Witold Gombrowicz

Por Enrique Vila-Matas


Witold Gombrowicz. Tandil, 1958.


 
Antes de tudo, devo esclarecer a maneira ridícula como surgiu meu fascínio pela literatura de Gombrowicz. Surgiu muito antes de ler sua obra. Nasceu exatamente do contato com uma fotografia que acompanhava a entrevista que lhe fizeram no primeiro número da revista espanhola Quimera. Gombrowicz posava com um boina, muito altivo no alto do que parecia ser uma carruagem, em Tandil, Argentina. Ele tinha o que eu entendia que deveria ter, um rosto arrogante de uma pessoa inteligente. Ainda não sabia que ele havia escrito: “Quanto mais inteligente se é, mais tolo.”
 
Eu ainda não sabia disso ou de muitas outras coisas, mas me pareceu intuir que na entrevista Gombrowicz dizia coisas geniais ou complicadas. As frases complicadas acabaram parecendo-me ainda melhores do que as geniais. Quero ser parecido com ele, pensei imediatamente. Não queria ser como Juan Benet ou Sánchez Ferlosio. Queria ser um escritor não-espanhol e, se possível, raro e do país mais estranho que pudesse encontrar. E quando chegasse à maturidade, queria escrever sobre a imaturidade, como Gombrowicz, e ter uma cara tão orgulhosa quanto a dele. Como digo, foi um amor à primeira vista através de uma fotografia e algumas palavras ditas numa entrevista que li às pressas. Um começo de paixão um tanto ridículo. Claro, é bastante evidente que sempre se começa com alguma coisa. Da mesma forma que — outra evidência — o amor é cego. De repente, tudo sobre Gombrowicz começou a parecer fascinante para mim. Mas a irradiação do encanto, por muito tempo, veio apenas do espaço das entrevistas e das fotografias que encontrava deste escritor. Faltava-me ler os livros do tal Gombrowicz. Faltava-me nada menos que isso. Eu pensava, no entanto, que essas leituras poderiam esperar, porque, afinal, eu ainda era jovem e imaturo. É evidente que tinha uma boa e terna desculpa. Ou não?
 
A primeira coisa que fiz foi ler sua vida. Voltarei a fazer isso ao longo destas seis horas e quinze minutos (simbólicas, não tenha medo) que vamos dedicar a Gombrowicz. Sua vida foi interessante? Foi, mas não a invejo. Isso me permite entrar no assunto sem muita justificativa e com uma certa descontração, talvez também produto da hora. Escrevo isto às seis e quinze da manhã, em Barcelona. Está chovendo. E me lembro da mãe de Gombrowicz, aquela mãe que, com seu discurso chato e sua tendência a acreditar na realidade, explica a linguagem vanguardista e provocadora do filho, que sempre entendeu que uma mãe com senso normal da realidade era como um peixe que pega a isca e não vê a linha.
 
O mundo está cheio de mães realistas, mas nem todas têm filhos como Gombrowicz. O futuro escritor nasceu em 4 de agosto de 1904 na quinta de Maloszyce, propriedade de seu pai, localizada a cerca de duzentos quilômetros ao sul de Varsóvia. A partir dos seis anos começou a fazer uma viagem anual com sua mãe realista, iam preferencialmente a Áustria e Alemanha. “Sou um artista por causa da minha mãe”, dizia Gombrowicz a Dominique de Roux numa das entrevistas realizadas por ele em Vence. Abolir a tradição, a convencionalismo, o engano da forma, tudo isso chegou a Gombrowicz da rebelião que começou tão cedo contra sua bem-aventurada mãe. Ela era fascinada pelos médicos eminentes, os professores, o mundo real, os grandes pensadores, as pessoas bem-educadas e geralmente as pessoas decentes e sérias. E foi ela quem, sem querer, empurrou o filho para o mais puro disparate, para aquelas nuances do Absurdo que dominariam anos depois o colorido artístico do excêntrico Gombrowicz.
 
