Poesia épica: a busca da imortalidade

Por Raúl Rojas



Já foi dito que toda filosofia tem sua origem no dilema da mortalidade humana. Ao contrário de qualquer outro animal, a razão nos torna conscientes da natureza transitória da nossa existência. Verdade ou não, o curioso é que o longo poema mais antigo que se conhece na literatura, a chamada Epopeia de Gilgámesh, se desenvolve justamente em torno desse tema, ou seja, o caminho para alcançar a vida eterna. O poema épico surgiu, fragmento por fragmento, como uma compilação das façanhas do mítico rei Gilgámesh, que se acredita ter governado a cidade suméria de Uruk no século 28 ou 27 a.C., tornando-se uma divindade nos séculos subsequentes. Pensa-se que grande parte da lenda de Gilgamesh foi transcrita gradualmente há cerca de 4 mil anos. Já nos tempos babilônicos, um escriba chamado Sîn-lēqi-unninni reuniu todas as histórias, com começo e fim, e essa é a versão que chegou até nós. A disposição do texto tem causado debates e objeções, uma vez que existem diversas transcrições do poema, em vários idiomas, com diferentes sobreposições. É como acontece com os evangelhos bíblicos: quando você junta as diferentes partes, há muitas maneiras de combiná-las.
 
A Epopeia de Gilgámesh é um texto fantástico, mesmo que tenhamos que lê-lo traduzido. O poema foi escrito em acadiano, que era a língua franca usada para comunicação no Oriente Médio e com os egípcios. Os versos originais devem ter sido compostos na língua suméria. Após a versão acadiana, o poema foi transcrito para a língua dos babilônios. Em vez de papel, os sumérios e os babilônios usavam tabuletas de argila, que registravam em escrita cuneiforme. Milhares de peças de tabuinhas mesopotâmicas foram espalhadas por muitos museus ao redor do mundo, desde que os europeus se dedicaram a colecionar a história de suas colônias. É por isso que as primeiras traduções do poema para o inglês começaram a aparecer depois que George Smith, um jovem assistente do Museu Britânico, conseguiu decifrar as primeiras tabuinhas entre 1870 e 1872. Foi uma sensação: Smith encontrou a descrição do Grande Dilúvio em uma tábua que precede as histórias bíblicas. Para Smith e seus contemporâneos isto demonstrava a veracidade da Bíblia. Eu tiraria a conclusão oposta, mas isso não vem ao caso agora.
 
A Epopeia não é muito longa, consiste em algo em torno de 3.600 versos ou linhas, com alguns fragmentos que se perderam. Pode ser lido em uma manhã, de uma só vez. A linguagem e a apresentação lembram Homero, sua Ilíada e Odisseia, mas séculos antes do bardo grego. Também aqui se trata de narrar as façanhas de heróis míticos, semideuses, que lutam contra monstros extraordinários. Os heróis da Epopeia buscam a glória que os tornará imortais e passam por provações tão ou mais árduas que as que Odisseu teve que sofrer. No poema os deuses lutam ao lado ou contra os humanos, apoiando-os ou condenando-os. A fronteira entre o profano e o sagrado é muito porosa, como na mitologia grega.
 
O próprio Gilgámesh, “aquele que era sábio em todos os assuntos”, é o melhor exemplo. Ele é filho do rei Lugalbanda e da “augusta vaca selvagem”, a deusa Ninsun. É dois terços humano e um terço divino. É um gigante com mais de cinco metros de altura e governa sua cidade com mão de ferro. O povo lamenta as atrocidades cometidas por Gilgámesh, que “não respeita a mulher prometida, nem a companheira do marido”. Os deuses perturbados recebem as reclamações. Anu, o senhor dos deuses, convoca Aruru, a Deusa do Nascimento e aquela que criou a humanidade, para intervir. Aruru forma do barro Enkidu, um gigante destinado a lutar contra Gilgámesh para acabar com sua soberba.
 
