Um trabalho contra as sombras

Por Felipe de Moraes

Primo Levi. Foto: Mario Monge


 
Pensar a obra de Primo Levi como um monumento da narrativa de testemunho, que não deixa esquecer as atrocidades do Holocausto, é sem dúvida essencial do ponto de vista histórico e cultural, ainda mais quando colocada em relação com outros depoimentos, manifestos, ou demais produções literárias ou memorialísticas de sobreviventes judeus que trazem a lume o funcionamento da máquina de extermínio nazista e o dia-a-dia nos campos de concentração, regidos por leis severas de obediência e de trabalho cujo ápice era o processo da total desumanização dos prisioneiros — Arbeit macht frei; no entanto, se se adota unicamente tal perspectiva sociológica de leitura, a mirada sobre o caráter literário dos textos perde força, bem como a possibilidade de uma análise estética que uma obra como a de Levi suscita. Além do que, atentar para certos aspectos formais de uma obra pode revelar sentidos latentes que o comentário exclusivamente sociológico não dá conta de desentranhar.
 
Meu objetivo, portanto, neste pequeno ensaio, é propor um comentário analítico de um dos capítulos de É isto um homem? que, a meu ver, é um dos mais significativos e belos do livro, e o mais bem construído do ponto de vista literário — ele se intitula “O canto de Ulisses”. Antes, contudo, gostaria de me deter em aspectos mais gerais da obra do autor italiano, ressaltando algumas linhas de força que marcam a sua produção literária.
 
***
 
Os gêneros que Levi praticou vão muito além da chamada “literatura de testemunho”, termo criado pela crítica que passa a designar narrativas como É isto um homem? (1946) e A trégua (1963); além de ensaios, escreveu uma série de relatos curtos que estão entre o fantástico e a ficção científica e um romance importante ao qual deu o título de A chave estrela; como poeta, cultivou o verso ao longo de toda a vida, após a libertação de Auschwitz. Ainda que sua produção fosse errática, ela rendeu um volume publicado em 1980, intitulado de Ad ora incerta [Em ora incerta], com poemas escritos concomitantemente à produção em prosa do autor. Não são poemas, como observa Maurício Santana Dias,
 
“eivad[o]s de desespero, como se poderia supor. A despeito da negatividade de seus temas e motivos, há algo nesses poemas [...] que parece correr no sentido contrário de uma escrita meramente desencantada. Há neles uma busca pela claridade, um trabalho contínuo contra as sombras.” (Dias, 2019, p.13).
 
“Uma busca pela claridade”. Guardemos esta ideia por hora, pois ela será importante mais adiante para a análise que pretendo desenvolver. Basta dizer que esse embate contra as sombras, contra a “legião dos fantasmas”¹ do fascismo, como disse o próprio Levi, só se dá com as armas da reflexão medida, ponderada e racional. Essa ideia de um mundo que precede a grande catástrofe da Segunda Grande Guerra, um mundo que para Primo Levi era luminoso, afeito meditazione serene [serenas meditações], na expressão de “Espera”, um de seus poemas, se confronta com a realidade insana da guerra, do morticínio e das ideologias cegas. Há uma confrontação constante, nesse sentido, entre essas duas forças antagônicas que cruzam a obra de Levi, marcando aquilo que se poderia chamar de uma poética do “claro-escuro”.
 
Em um poema escrito já para o fim da vida, o autor retoma essa dicotomia, quase como uma obsessão, para assinalar alegoricamente um ritmo cíclico entre a barbárie e a utopia. No poema, que se intitula “Il disgelo” [O degelo], o eu-lírico medita, observando os sinais da natureza, que o inverno está terminando e dando lugar aos primeiros brotos das flores, e as árvores que adquirem o primeiro verdor são “tenras como recém-nascidos” — “Le felci, agli orli della via/ Sono tenere come creature”. A vida que o eu-lírico tinha antes de o mundo se cobrir de gelo e definhar parece retornar, os caminhos se abrem e, assim, uma promessa de felicidade e do encontro com a amada se colocam como horizonte possível:
 
Quando a neve estiver desfeita
Vamos em busca do velho caminho,
Esse que está se cobrindo de espinhos
Por trás do muro do monastério;
E tudo será como antes. [...] (LEVI, 2019, p. 137)²   
 
A vida volta irromper, numa atmosfera fértil e propícia. Com imagens de plantas que fazem referência às bodas e à procriação, o eu do poema sugere que ele e o tu a quem se dirige (sua amada talvez) também podem voltar a se amar — “Sono già pronte [le felci] per i loro amori/ Alterni e verdi, più intricati dei nostri.”
 