Por volta de 1914 o escritor descobriu a forma ideal de atormentar sua rígida e realista mãe. “Consistia em afirmar sistematicamente o oposto do que ela poderia dizer.” A mãe dizia, por exemplo: “Está chovendo”. E, de fato, estava chovendo em Maloszyce. Mas o filho dizia o contrário: “Como que chove? Brilha um sol esplêndido.” A mãe se desesperava. “Está chovendo, estou vendo chover.” Dessa técnica de dizer o contrário, ou seja, dessa impagável escola alimentada pela mãe, surgiu no jovem Gombrowicz sua futura obsessão pelo descabido. Nesse jardim-de-infância aprendeu a dizer o contrário do que dele se esperava, aprendeu a ser um adolescente profissional, a analisar o tema sempre fascinante da imaturidade, a boicotar a forma nacional polonesa (“quando escrevo não sou nem chinês nem polonês”), a celebrar piedosamente o absurdo, a se levantar contra aqueles que lançavam anátemas contra si mesmo, a proclamar que a arte goza de melhor saúde quando não surge diretamente do meio artístico: “A capacidade de mergulhar no absurdo pertence à minha mãe a quem devo isso.”
 
Em 1926 formou-se em Direito em Varsóvia. No ano seguinte, ele viajou para a França, onde se cercou de amigos que se dedicaram ao tráfico de escravos brancos. Cinquenta meses depois, de volta ao seu país, começou a assentar a cabeça e também a bunda, isto é, a frequentar os cafés literários de Varsóvia. Em 1936 desenvolveu amoricos com sua cozinheira, muitos relacionamentos com as criadas e, segundo suas próprias palavras, “um flerte com uma bela poetisa”. Em 1937, apareceu uma de suas obras mais famosas nas Edições Roj de Varsóvia, Ferdydurke, uma importante graça, um tratado sobre a imaturidade cuja sombra se projetou sobre o Maio de 1968 e acabou convertendo seu autor em algo próximo — principalmente a juventude francesa de então — a uma estrela pop (ver a edição dedicada a ele na revista Les Inrockuptibles, por exemplo).
 
Em 1938 passou uma longa temporada na região montanhosa polonesa dos Tatras, onde se recuperou de problemas físicos. No ano seguinte, foi convidado pela companhia de navegação polonesa para a viagem inaugural do navio Chorbry. Partiu para Buenos Aires no primeiro dia de agosto e, durante sua breve estada na Argentina, estourou a Segunda Guerra Mundial. Ocupada a Polônia, sua permanência em Buenos Aires durou até 1963, ou seja, vinte e quatro anos.
 
Na Argentina percebeu que havia passado de sua realista mãe polonesa para um conclusivo mundo de vacas espiãs. É essencial ler suas reflexões existencialistas sobre seu inquietante e proverbial encontro com o olhar de uma vaca. Embora possa ser lido em poucos segundos, recomenda-se passar um quarto de hora na leitura desse encontro, ruminando sobre, como se fôssemos nós mesmos uma pobre e vulgar vaca. Talvez estejamos diante de um texto fundamental de Gombrowicz:
 
Passeava pela avenida ladeada de eucaliptos, quando de repente apareceu, de detrás de uma árvore, uma vaca. Parei e trocamos olhares com o branco dos olhos. A essa altura, sua bovinidade surpreendeu minha humanidade e me senti confuso como homem, ou seja, em minha espécie humana [...] Eu havia permitido que a vaca me olhasse e me visse — isso nos tornava iguais — e de repente eu mesmo tornei-me em animal, mas um animal estranho, quase diria proibido...
 