Mas Enkidu, uma espécie de Adão, vive entre os animais selvagens e come o que eles comem, até que uma sacerdotisa do templo de Ishtar vai procurá-lo, enviada por Gilgámesh. Enkidu fica com ela “por sete dias e sete noites”. As feras, que eram seus iguais, não reconhecem mais Enkidu, ele perdeu sua pureza, mas em troca ganhou “sabedoria”. Assim, transformado em ser civilizado, pede para ser levado até onde Gilgámesh está para desafiá-lo. Enquanto isso, o rei teve vários sonhos e sua mãe, a deusa Ninsun, os interpreta: alguém virá salvá-lo.
 
Enkidu e Gilgámesh travam uma luta titânica que “faz tremer as paredes de pedra”. No final, Gilgámesh derrota Enkidu, mas ambos agora se reconhecem como irmãos. Além do mais, Enkidu se torna guardião e assistente de Gilgámesh, que após a batalha decide sair para realizar feitos que glorificarão seu nome. A primeira delas é derrotar Humbaba, o monstro que guarda a sagrada Floresta de Cedro. Cada um carregado com 600 quilos de armaduras e armas, saem para o combate, pois “será apenas por feitos gloriosos que meu renome será eterno”. No caminho, Gilgamesh sonha sucessivamente que luta contra uma montanha, leões e um touro. É Enkidu quem lhe garante que esses sonhos predizem sua vitória.
 
Além disso, durante o combate, Gilgámesh não está sozinho. O deus Shamash desencadeia ventos, chuvas e ciclones que cegam Humbaba. O combate é épico, a montanha do Líbano se divide em duas. Enkidu luta ao lado de Gilgámesh, que mata Humbaba. Mas o monstro moribundo consegue amaldiçoá-los: Enkidu morrerá antes de Gilgámesh, “que terá de enterrá-lo”.
 
De volta a Uruk, Ishtar, a deusa do amor e da fertilidade, anseia pelo triunfante Gilgamesh. E lhe diz: “Seja meu marido, conceda-me seus frutos Gilgámesh, seja meu marido e eu serei sua esposa”. No entanto, Ishtar tem o hábito de enfeitiçar e amaldiçoar seus amantes, então Gilgámesh a rejeita. Para se vingar, Ishtar recorre a Anu, senhor dos deuses, e exige que ele envie o Touro do Céu para aniquilar Gilgámesh. O Touro bebe do Eufrates e baixa seu nível, divide a terra a cada patada e ataca Enkidu primeiro. Este consegue agarrá-lo pelo rabo e, assim preso, Gilgámesh o mata com sua espada. Assim que a façanha é concluída, é a vez de Enkidu sonhar: ele vê os deuses decidindo sua morte por ter participado da imolação do Touro do Céu. Ele adoece e morre vários dias depois. Gilgámesh faz grandes oferendas aos deuses durante os ritos fúnebres.
 
Após suas duas façanhas, ou seja, acabar com o ogro Humbaba e o Touro do Céu, Gilgámesh se acha digno da imortalidade, mas Siduri, Deusa do Vinho, lhe diz que ele deve procurar por Utnapishtim, o único homem imortal. Gilgámesh parte, mas primeiro ele deve correr contra o sol e também cruzar as Águas da Morte. Uma única gota espirrada na pele é fatal.
 
Muitos povos, incluindo os assírios e os babilônios, acreditavam que o sol poente retornava por um caminho subterrâneo para o lado oposto da terra, para produzir um novo amanhecer. Gilgámesh entra naquele túnel mítico e tem que atravessá-lo antes que o sol, atrás dele, possa passar por ele. Consegue e então procura uma forma de cruzar as Águas da Morte com a ajuda do timoneiro Urshanabi. Finalmente ele chega à morada distante do imortal Utnapishtim, que lhe explica que os deuses, oprimidos pelo pecado humano, decidiram aniquilar a todos desencadeando um dilúvio. Avisado por um dos deuses, Utnapishtim construiu uma arca gigantesca para salvar todos os animais e pessoas que conseguisse trazer a bordo. A arca encalha depois de vários dias em uma montanha. É claro que reconhecemos imediatamente a história da arca de Noé, quase literalmente, tendo em conta a diferença de séculos e deuses. Na Epopeia, o deus das Tempestades elogia Utnapishtim, que fez o bem, e concede a ele e à sua esposa a imortalidade: “serão iguais aos deuses” e viverão longe dos mortais, “lá onde as águas nascem”.
 
