Azul corvo, de Adriana Lisboa

Por Pedro Fernandes

Adriana Lisboa. Foto: O Globo (Reprodução)


 
A obra romanesca de Adriana Lisboa transita numa escala que vai do registro subjetivo e intimista ao coletivo e exterior. Se desde Os fios da memória, passando Sinfonia em branco e Um beijo de colombina, a narrativa se tece a partir de circunstâncias muito particulares dos seus sujeitos e examina-as com o interesse de transpor suas inquietações, com Azul corvo, o interesse da escritora parece ser o de articular essa dimensão a outra mais ampla e fora do entorno individual. Claro, não é o caso de ignorar essas instâncias como alheias. Quando nos referimos o íntimo e o social, falamos especificamente do interesse focal da narrativa, mas sabemos que uma dimensão pode implicar a outra num contínuo jogo derivado do material simbólico e sua constância no objeto artístico.
 
No romance publicado em 2014, a articulação entre os pontos na escala criativa da escritora carioca aparece visível nos fios que formam suas duas narrativas centrais: o primeiro e sobressalente é a história de Vanja, uma adolescente que depois da perda repentina da mãe escolhe um destino diferente daquilo mais ou menos designado; o segundo fio reporta a um passado terrível, doloroso e cruel, ou melhor, cruel porque terrível e doloroso, que se faz nódoa na história do Brasil e dos povos que atravessam ou atravessaram modelos de domínio despóticos e pautados na eliminação do diferente, oriundos das ideologias de direita ou de esquerda.
 
O trauma coletivo é examinado a partir da figura de Fernando, alguém que integrou o corpo da guerrilha no Araguaia, uma das frentes de resistência à ditadura militar brasileira. Essa figura é, no romance, a que melhor significa o que dizíamos da preterida articulação entre o intimista e o coletivo neste romance de Adriana Lisboa. Fernando deixou o Brasil desde quando o governo fortalece sua atuação de censurar, perseguir, prender e matar — atividades certamente mais implacáveis com os eleitos primeiros inimigos do regime. Ou seja, são circunstâncias de ordem coletiva que o empurram para um exílio e depois o estabelecimento de uma vida expatriada.
 
Parece-nos que o romance de Adriana Lisboa perscruta, assim, uma condição pouco explorada pela ficção interessada no temário da ditadura militar e a interminável lista de estragos no curso da nossa história. É recorrente falar-se sobre os revolucionários, suas vidas pessoais abjuradas em nome do direito às liberdades, a tortura, o suplício do exílio, mas quando o fim não é a morte, é o retorno e, por vezes, a integração nas forças de constituição do estado democrático. Pouco se diz dos que não voltaram. Dos que deserdaram em definitivo. Mesmo que essa não seja a motivação do romance ou a resposta sobre a permanência do desterrado da ditadura fora do país, Azul corvo não deixa de tocar nas implicações do trauma (nesse caso, certa culpa autoimposta) em que perdurou no forçado a se fazer estrangeiro — seja ao tratar de não-reconhecimento de pertença à sua pátria, seja a ideia (postiça, diga-se) de perfeita integração na pátria alheia.
 
De Londres, sua primeira paragem como exilado, Fernando se fixa no Colorado, onde divide a vida solitária em vários trabalhos para se manter, como a variada leva de imigrantes que luta, clandestinamente, pela permanência em alguma nesga do american dream. E só alcançamos a personagem e sua história a partir de outra a figura, a que compõe o fio da narrativa central do romance. No mesmo passado de fuga, este homem assumiu no papel a paternidade de Vanja. A decisão dela em ir para os Estados Unidos não é propriamente uma fuga do luto ou da vida no Brasil e sim uma decisão que, não alheia ao rompante adolescente, prioriza descobrir qual o destino do verdadeiro pai, um tema agora saturado na nossa literatura; pai que, nesse caso é um alguém que sombreia o imaginário da jovem desde quando em criança desenvolvia as viagens de férias de verão com a mãe.
 
Por esse motivo, que se faz dominante ainda na própria vida de Fernando, podemos dizer que Azul corvo é um romance sobre a busca. Desprovidos de suas âncoras de sustentação, essas duas personagens constroem possibilidades de acesso a novos elementos capazes de permitir suas estabilidades no mundo. Nossa existência só se materializa pelo encontro: conosco e com o outro. Ciente disso, também podemos ler este livro como um romance do encontro. Busca e encontro designam linhas bastante interessantes, principalmente, quando descobrimos suas nascentes; as duas formam parte de um mesmo tempo de orfandades.
 