Às vezes penso que ler Gombrowicz é como continuar aquele seu passeio humano interrompido pelo olho bovino, mas sentindo-nos “desconfortável [...] na natureza que nos cerca por toda parte, como se [...] nos contemplasse”. Enfim. Por falta de espaço e outros motivos, os vinte e quatro anos que Gombrowicz passou na Argentina podem ser lidos aqui em poucos minutos, contanto que depois voltemos com mais paciência para pensar na experiência argentina do escritor. E não há melhor maneira de pensar nisso do que se deter nos dois volumes de seus Diários, onde o leitor encontrará com profusa riqueza de detalhes os momentos mais brilhantes — não é à toa que há retratos de momentos, histórias de momentos deslumbrantes, de momentos em que um pensamento nasce em relação muito estreita com conteúdos casuais do ambiente —, os momentos mais esplêndidos alcançados por Gombrowicz ao longo de toda a sua escrita, não sei se digo também ao longo de sua carreira.
 
Era um mestre em retratos de momentos. Mas continuemos. De que carreira estamos falando quando falamos de Gombrowicz? Sejamos justos. Na realidade, quando o sucesso chegou — o que coincidiu com seu retorno à Europa em 1963 — parece não ter encontrado nele grande gosto. Entendeu muito bem o sucesso apetece enquanto não o tem. Uma vez alcançado, pode ser um grande aborrecimento para a carreira de alguém avançar bem:
 
O que posso fazer? Eu estou nisso! Desde que escrevo, sempre tive que destruir alguém para me salvar. Se em Ferdydurke aceitei críticas, foi por me eliminar do jogo, por estar de um lado. Minhas investidas contra os poetas e os pintores também foram ditas pela necessidade de me colocar de lado. Eu morria de vergonha só de pensar que um dia eu também seria um artista como eles, que me tornaria um cidadão dessa ridícula república de almas cândidas, uma engrenagem dessa máquina horrível, um membro do clã. Por nada no mundo!
 
Enquanto o sucesso não chegava, Gombrowicz esteve na suave Argentina. Xadrez, vacas e pornografia. Em 1941, experiências homossexuais com meninos das favelas de Buenos Aires. Em 42, bilhar e muitas conversas no Café Rex. Em 43 ele vê como um pequeno círculo de amigos está se formando ao seu redor e também vê como as mulheres que acreditam em seu trabalho lhe dão dinheiro. Em 44 começou a escrever sua peça O casamento nas montanhas de Córdoba. Em 47 inicia Transatlântico. Dez anos depois, quando ocorreu o degelo político na Polônia, todas as suas obras começaram a ser publicadas em seu país. Ao mesmo tempo, aparecem entusiásticas críticas a Ferdydurke em Paris, o que fez com que começasse a ser traduzido para todas as línguas, com exceção das dos países do Leste europeu. De 1958 é a foto em que é visto de boina sentado numa carruagem na cidade de Tandil, a foto que eu veria anos depois e que me levaria a admirá-lo pela sua presença física e pelo que dizia nas entrevistas, a foto que me fez sentir por ele momentos de uma certa atração. Embora ler sua obra, o que se diz ler, não o li até 1993. Li, então, muito tarde e convencido de que minha escrita era muito parecida com a dele. A surpresa foi grande quando naqueles dias, em maio de 93, numa viagem de ônibus a Teruel, li o primeiro volume de Diários e vi com grande espanto que não se parecia em nada, mas em nada, com o que eu escrevia. Durante anos imaginei copiá-lo e isso me ajudou, sem saber, a criar meu próprio estilo.
 
Querendo me parecer com ele, acabei parecendo comigo. Ao comentar isso com o grande Sergio Pitol — tradutor e grande admirador de nosso escritor —, ele se limitou a me dizer que havia uma aspiração de Gombrowicz com a qual se identificava acima de qualquer outra e essa não era outra coisa senão a vontade de ser alguém próprio apesar do conhecimento que os outros nos criam. Certamente se referia a uma frase-chave dos Diários de nosso escritor: “Não sei quem sou, mas sofro quando me deformam, só isso.”
 
