Todas as Carmen

Por Ernesto Diezmartínez


Melissa Barrera e Paul Mescal, em Carmen.


 
Quanto é possível descarmenzar Carmen? Ao longo da sua história cinematográfica — mais de oitenta versões, entre curtas e longas-metragens, filmes de animação, musicais, telefilmes e óperas filmadas —, “la Carmencita” foi transferida para diferentes tempos e espaços. Foi a cigana original que aparece no romance publicado por Prosper Mérimée em 1845, mas também a ingovernável jovenzinha afro-americana que enlouquece um sério soldado em Carmen Jones (Preminger, 1954), a indomável bailarina de flamenco que interpreta Carmen e que se (con)funde com o personagem na soberba versão de Carlos Saura de 1983, a jovem criminosa francesa que seduz um policial até transformá-lo em delinquente Prénom Carmen (1983) de Godard, a robusta suburbana sul-africana no musical U-Carmen-eKhayelitsha (Dornford-May, 2005) e, agora, uma mexicana clandestina nos Estados Unidos (Melissa Barrera) em Carmen (França-Austrália, 2022), audaz e propositiva obra-prima de Benjamin Millipied.
 
O álibi perfeito para todas essas diferentes versões da história original de Mérimée encontra-se em um adjetivo-chave: apontar que o filme em questão é “inspirado” no romance, e não “baseado” nele. Desta forma, vale tudo para reimaginar a história de uma das mais emblemáticas femmes fatales da história cultural do Ocidente, comparável às míticas e bíblicas Dalila, Jezabel ou Salomé. Afinal, o arquétipo se repete, com mínimas variações, em todas essas histórias: o homem de poder, o herói admirado, o indivíduo respeitável, se depara com uma mulher que o enlouquece, que o torna escravo de seus caprichos, que até o transforma em objeto de ridículo, em palhaço, como acontece no romance de Heinrich Mann O anjo azul (1905) e em sua canônica adaptação cinematográfica de Josef von Sternberg (1930).
 
As três primeiras versões cinematográficas importantes de Carmen, as três de Hollywood, as três de 1915, foram fiéis à história de Mérimée: a de Cecil B. de Mille, com Geraldine Farrar como a cigana e o futuro Pancho Villa Wallace Reid como Don José ; a muito bem-sucedida dirigida por Raoul Walsh, com a exótica superestrela Theda Bara como Carmen; e, por fim, aquela que é mais fácil de assistir hoje, Burlesque on Carmen, uma paródia em dois rolos estrelada e codirigida por Charles Chaplin para os estúdios Essanay, na qual o comediante deixou por um momento seu traje de vagabundo para encarnar o oficial espanhol Darn Hosiery (?), conquistado pela charmosa cigana Carmen (uma dinâmica Edna Purviance), corruptora do contrabandista Remendados (o comediante vesgo Ben Turpin) e apaixonada pelo bravo toureiro Escamillo (John Rand). Escrita pelo próprio Chaplin, esta adaptação da história original de Mérimée curiosamente mantém a mesma progressão dramática, incluindo as traições, os ciúmes e a violência, apenas temperada pela comédia física do primeiro Chaplin. Também contém uma reviravolta final que deve ter aliviado o público da época: no desenlace, após o ridicularizado soldado interpretado por Chaplin esfaquear Carmen e ela cair ensanguentada, alguns segundos se passam antes de Purviance se levantar do chão enquanto Chaplin maneja o punhal e os dois acabam sorrindo para a câmera, quebrando ludicamente a quarta parede.
 
Há pouca comédia em Carmen Jones, a adaptação cinematográfica do espetáculo homônimo da Broadway, baseado mais na ópera de Bizet de 1875 do que no romance de Mérimée. Dorothy Dandrige e Harry Belafonte são os carismáticos protagonistas, embora as suas vozes tenham sido dubladas para o filme, pois embora ambos fossem cantores profissionais, nenhum deles conseguia elevar a voz aos limites dos registros operísticos exigidos pelo diretor Otto Preminger. O filme é, talvez, a primeira reimaginação bem-sucedida da história original: ambientada no sul dos Estados Unidos, Carmen é uma jovem sensual que trabalha numa base militar fabricando paraquedas. No lugar, encontra o sério cabo Joe, que está prestes a deixar o exército para se tornar piloto, planos que dão errado quando o ingênuo soldado cai no feitiço desta Carmen, que canta a Habanera de Bizet perfeitamente traduzida para o inglês com o título de “Dats Love”.
 
Embora na época a revista britânica Sight & Sound tenha descartado o filme de Preminger em uma linha — “ideia interessante, elenco talentoso, mas uma direção muito medíocre” — Carmen Jones continua se mantendo não apenas pela importância histórica de um filme que foi protagonizado por um elenco exclusivo afro-americano — não existe um branco na tela, nem entre os figurantes —, mas porque a adaptação das canções originais de Bizet é impecável, como é o caso de “Beat out that rythm on a drum ”, um número musical localizado em um bar onde soam o jazz e o blues e, sobretudo, “Stan’ up and fight”, como um engenhoso substituto da emblemática “Canción del toreador” — que aqui, aliás, não é um toureiro, mas um boxeador. Se falta ao filme o dinamismo e a imaginação espacial dos melhores musicais de Hollywood dos anos 1950 — Preminger nunca foi um Stanley Donen —, não o desmerece quando comparado com outras reimaginações posteriores, embora a câmera de Sam Leavitt só possa ser vista favorecendo o star power de seus protagonistas, Dandridge e Belafonte.
 