É a partir da morte da mãe que Vanja se descobre impulsionada por recuperar o fio perdido de um passado. Encontrando o motivo de destino ou não, importa-lhe a busca e os encontros que se nutrem no seu percurso. Buscar é ponto em trânsito, à medida que o sujeito o faz, faz-se. Embora não seja uma história de amadurecimento, Azul corvo examina quem éramos, quem deixamos de ser e quem nos tornamos quando buscamos. Nesse caso, partir para o passado permite que Vanja o conheça propriamente, se compreenda e possa cerzir os vazios instaurados pela ausência materna. Seu movimento, apesar de íntimo também não é solitário. Quase sempre as buscas implicam outros indivíduos. E é o convívio com a enteada que favorece em Fernando esse mesmo movimento que, por sua vez, implicam outros sujeitos. Os que buscam fazem disso solidariedade.
 
Agora, a presença da História no romance amplifica as significações simbólicas dessas movências. Sem esse material, alcançaríamos apenas um plano simbólico pelo campo da metáfora. A busca e o encontro como correspondências possíveis para uma outra coisa. Presente o histórico, o tecido formado pela ficção pode se ler como metonímia daquele plano maior. Quer dizer, a história de Fernando e de Vanja é a história daqueles marcados pela orfandade e à espera de modificação desse estado pela busca e pelo encontro. Fernando e Vanja são elementos para pensarmos a própria História do Brasil. É preciso o diálogo entre a orfandade de Vanja e a resultada de um tempo quando um país, sempre destituído de maternidade, é coletivamente abandonado e massacrado pelos que se fizeram seus pais.




Mas Azul corvo exerce ainda outros questionamentos dos modelos dominantes. O tempo transmudado de Vanja desconsidera quaisquer marcas fronteiriças, essas que, a exemplo do contexto histórico retomado ou dos nacionalismos (aquele derivado deste e este uma parte constante na vida dos imigrantes ilegais nos Estados Unidos, como é o caso de Carlos e sua família, os vizinhos de Fernando), servem mais aos modelos opressivos. No itinerário das buscas da protagonista pelo pai — numa passagem em que narrativa flerta com a road novel — Vanja recorda da seguinte maneira uma ocasião quando se percebe com Carlos, Fernando e June, uma britânica que vive em Santa Fé e participa nas suas buscas: “nós quatro, éramos, de repente, essa grande família improvável, multinacional, cheia de línguas diferentes e sotaques diferentes para as mesmas línguas”; ou, ainda nessa viagem, quando os viajantes encontram-se com uma amiga em comum entre Fernando e Suzana, a mãe de Vanja: “Fernando e Isabel desapareceram juntos no quarto onde ela dormia, e ninguém fez perguntas, e todo mundo acho que assim estava bem. E éramos tão diferentes uns dos outros que as diferenças se anulavam, éramos uma grande uniformidade multiforme”.  O romance é o espaço coerente desses encontros projetados pelo desencontro, desses convívios feitos de diferenças. Interessa-se, como também é recorrente no romance contemporâneo, pela formação dessas pequenas comunidades da diferença em que se refundam alguns dos princípios essenciais de humanidade, estes sempre tragados pelos tempos gris ou mesmo depois de deles, quando ingressamos em definitivo nos limites de um sistema sempre interessado continuamente na objetificação dos indivíduos.
 
Dissemos antes que o importante em Azul corvo é o processo da busca. E retomamos para evidenciar outra qualidade nesse romance de Adriana Lisboa. Histórias de filhos procurando pais são tão antigas quanto a própria literatura — recordemos o ímpeto de Telêmaco mobilizado para a busca de Ulisses na Odisseia — mas, quase sempre à busca finda ou se marca na história sobre o pai. O pai de Vanja é fantasma, enunciado e anunciado, o vulto em volta do qual se desfia a própria escrita, mas, curiosamente, não é a história do pai desaparecido o que essa narradora conta, é a história do pai anteposto. É possível que o excerto recortado do romance no final do parágrafo anterior sirva de justificativa para o leitor. Talvez, entre as várias questões colocadas ante as noções sedimentadas, uma delas seja o princípio da paternidade. Mas isso é um assunto que o leitor precisará buscar na leitura desse romance. Adentrar nele agora seria dizer mais que o necessário da narrativa.
 