A mesma coisa acontece comigo agora. Acredito que ao longo destes últimos anos fiz muito bem em dizer que não sei quem sou — sou, em todo caso, qualquer escritor exceto Gombrowicz —, mas que peço que outros não me expliquem quem sou, porque para isso prefiro ser Gombrowicz. Voltemos a ele. Em 1963 deixou Buenos Aires definitivamente, embarcou no Federico. “Matem Borges!”, gritou para seus amigos portenhos do alto da embarcação. Sabe muito bem o que se diz, é um conselho de enorme sensatez, ao qual não vão dar ouvidos seus pobres discípulos, que andavam para sempre arrasados ​​pelas estradas mais planas do Pampa.
 
Depois de um quarto de século na Argentina (“Aí se sente a presença da Europa com muita mais intensidade do que na Europa, e ao mesmo tempo se está fora dela. Além disso, naquele território de vacas não se aprecia a literatura”), chega em Barcelona a 22 de abril. Não desembarca porque, como pude apurar conversando com Rita Gombrowicz (a jovem canadense que conheceria naquela viagem definitiva à Europa e com quem se casou), ele não tinha dinheiro e talvez a Barcelona de 1963, aliás, não o interessava em nada. Rita, em todo o caso, tem a certeza de que não pôs os pés naquela cidade e que esperou pelo dia seguinte, esperou a embarcação atracar em Cannes para pôr os pés na Europa. Nesse dia, 22 de abril, fui a uma matinê de música bem moderna, de música dos Los Pájaros Locos. Assim anotei em meu recém-inaugurado diário, tinha então quinze anos e me deram o que se chama de diário americano. Fui ouvir Los Pájaros Locos sem, é claro, ter a menor ideia de que aquele seria o dia em que estaria mais próximo de outro pássaro desatinado da minha vida, o grande Gombrowicz.
 
No dia seguinte, eu ainda era, é claro, um estudante. Gombrowicz, por sua vez, pegou o trem Mistral em Cannes, direto para Paris. Nesta cidade, em um quarto de hotel, perto da Ópera, teve que abrir uma janela porque estava com falta de ar e respirando cada vez pior. Começou a entender que a Europa, para ele, significava a morte: “Eu disse a mim mesmo, você chegou ao fim da estrada, está acabado”.
 
Dias depois, chegava a Berlim, onde havia ganhado uma bolsa de estudos por um ano. Continuava respirando mal. Estava finalmente naquele lugar demoníaco (de acordo com suas próprias palavras) de onde havia começado a Grande Ruína, incluindo a dele. Aquela ruína forjada pelo ardor guerreiro que o deixou preso um quarto de século na Argentina: “Resisti em Berlim apenas um ano, com um sorriso ambíguo nos lábios, a um passo da Polônia, taciturno e com voz pálida”. Em Berlim não demorou muito para pegar uma gripe, uma gripe de nada que quase não o deixou morto. Deram-lhe o Prêmio Internacional de Literatura e com ele finalmente veio uma onda calorosa de leitores e também um discreto bem-estar econômico que comentava cinicamente: “Um apartamento pequeno, um carrinho de bebê, uma mulher, uma vida familiar. Então, aqui estou eu, um escritor, e quando tiver mais de sessenta anos, posso dizer o que qualquer aluno depois de obter um diploma de medicina ou de engenharia: sou alguém, fiz a mim mesmo.” Parecia levar em consideração uma frase de Robert Walser: “Para que um escritor se torne alguém não se faz mais que rebaixá-lo à condição de engraxate”.
     