A estrofe final reforça uma vez mais a dimensão alegórica de “O degelo”. O inverno ultrapassa a mera dimensão física de estação inclemente para adquirir um peso psicológico na experiência de vida do eu-lírico. O inverno é a imagem concreta na qual o autor traduz a realidade da opressão que deixa marcas no indivíduo:
 
Estamos cansados de inverno. O travo
Do gelo deixou suas marcas
Na carne, na mente, em lama e lenho.
Que venha o degelo e dissolva a memória
Da neve do ano passado.’’ (LEVI, 2019, p. 139)
 
O que Levi parece sinalizar para seu leitor, no limite, é uma circularidade da própria violência e barbárie que no poema são associadas ao inverno, à perda de vida do solo e à falta de luz. Mas do mesmo modo que na natureza, onde o inverno não dura para sempre, a primavera, ainda que demore, pode surgir como reflexo do desejo dos homens, como uma utopia almejada e cobiçada.
 
Isso cria na obra de Levi uma série de imagens que traduzem conceitos que se contrapõem o tempo todo — a inteligência e a brutalidade, a morte e a vida, a liberdade e a prisão. São conceitos que vigoram nas relações entre os homens e no convívio nem sempre pacífico que praticam, como está sempre nos dizendo o autor italiano. A dimensão da guerra permanece como uma mancha na obra de Levi, como um resquício que convive, na forma de trauma, com seus atos cotidianos e vitais e que acabam por se refletir na sua criação artística — “A guerra é eterna não só nas sociedades humanas, mas também nos domínios da criatividade, do pensamento, da literatura.” (FERRERO apud DIAS, 2019, p. 14). Escrever, portanto, e sopesar o que se viveu na condição de prisioneiro de um Lager, é superar o silêncio traumático na busca de um entendimento pacífico em relação à violência perpetrada pelo nazismo; em outras palavras, falar (e escrever) tem um sentido catártico e torna-se um imperativo. Talvez em nenhum outro livro de Levi essas dicotomias apareçam de modo tão intenso como estão colocadas em É isto um homem?, sobre o qual passarei a comentar brevemente a partir de agora.

Primo Levi. Foto: Mario Monge



 
Chiaroscuro
 
No prefácio que abre É isto um homem?, Primo Levi deixa bem marcado a intenção de seu livro: não o de fazer um inventário de “detalhes atrozes” da sua vida num Campo de Extermínio, mas sim de “fornecer documentos para um sereno estudo da alma humana”. (LEVI, 1988, p. 7). O livro nasce como reflexão e como uma “necessidade de liberação interior” (p. 8), uma necessidade de tentar recompor a própria identidade de homem, esfacelada.    
 
A narrativa principia com Levi apresentando ao leitor a vida que levava como jovem de 24 anos, recém-saído da universidade, e ingressante, por suas convicções políticas e seu desejo de ver uma Itália livre do fascismo, como um partigiano nas tropas de resistência. As passagens são rápidas e as transições entre uma cena e outra dos acontecimentos são feitas em flashes, típicos de um texto elaborado através da rememoração. Da sua prisão, pela polícia fascista italiana, até sua deportação e desembarque na Polônia, não são mais que sete páginas. Tudo é contado numa linguagem precisa e “descarnada”, que não tateia, mas que busca a expressão certeira e sem sentimentalismo.
 
A percepção que Levi tinha do tempo também se altera conforme vai perdendo sua personalidade e humanidade e sendo reduzido a uma coisa, a menos que um animal, a uma série numérica tatuada no braço. O ritmo do campo de Auschwitz é o ritmo do trabalho sem sentido, da fome e, sobretudo da sede. O tempo é sempre o mesmo, estagnado nas vozes de comando dos Kapos, que gritam ordens que precisam ser prontamente executadas — “Todos os dias parecem uns com os outros, e não é fácil contá-los.” (p. 57). O próprio leitor se perde no tempo cronológico da narração, momentos descritos por Levi, envolvendo tortura e desespero, que duram algumas horas no tempo físico, parecem durar meses no tempo psicológico de quem sofre.
 
No capítulo “No fundo”, que tem muitas reminiscências e diálogos com o Inferno de Dante, desde o título, Levi passa algum tempo sendo inspecionado e “limpo”, junto com outros prisioneiros, em um dos barracões. O tempo ali parece infinito. Quando a inspeção termina e todos deixam o lugar, o autor faz uma descrição breve do sol que se põe. Esses tipos de descrição são raros no livro, e por isso mesmo quando aparecem precisam ser observadas com atenção:
 
“Hora após hora, vai se acabando este primeiro longo, longo dia no limiar do inferno. Quando o sol se põe num redemoinho de sombrias nuvens cor de sangue, finalmente mandaram-nos sair do barracão.” (p. 37, grifos meus).
 
