?, tradução de Marcos Romano Hassán, Cidade do México, FCE, 2011.
 
13 Barthes, Marcel Proust. Melánges, ficha 21 bis. Aliás, que me perdoe Gilles Deleuze (Proust e os signos, 1964), mas, ao contrário do que acreditam os professores de filosofia, os romancistas não os leem, de tal maneira que, talvez defeituosamente, mas por razoes de época e biográficas, além de familiares, Proust não poderia ser, se possível, mais que bergsoniano. Talvez o último Barthes concordasse.
 
14 Barthes, Marcel Proust. Melánges, p. 172.
 
15 Barthes, Marcel Proust. Melánges, p. 167.


* Este texto é a tradução livre para “Proust y su mundo mataron a Roland Barthes”, publicado aqui em Letras Libres.

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