De fato, ele já era alguém, não como na Argentina, onde até as vacas — com as honrosas exceções de seus amigos Virgilio Piñera, Juan Carlos Gómez (El Goma), Mariano Betelú, Alejandro Russovich e alguns outros — desprezavam sua literatura. Na Europa ela era valorizada, mas talvez o reconhecimento tenha chegado tarde demais, porque a Europa — agora ela podia ver — era uma janela de hotel, ao lado da Ópera, sem ar. Nabokov já havia advertido isso na época em que repetia vez ou outra em seus romances uma estrutura de enredo segundo a qual o protagonista que viaja permite que a destruição o domine e que isso aciona o mecanismo que desencadeará o fim da história E é que a nostalgia de um lugar só enriquece enquanto se conserva como nostalgia, mas a sua recuperação significa a morte.
     
Apesar do reconhecimento, agora tudo parecia indicar que a Mão (assim chamava seu destino, tão gentil com ele quando o depositou na Argentina no início da Segunda Guerra Mundial e tão esquivo depois) havia deixado de ser propícia para ele. A mesma Mão que o colocara no país das vacas que não apreciavam a literatura, agora conseguira que não pudesse saborear as alegrias senão através de um vidro feito de uma falta, de uma suprema falta de ar: “A Mão me impôs a ascese, e eu a aceitei sem questionar. Sempre estive convencido, desde o início, de que a literatura não poderia me proporcionar nenhuma vantagem material. Na verdade, nunca tinha contado com isso. Resolvi trabalhar como antes. E me dediquei a Cosmos, que terminei em Vence.”

Witold Gombrowicz. Vence, 1965. Foto: B. Paczowski.


     
Em Vence, sua última residência, foi tirada uma fotografia em que aparecia como “gárgula” de sua casa e que hoje é um documento — Rita Gombrowicz me ofereceu uma — que aprecio muito mais do que a tola fotografia de Tandil. Em Vence, respondeu às perguntas de um novo amigo, Dominique de Roux. Todas as perguntas bem-intencionadas, especialmente uma, a que se interessava em saber por que, no final da Segunda Guerra Mundial, aquela Mão que o protegia não o depositara, por exemplo, na Europa Ocidental. De Roux desconhecia, portanto, o perigo das correntes de ar europeias, principalmente as de Paris. Gombrowicz, que já intuía qual era o seu verdadeiro destino, viu como lhe ofereceram em uma bandeja uma resposta há muito meditada: “Porque um dia ou outro teria ido parar em Paris, e isso, obviamente, a Mão não o desejava.”
    
Paris — estaria dizendo a Dominique De Roux — o teria sufocado antes do tempo, teria passado os dias com o pedante Sartre no Café de Flore, não teria respirado o tolo ar bovino daquela Argentina europeia que o fez livre. Às vezes me pergunto se, ao falar com De Roux, ele não se lembrava constantemente desta frase de Malraux que tanto apreciava: “Em Paris, os intelectuais muitas vezes são incapazes até mesmo de abrir um guarda-chuva.” A propósito, olho agora pela minha janela e vejo que ainda está chovendo em Barcelona. E lembro que não tenho guarda-chuva. Se eu continuar escrevendo sobre Gombrowicz, não me molharei. É a única certeza que me vem agora enquanto me pergunto se sou eu que há pouco olhei pela janela e que não tenho guarda-chuva. “Eu me crio através da minha obra. Primeiro combaterei, depois saberei o que sou”, ouço Gombrowicz dizer.
     
Sei o tempo empregado na sua leitura, mas não o tempo que demorei para entender essa vida, que na verdade é essencialmente uma obra. Mas sei que um dia ouvi Christopher Domínguez Michael dizer que ainda não sabia se Gombrowicz foi um gênio que só o novo século entenderá ou uma estranha criatura da vanguarda que escritores como Schulz e Witkiewicz incubaram na grande Polônia. E sei que o ouvi dizer que havia trocado palavras com pouquíssimas pessoas sobre a obra de Gombrowicz (citava Pitol e Manjarrez entre outros), “porque entre as características que revelam esse misantropo está a que pouco se pode dizer sobre ele”.
 