Como foi dito acima, a descrição da Natureza em Levi é quase sempre um reflexo da interioridade do próprio narrador. O céu, as nuvens, os eventos climáticos deixam de ser exclusivamente, na narrativa, uma indicação atmosférica que dá um caráter realista para o relato para se converter em imagem ou metáfora de uma condição interior do sujeito. Desse modo, a imagem “nuvens cor de sangue” representa não só um pôr-do-sol intenso de outono, como também a iminência da morte que paira para cada um desses homens. A cena ganha um movimento infernal através da imagem “redemoinho de nuvens” que reforça a expressão dantesca antinferno [“limiar do inferno”]. Aqui tem-se explícito um procedimento caro a Levi, que é a modulação de luz e sombra, do choque entre de um lado as forças obscuras e diabólicas que traduzem o totalitarismo e a guerra e o processo de desumanização do outro, e do outro a razão, a cultura e a luminosidade do pensamento, a “busca pela claridade”, em suma.
 
É desse modo que Levi tenta sobreviver no Campo, ele observa e pondera cada ação que o rodeia, cada intenção ouvida ou dita numa frase. Ele tenta entender o mecanismo que levou ao assassinato de milhões de judeus. Ou seja,
 
o que parecia inominável se nomeia: com palavras que parecem cortadas na pedra e, por isso, têm uma força de duração e presença incomuns. Vindo de uma experiência infernal que desarticulou para sempre não poucos sobreviventes, talvez o maior traço de Levi tenha sido o de tornar o que a muitas almas puras parecia inefável, dar visibilidade e concretude ao “mundo às avessas” — como se referia a Auschwitz —, traduzir o horror absoluto em palavras claras, cristalinas, e às vezes até jocosas. (DIAS, 2019, p. 13)
    
Em “O canto de Ulisses”, como talvez em nenhum outro capítulo de É isto um homem?, essa vontade de dizer se manifesta com mais força. É o capítulo com maior páthos de todo livro. Já tendo observado o funcionamento do campo, e feito quase uma taxionomia que dividia todos ali entre aqueles que submergem e aqueles que se salvam (outra referência ao Inferno de Dante), depois de ter entendido que ali se “matava sem ódio”, e sim por puro jogo de forças entre aqueles que mandam e aqueles que obedecem, depois de ter sido reduzido a um nada humano, e ser obrigado a vestir trapos e estar no limite de suas forças físicas e mentais, Levi e alguns outros companheiros — Deutsch, Goldner e Sivadjan — executavam um trabalho de raspar uma cisterna que logo mais seria calafetada. O primeiro parágrafo faz ecoar a imagem dos giros e fossos escuros do inferno dantesco, onde os condenados repetem movimentos eternos condizentes com seus pecados. A diferença é que nenhum deles havia cometido pecado algum:
 
Éramos seis, raspando e pintando o interior de uma cisterna enterrada no chão; a luz do dia chegava até nós só através da portinhola. Era um trabalho de luxo, ninguém nos controlava; só que estava frio, úmido; o pó da ferrugem irritava as nossas pálpebras e nos empostava a boca e a garganta num gosto como de sangue. (LEVI, 1988, p. 160).
 
Mais uma vez o contraste entre claro e escuro dá consistência à cena. A luz afastada do dia antecipa a chegada de Jean (também chamado de Pikolo), menino esperto e jovial que vem requisitar a ajuda de alguém para pegar a sopa minguada do almoço. Levi o admira, porque Jean ainda tem uma fagulha de esperança de que todo esse inferno um dia acabaria, de que a Alemanha seria derrotada e toda Europa saberia o que estava acontecendo com os judeus. Jean escolhe Levi para ajudá-lo com o transporte do tacho; no trajeto até as cozinhas eles conversam sobre a vida anterior, que parecia tão distante, quase como um sonho, mas que ainda era palpável. Sentem o ar da manhã e recordam suas casas, as paisagens da França e da Itália, recordam sobretudo suas mães. A vida se impõe, como uma necessidade.
 
Jean deseja aprender italiano, pois tem ótimas recordações do tempo em que passou na Ligúria. Levi se dispõe a ensiná-lo, ali mesmo, sem perda de tempo. Pronto lhe vem à mente o canto XXVI da Comédia, famoso por ser o canto no qual Dante encontra Ulisses, que lhe faz um discurso sobre “a antinomia do conhecimento que, ao mesmo tempo que liberta, destrói.” (DIAS, 2019, p. 13).
 
