Saltburn, de Emerald Fennell

Por Pedro Fernandes




 
A presença de Emerald Fennell no rol da fama como diretora de cinema aparece com Promising Young Woman, filme que ela escreveu, produziu, dirigiu e fez com que se tornasse a primeira mulher britânica indicada ao Oscar de Melhor Diretor. O feito não é apenas inédito ou grandioso. Ele é produto de uma obra que a altura fomentou expectativas muito positivas em relação aos próximos trabalhos de Fennell e eis que, dois anos adiante, somos apresentados a Saltburn, um filme que repete o interesse da crítica e das premiações especializadas com a atenção fora da curva do público. É possível que essa nova obra cumpra um passo a mais na carreira recente da diretora. O filme é bem executado, se organiza utilizando as estratégias que deram reconhecimento a outras produções reconhecidas ao longo da história do cinema e dos clichês que atendem bem ao gosto popular.
 
O reuso das narrativas de vida universitária e de romance gay são bons exemplos. Embora o filme não seja nem uma coisa nem outra, seu enredo sustenta de uma ponta a outra o tema da irrealização amorosa entre dois homens, beneficiando-se de uma parcela dos identitarismos em voga em todas as expressões artísticas em curso. No primeiro caso, o enredo recorre a uma estrutura que, em tudo refaz uma atmosfera integralmente conhecida aos educados na saga Harry Potter, tais como o dilema do sujeito em desacerto com a nova ordem social que passa a frequentar ou as divisões, intrigas e segregações entre os grupos de estudantes. As referências ao universo fabulado por J. K. Rowling são explícitas na vida nova de Oliver Quick em Oxford e são recuperadas não apenas em situações e imagens como na presença da obra da escritora britânica entre as leituras do grupo familiar frequentado pelo protagonista.
 
Depois, o reuso do drama movido especificamente pelos impasses de ordem psicológica à maneira de Jordan Peele — marcadamente em Corra! — ou o Bong Joon Ho de Parasita ou Ruben Östlund de Triângulo da tristeza. Repetindo uma estratégia que é marca do próprio fazer do cinema, Emerald Fennell costura um objeto feito das estratégias cinematográficas que foram os sucessos e marcaram as últimas décadas do cinema. Mas, direta ou indiretamente, tal tessitura não deixa de apontar para outros objetos da sétima arte verdadeiramente inovadores: a narrativa do hospedeiro fora explorada vigorosamente por Pier Paolo Pasolini no excelente Teorema; e a habilidade de uma mente brilhante para a manipulação em Plein Soleil, de René Clément a partir do incontornável romance de Patricia Highsmith, The Talented Mr. Ripley — embora a composição de Fennell seja devedora, até mesmo na escolha de Barry Keoghan para o papel de Quick, a adaptação estadunidense de Anthony Minghella.
 
E pululam as marcas de estilo de outros de sucesso: Tim Burton no desenvolvimento de alguma excentricidade e da atmosfera sombria ou Baz Luhrmann, na extravagância, ou ainda na maneira como ponto máximo da narrativa se alcança, Luis Buñuel. Às pitadas do cinema é possível juntar as da literatura nessa receita. Além de J. K. Rowling, acrescente-se Oscar Wilde no desenvolvimento do humor, ou os conflitos de classe dos chatíssimos romances de campo de Jane Austen, ou mesmo o vazio drama de elite de F. Scott Fitzgerald. E mais longe, a recorrência à estrutura do mito do labirinto tornada aqui em referência principal para os sentidos procurados por uma intriga que apenas na superfície é da inveja de um homem atiçada pelo reiterativo discurso do incapaz socialmente mesmo que muito à frente dessa ordem por outras qualidades aí desprezadas, como a força intelectual.
 
A imagem do labirinto é dominante. Embora se manifeste direta e explicitamente no que poderíamos designar entrecho da narrativa, pelo amplo jardim de Saltburn, o encontramos no curto passeio que o recém-chegado estudante de Oxford realiza pelo campus até alcançar seu dormitório na residência universitária. Depois, na imensa casa de Saltburn, quando apresentada por Félix, o recém-amigo de Oliver, o filho dos proprietários e de quem aquele se aproxima em Oxford com o interesse duvidoso revelado paulatinamente ao longo do enredo. Mas, os espaços físicos servem, como é natural no cinema (e ainda na literatura), entre outras coisas, para demarcar concretamente os labirintos da interioridade, sobretudo, num filme como o Fennell em que as qualidades íntimas das personagens são tão essenciais para o desenvolvimento e funcionamento da narrativa. Assim é que, entre o início e o fim da trama, essa variação da imagem do labirinto assume um trânsito entre o opressivo e o libertador, denotando a travessia do indivíduo pelos desafios diante de uma estrutura que continuamente o oprime. Aqui, o uso do porte físico de Barry Keoghan e a exploração pela câmera dos ângulos entre sua personagem e as demais é singular, amplifica que o papel exercido pelo labirinto não é apenas material.
 
Desde a chegada de Oliver Quick à Saltburn, quando a noção de labirinto se apresenta integralmente visível pela casa, pelo jardim e pelas relações famílias, os impasses com o meio se amplificam; os Catton significam a antecipação do mundo que o estudante encontrará depois da universidade. É com os Catton que o jovem precisa estabelecer sua ação racional para se impor no mundo adulto. Por isso, ao contrário do insípido começo potteriano, quase desnecessário se não fosse este um desses filmes que subestimam um pouco da faculdade dos seus espectadores (é horrível a passagem final pela estratégia de mostrar ponto a ponto o que já sabíamos acontecido), é este núcleo da narrativa, centrado nas férias de Verão de Quick e quando acompanhamos sua metamorfose entre herói e monstro, o melhor dessa obra de Emerald Fennell. À maneira da corrida do herói para derrotar o Minotauro, o confronto principal de Quick nesse labirinto é ainda o de não se reduzir ao sombrio passado de outros que estiveram por Saltburn e que corre implicitamente entre os da casa e seus frequentadores como perdedores. Não faltam esqueletos no armário da elite.
 
É nesse sentido que a sucessão de tragédias iniciada a partir da grande festa de aniversário preparada pelos Catton para seu hóspede figura o triunfo da razão sobre a irracionalidade da elite burguesa. É claro que Fennell lida com contradições, afinal o hospedeiro é sempre o que se institui propriedade no alheio e a metamorfose de Oliver Quick fruto do seu heroísmo embora o coloque numa condição confortável se vencido o corpo doente não o faz um outro melhor, mas desfeita a força pela astúcia, a estrutura que o aprisiona é modificada tal como se verifica na aparente libertária passagem do homem de terno ao homem nu. Na prática, a atitude do protagonista é permitir o triunfo da sua coerência sem se perder no labirinto e a possibilidade para tanto é converter-se no monstro.
 
Saltburn alcança o homem num instante de crise pelo descrédito no mito. A razão, a que confere sentido e significado e a condição de transformarmos a natureza, se tornou insuficiente porque uma vez acreditarmos que superamos a natureza, passamos a estabelecer hierarquias de superação dos nossos semelhantes. Oliver Quick na alegre dança, despido de tudo, que o prova um exímio habitante do labirinto conquistado, ainda não se deu conta disso. Por isso, a liberdade aparente. Ele é o ponto em que nos encontramos.
 

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