Acredito que só se pode dizer de Gombrowicz que seus temas favoritos eram a forma e a imaturidade (“Em tudo que escrevo, um dos meus objetivos é estragar o jogo, porque no fundo somos todos eternos pirralhos”), necessária para ler sua obra (que é sua vida) e, sobretudo, a melhor forma de conhecê-lo e de seu grande valor literário é consultando seus Diários, uma de suas duas obras-primas. Temo que não possamos mais apreciar a outra em todas as suas dimensões, ele a deixou escrita no banheiro de um café na rua Callao em Buenos Aires. Trancado, isolado, com a certeza de que ninguém o ia ver (naquela época ainda não havia câmaras escondidas), numa privacidade calma e com o murmúrio da água que lhe dizia “faça, faça”, pegou um lápis e o lambeu e escreveu em espanhol, bem alto na parede para ficar difícil de apagar, algo, oh, algo absolutamente vulgar, nada grandioso: “Senhoras e senhores, para nosso bem, / Não o façam na tampa, mas no buraco.”
     
Guardou o lápis. Abriu a porta. Misturou-se de volta à multidão. Ficou pensando que nunca lhe havia ocorrido em sua vida que algo assim pudesse ser tão fascinante. “Havia nesse algo… algo estranho e inebriante, provavelmente devido à terrível evidência da inscrição juntamente com a ocultação absoluta do autor, o que é impossível descobrir. E ao fato de ser algo absolutamente inferior ao nível da minha criação.”
     
No prazer de se esconder nas regiões baixas residia paradoxalmente a criatividade aristocrática de Gombrowicz? Talvez isso explique por que, com tanto sigilo, pouco se pode dizer sobre ele, exceto talvez esse egotista “Segunda-feira eu. Terça eu. Quarta-feira eu. Thursday eu” com o qual começam os seus Diários e, sejamos honestos, com o qual começa tudo nesta vida. Na vida de Gombrowicz, para começar. Nessa vida de que nos aproximamos ao longo destas seis horas e quinze, que aqui terminam. Guardo o lápis, abro a porta, tenho certeza de uma coisa e não sei de quê. Ah, sim. Que são oito e vinte da manhã. Disso estou tão certo quanto Gombrowicz tinha a convicção de que vida e a obra são a mesma coisa. Nele cada palavra se incorporava em sua vida, trabalhou muito sobre si mesmo criando seu próprio estilo. Sua obra — sombria, sonâmbula e extravagante — era a reencarnação de sua própria personalidade. Disso estou tão seguro como de que continua a chover em Barcelona e, além disso, chove com grande crueldade em toda a costa catalã. Disso estou tão certo (que a mãe de Gombrowicz não venha agora me desmentir) quanto de que nosso escritor insuflou humor e imaturidade na Revolução, palavra que até 68 era totalmente sagrada. Ainda outro dia ouvi Cohn-Bendit (discípulo confesso de Gombrowicz) dizer que a revolta de Maio tinha sido, na verdade, apenas um jogo e um combate da imaturidade contra inapresentável maturidade. E acrescentou (isso parecia novo e mais gombrowicziano e ferdydurkiano impossível): “Na verdade, se queres que te diga a verdade, a nossa Revolução levantou-se contra o casal De Gaulle, isso foi tudo.”
     
Agora estou olhando para uma foto do casal De Gaulle. Eles são vistos de costas para a câmera, abraçando-se romanticamente, sentados no patamar acima de um muro em seu jardim. Duas bundas generosas. Agora entendo a Revolução. E, incidentalmente, Gombrowicz. 


* Este texto é a tradução de “Witold Gombrowicz”, publicado inicialmente aqui, em Letras Libres.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Boletim Letras 360º #582

Sete poemas de Miguel Torga

Boletim Letras 360º #581

Boletim Letras 360º #576

Os dias perfeitos, de Jacobo Bergareche

Memória de elefante, de António Lobo Antunes