Levi vai declamando trechos de memória e traduzindo junto com Jean. Um momento de plenitude para ambos. Todo o sofrimento se abole e a criação literária se coloca não como salvação, mas como espelho no qual o lado positivo da realidade se mostra, como uma possibilidade de outra vida:
 
Cuidado, Pikolo, abre os ouvidos e a mente, eu preciso que compreendas:
 
“Considerate la vostra semenza:
Fatti non foste a viver come bruti,
ma per seguir virtute e canoscenza.”
 
É como se eu também ouvisse pela primeira vez: como um toque de alvorada, como a voz de Deus. Por um momento esqueci quem sou e onde estou. (LEVI, 1988, p. 167)
 
“Fatti non foste a viver come bruti/ ma per seguir virtute e canoscenza”. O leitor de É isto um homem? entende perfeitamente esses versos, assim como Levi os entendia. A fala de Ulisses ganha uma nova dimensão a partir do presente de Levi. A língua italiana e seu poema mais significativo são um lastro de humanidade e identidade no qual se agarram Levi e Jean nesse momento. Por isso a cena é narrada no presente do enunciado e não com distanciamento típico de uma memória recuperada — “Por um momento esqueci quem sou e onde estou.”
 
A fulminação provocada pelo poema de Dante suspende a realidade por um momento e cria uma descontinuidade no tempo da narração, pois faz com que Levi e Jean recordem o passado livre que tinham e ao mesmo tempo vislumbram um futuro, não de viver como brutos, mas de perseguir conhecimento — “algo grandioso que acabo de ver, agora mesmo, na intuição de um instante, talvez o porquê do nosso destino, do nosso estar aqui, hoje...” (p. 169-170).
 
O capítulo, entretanto, termina com o retorno à “fila da sopa” em meio a indivíduos esfarrapados. Levi faz questão de mostrar essa quebra e ressaltar o caráter dicotômico da cena que estava posto desde seu primeiro parágrafo — luz e sombra, cultura e barbárie.
 
Após esse momento, Levi não volta a rever Jean. Com o avanço das Tropas Aliadas e a derrota progressiva dos alemães, os campos de extermínio vão se desmontando. Nos momentos finais do Campo de Auschwitz, Levi está completamente degradado, a capacidade analítica que ele tentou manter ao longo de todo tempo no Campo se perde e dá lugar ao instinto de sobrevivência.
 
Somente após a Liberação é que o autor vai retrabalhar o vivido e escrever sua obra. Uma obra que permanece tão viva não só porque “a cadela do fascismo está sempre no cio”, nas palavras de Brecht, mas também porque Levi, como poucos, conseguiu dar forma a uma matéria histórica traumática que foi o Holocausto. Colocar em tensão conceitos opostos e articulá-los no interior da obra literária é o que dá força à sua criação e exige leituras e releituras.
 
 
Notas
 
1 Levi utiliza essa expressão num apêndice que ele acrescenta a Se questo è un uomo, em 1976, com intuito de responder a algumas perguntas que surgiram, passados trinta anos desde a publicação do seu livro. É um texto curioso, já que além de fazer uma espécie de balanço da obra, realiza também uma “crítica da recepção” do livro, sem nunca deixar de lado sua percuciente visão dos homens e das situações. Cf. LEVI, Primo. “Appendice a Se questo è un uomo”. In. Se questo è un uomo. Milano: Einaudi, 2014, s.p. [Ebook].
 
2 Poema escrito em 2 de fevereiro de 1985. É interessante comparar esse poema com o capítulo de É isto um homem? chamado “Outubro de 1944”, no qual o autor relata o implacável inverno polonês e como isso tornava as condições de sobrevivência em Auschwitz ainda mais penosas. Nesse momento ele pensa na chegada da primavera como um alívio mínimo aos suplícios pelo qual todos ali passam.
 
 
Bibliografia
 
DIAS, Maurício Santana. “A poesia de um sobrevivente”. In. Mil Sóis – poemas escolhidos. São Paulo: Todavia, 2019, p.9-17.
LEVI, Primo. É isto um homem?. Rio de Janeiro: Rocco, 1988.
LEVI, Primo. Mil Sóis – poemas escolhidos. São Paulo: Todavia, 2019.
LEVI, Primo. “Appendice a Se questo è un uomo”. In. Se questo è un uomo. Milano: Einaudi, 2014, s.p. [Ebook].
 

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