A interseção dos fios das duas narrativas é aparentemente simples. Uma história desemboca na outra, à maneira do princípio causa e efeito, fundador da ação. Mas, a parte difícil é o pleno desenvolvimento das variações de registro nem sempre amigáveis. Começamos por uma história de família, passamos por marcações de uma narrativa histórica e mesmo documental, caímos numa road novel e findamos num relato expositivo. Essa variedade é articulada ora pela voz de uma Vanja que recorda esses acontecimentos no presente da narração, ora por uma voz exterior, matizando, cada uma, os dois fios narrativos, não separadamente porque as duas vozes se orquestram: para os acontecimentos experienciados pela personagem, ela própria os conta; para o experienciado por outros, como o passado de guerrilheiro do seu padrasto, a voz onisciente, feita em parte do recontar da voz alheia. O romance é mais feliz na articulação dessas vozes, ainda que os eventuais problemas na variação dos registros narrativos encontrem sincera justificação na própria ficção em curso, uma vez que a história do romance sai do teclado de uma jovem e esta tem entre suas referências o modelo dos trabalhos escolares; nesse caso, à pesquisa documental guiada pela voz universalizante se interpõe o registro pessoal. Um recurso semelhante, encontraremos em O avesso da pele, de Jeferson Tenório; Adriana Lisboa, por sua vez, realiza-o melhor e acertadamente.
 
É de uma dessas pesquisas conduzidas pelo amigo Carlos que salta o título do romance. “Carlos tinha que fazer para a escola uma pesquisa sobre algum pássaro, e havia escolhido o corvo.” Daqui, a narradora recupera a informação sobre duas espécies de corvo cujas características estão relacionadas com as duas figuras centrais do romance: Fernando e Vanja. O crow vive em sistemas sociais complexos em que o adulto se mantém mais ou menos próximo do local de seu nascimento, preferindo cuidar dos filhotes dos outros. Às vezes migra, em bandos.” O raven é “meditativo e arredio [...] não migram, mas podem se deslocar por pequenas distâncias a fim de evitar condições climáticas extremas. Não vivem em bandos. Preferem a solidão ou, no máximo, agrupar-se em pares.” Mas o corvo é apenas um entre o diverso bestiário neste romance; esses vários bichos formam uma faixa inferior essencial ao funcionamento das faixas superiores da narrativa. Dizem das personagens, como no caso antes evidenciado, das circunstâncias, ou dos ambientes predominantes na narrativa — como o deserto estadunidense ou a Amazônia brasileira.
 
Outro aspecto procedimental é a escolha pelo fragmento. Perquirição da memória pela escrita, Azul corvo se organiza como uma colcha de retalhos; por vezes, o que não cumpria um sentido preciso começa a significar. Esses dois fios de narrativa que apontamos se estrutura por muitas parcelas da vida dos protagonistas ou mesmo da vida das personagens ausentes ou ainda daquelas que estabelecem seus vínculos com os dois primeiros grupos. O resultado é ainda uma interação ora separada ora simultânea entre passado, presente e futuro. A interseção de planos temporais favorece a narradora não se permanecer obnubilada pela vertigem de situações e a observar com algum interesse determinadas circunstâncias de seu entorno no presente da narração. É dessa maneira, por exemplo, que Vanja recupera e transita pelos discursos de ódio que nesse tempo alheio ao das redes sociais — mas prenunciadores — cresciam nos fóruns ou caixas de comentários na web.
 
Muito embora, não seja, repetimos, um romance sobre o amadurecimento, não deixa de registrar a variabilidade das percepções situadas nessa região fronteiriça entre o início da adolescência e a passagem para a vida adulta. O contato precoce com essa fase coloca Vanja numa encruzilhada que, se para o funcionamento prático da vida tem suas dificuldades, para o registro escritural se reveste de uma complexidade a mais. Adriana Lisboa precisa dominar sua criatura entre uma inocência esmaecente, uma curiosidade acentuada, uma rebeldia possível, um conhecimento de mundo e linguístico nem ingênua tampouco amadurecida. Isso se nota de alguma maneira na sua narrativa de Vanja, nos desníveis dos matizes vocais ora reféns da curiosidade infantil, ora de feições filosófico-questionadoras da adolescência ora de atitudes de modos adultos. Essa variabilidade, somada ao movimento das vozes narrativas, constitui, no plano estrutural, no melhor de Azul corvo. São essas qualidades que fazem de Vanja uma dessas personagens convincentes, que saltam facilmente do plano ficcional e permanecem no nosso convívio.
 
Como uma obra ainda em pleno desenvolvimento, e em direções tão variadas, é difícil oferecer destinos para a literatura de Adriana Lisboa. Mas é certo que o romance de 2014 está entre suas melhores criações. É possível através dele percebermos alguma constância que poderá resultar mais tarde num estilo próprio ainda que continuemos a observar uma escritora também em busca. Isso não é um defeito e sim uma qualidade essencial ao fazer literário que nós leitores aprendemos a descobrir.


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Azul corvo
Adriana Lisboa
Alfaguara, 2014
304 p.

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