Três décadas depois, com apenas alguns meses de diferença, foram lançadas as duas adaptações mais audaciosas de Carmen já feitas, mais “inspiradas” do que “baseadas” na história de Mérimée. Em Prénom Carmen, Godard se apresenta como um diretor de cinema internado em um hospital onde recebe a visita de sua sobrinha favorita, Carmen (Maruschka Detmers), que é parceira de um terrorista que planeja primeiro assaltar um banco e depois cometer um sequestro. Um dos guardas do banco chamado Joseph (Jacques Bonnaffé) se apaixona pela bela assaltante, abrindo seu destino criminal. Como seria de esperar no caso de Godard, o amour fou de Joseph por Carmen e o subsequente triângulo amoroso servem ao cineasta francês como simples excipientes para desmantelar a abordagem original da trama, desconstruindo o próprio filme a que estamos assistindo, que acaba se tornando um filme pós-moderno de gangsters em que há espaço para reflexões sobre o próprio cinema e o surgimento da imagem videográfica digital, um tema filosófico e formal que se tornaria recorrente no cinema de Godard.
 
Alguns meses antes, Carlos Saura entregaria sua própria versão de Carmen que, mantendo-se fiel ao arquétipo da personagem feminina da mancornadora Carmencita, coloca a história dentro de um fascinante jogo de bonecas russas. O coreógrafo Antonio Gades (ele mesmo) procura uma jovem bailarina para encarnar Carmen em sua adaptação de dança flamenca e encontra sua candidata perfeita em Laura del Sol, uma sevilhana que sempre chega atrasada nos ensaios e sai cedo depois, ou seja, que faz o que quer e quando quer (“Quando me proponho a fazer algo, eu consigo”) e que mente o tempo todo com tanta desenvoltura que qualquer político da campanha a invejaria. Acompanhada pelos acordes tocados pelo próprio Paco de Lucía, a apaixonada coreografia flamenca do próprio Gades (o confronto entre Laura del Sol e Cristina Hoyos!) e a inesquecível intervenção de Pepa Flores cantando “No llores más”, a Carmen de Saura não apenas é provavelmente o melhor filme já feito sobre o romance de Merimée, mas Laura del Sol é, de cima a baixo do tablao, uma Carmen pela qual qualquer pobre-diabo, como a pessoa que escreve isso, enlouqueceria. Quem atira a primeira pedra em Antonio Gades?
 
Algo semelhante acontece com a “estranhamente bela” Carmen interpretada por Pauline Malefane em U-Carmen eKhayelitsha. Mais uma adaptação da ópera de Bizet do que uma reelaboração do romance de Mérimée, esta nova/velha história se passa em um bairro periférico da África do Sul. Uma fera e cultivadora de tabaco chamada Carmen conquista um policial novato certinho, enquanto a indomável mulher, ligada a um perigoso contrabandista, se vê atraída por uma celebridade local, um certo cantor de ópera que vemos, a certa altura, cantando “La canción del toreador” na televisão. Cantada inteiramente em xhosa e misturando a música original de Bizet com acordes da música popular sul-africana, U-Carmen… é uma vibrante adaptação que oferece um ponto de vista diferente dos mesmos personagens, pois aqui nenhum — nem mesmo o bom policial Jongikhaya de Andile Tshoni — é completamente inocente. Todos se sabem prisioneiros de suas paixões e nenhum deles, a começar por Carmen, quer fugir dessa prisão.
 
A nova versão de Carmen, adaptada pelo próprio diretor, o bailarino e coreógrafo Benjamin Millepied, funciona, talvez inadvertidamente, como uma espécie de somatório de todos os filmes anteriores. Mais uma vez há uma mudança de cenário como em Carmen Jones — neste caso, a fronteira México-Estados Unidos e os cenários noturnos de Los Angeles —, aparece o flamenco como um leitmotiv expressivo assim como no filme de Saura, a história vai de um triângulo amoroso para se tornar uma espécie de thriller urbano como na adaptação de Godard, e há música expressamente escrita para o filme como em U-Carmen, composta aqui por ninguém menos que Nicholas Brittell, com contribuições importantes de Taura Stinson e da mexicana Julieta Venegas.
 
Ninguém jamais poderá acusar o recém-chegado Millepied de falta de coragem. Infelizmente, a ousadia não compensou aqui como seria de se esperar: todos os elementos já anotados — mais a elegante fotografia sempre em movimento de Jörg Widmer e o colorido desenho de produção de Steven Jones-Evans, com vermelho e amarelo dominantes — funcionam por conta própria, mas não para dar progressão dramática à história, que, de outra forma, foi tão transformada que poderiam ter tirado Mérimée dos créditos e ninguém teria protestado. A Carmen de Melissa Barrera e o Don José de Paul Mescal — ou melhor, Aidan — não são os mesmos personagens conhecidos, mas apenas um casal de amantes trágicos, encurralados pelo destino, mais no estilo de Romeu e Julieta do que no de Mérimée ou de Bizet.
 
De qualquer forma, é impossível descartar totalmente essa nova Carmen, embora ela valha mais por suas partes isoladas: a coreografia inventiva de flamenco, balé e dança de rua de Millepied; a avassaladora partitura orquestral/coral de Britell que, por vezes, nos remete ao conhecido ostinato de seu tema musical de Succession; e, claro, o carisma de Melissa Barrera, nascida em Monterrey, e a fragilidade viril da estrela em ascensão Mescal, que fazem o que podem com seus personagens trágicos, mais estereótipos do que arquétipos. Parafraseando o conciso juízo do crítico anônimo da Sight & Sound sobre Carmen Jones, esta Carmen de Millepied está cheia de ideias interessantes, seu elenco é inegavelmente talentoso, mas sua execução geral é indisciplinada e, em última análise, fracassada. Isso é o que eles ganham por descarmenzar tanto Carmen. 


* Este texto é a tradução livre de “Todas las Carmen”, publicado inicialmente aqui, em Letras Libres.

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