Gilgamesh, que aspira à imortalidade, pede a Utnapishtim que interceda por ele. No entanto, Gilgámesh falha em ambos as provas que lhe são atribuídas. Ele não consegue parar de dormir por seis dias e sete noites, o sono finalmente o vence, e ele não consegue preservar uma planta mágica que cura todas as doenças, porque uma cobra a rouba. De volta a Uruk, Gilgámesh se consola com a ideia de governar uma grande cidade. Se alegra.
 
Chega da versão clássica de Gilgámesh. Em algumas edições modernas, foram acrescentadas lendas adicionais contidas em tabuinhas feitas em épocas e lugares diferentes. Não é importante para esta leitura. Mais é importante destacar vários pontos.
 
Obviamente, a Epopeia é um exercício de glorificação de um ser mítico, o rei Gilgámesh, cujos defeitos originais nunca são resolvidos, mas cuja ambição excessiva o leva a lutar contra monstros com o único objetivo de tornar seu nome imortal. Mas melhor do que ser imortal de nome, é ser imortal completamente. Na primeira parte da lenda Gilgámesh busca o que todos os soberanos fazem, a fama. Na segunda parte ele procura sentar-se ao lado dos deuses, o que não será mais possível.
 
Os pontos de contato com o Antigo Testamento são notáveis. Utnapishtim é o Noé que construiu a arca, que também naufragou em uma montanha. Noé viveu, segundo a Bíblia, 950 anos. Deve ter morrido de puro tédio, pois, como afirma Pascal Mercier em Trem noturno para Lisboa, nada acontece na eternidade, cada dia é igual ao anterior. Quase mil anos é a coisa mais próxima da imortalidade. O gigante Enkidu lembra Adão, criado do pó e inocente, inocência que perde por causa de uma mulher e por ter provado da “árvore do conhecimento”. Se todas essas histórias têm origem antes dos assírios e hebreus, ou quem copiou quem, é algo que os especialistas ainda debatem.
 
Muito interessante para mim também é a numerologia babilônica. Tudo sempre acontece em grupos de sete. Enkidu se une à sacerdotisa por sete dias e sete noites, Humbaba possui sete camadas encantadas que a protegem, quando o Touro do Céu descer haverá sete anos de colheitas ruins, Gilgámesh vela Enkidu por sete noites, a arca de Utnapishtim tem sete níveis, Gilgámesh deve resistir ao sono por sete noites etc. Aparentemente o sete tinha um significado mágico na cultura babilônica. Mas também na Bíblia: a nossa semana é de sete dias porque corresponde aos dias da criação, Noé é ordenado a levar sete pares de cada animal para a arca, sete anos de fartura são seguidos de sete anos de fome nos sonhos do Faraó, o candelabro judaico, a Menorá, tem sete braços etc. Tem havido muita especulação sobre o papel do número sete na cultura babilônica, mas é evidente que todos os povos da região partilhavam certas crenças.
 
Hoje eles não se amam e o Oriente Médio é uma caixa de pólvora, mas como mostra a Epopeia de Gilgamesh, todos esses povos são irmãos e primos com um legado cultural comum que talvez transcenda suas diferenças. Eles estavam todos lá, misturados, quando a literatura estava sendo inventada para capturar as histórias dos humanos e de seus deuses em tábuas de argila cozidas que resistiram ao ataque dos séculos. 


______
Epopeia de Gilgámesh
(versão ilustrada)
Jacyntho Lins Brandão (Trad.)
Autêntica, 2021
160 p.

Ele que o abismo viu: epopeia de Gilgámesh
(versão anotada)
Jacyntho Lins Brandão (Trad.)
Autêntica, 2017
336p.


* Este texto é a tradução livre para “Poesía épica: la búsqueda de la inmortalidad”, publicado aqui, em Confabulario.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Boletim Letras 360º #582

Boletim Letras 360º #576

Boletim Letras 360º #581

Os dias perfeitos, de Jacobo Bergareche

Sete poemas de Miguel Torga

Memória de elefante, de António Lobo Antunes