Solitária, de Eliana Alves Cruz

Por Renildo Rene

Eliana Alves Cruz. Foto: Eduardo Anizelli


 
É um romance de espaços. Sua condição prévia de leitura é examinar o destino das famílias vítimas de violências/ crimes — sumariamente ocorridos no dia a dia — do ambiente doméstico enquanto percorre o dispositivo mais significativo do racismo brasileiro: a arquitetura das residências urbanas e a condição contemporânea do “quartinho da empregada”. Em seu quarto romance, Eliana Alves Cruz se volta para o período histórico ainda não retratado nos anteriores, o século XXI, e coloca em tela cheia uma narração intrigante para a literatura contemporânea, cheia de personagens simbólicas, metáforas recorrentes e uma narrativa envolta no enredo policial.
 
Mabel e Eunice, filha e mãe, guardam histórias particulares no Edifício Golden Plate, lugar do trabalho materno que constitui o centro de relações, desgostos e decisões de suas vidas ao longo de um bom tempo. Na organização dos eventos, a primeira narra a apresentação mais geral dos funcionamentos familiares no prédio de luxo e a segunda participa desenvolvendo os episódios mais espantosos, o desenrolar de várias ocorrências (entre elas, um crime de trabalho escravo) e os desentendimentos com sua primogênita.
 
Os símbolos espaciais do livro — são 30 capítulos nomeados a partir de referências aos lugares ou objetos residenciais onde ocorrem as ações — ganham destaque na forma dessas duas partes frente ao testemunho das protagonistas e na terceira parte, intitulada “Solitárias”, o quartinho da empregada e mais três cubículos (do porteiro; do hospital; e do descanso) integram o núcleo responsável pelas resoluções finais.
 
Ao configurar a situação geral, a Parte I se sobressai, visto que a escritora confere à Mabel um aspecto narrativo muito ajustado à visão de mundo adolescente. E à medida que transicionamos para as outras partes, é justamente essa a mais acertada em problematizar o trabalho doméstico sem homogeneizar as ideias ou superficializar seu didatismo.
 
Por isso, é vital entender o aparecimento do porteiro Jurandir e seus dois filhos João Pedro e Cacau como sujeitos que vão se relacionar intimamente com a história das duas. Enquanto o segundo passara a ser um grande colega da adolescente, ao ponto de marcar sessões de estudos, o filho mais velho, João, irá se envolver romanticamente com a menina, no auge de seus 14 anos, e é a partir de um desses encontros casuais — acontecido nas escadas do Golden Plate — que ela se descobre grávida.
 
A partir desse ponto, a narração de Mabel recai na sua própria experiência de compreender questões sobre maternidade na adolescência (para enfrentar a decisão de continuar a gravidez), repensando a própria trajetória de sua mãe que precisou abarcar a profissão de babá de gente rica para garantir o sustento familiar, isso tudo ocorrendo dentro do banheiro de visitas da patroa, D. Lúcia. Observemos a escolha do espaço: escolha estética evidente de contraste entre a imensidão de uma residência de luxo e os sentimentos de solidão e indecisão vivenciados.
 
Dois capítulos à frente, a patroa já de posse da informação consegue um encontro a sós com Mabel na intenção de sugerir o procedimento de aborto. A sua ajuda, é claro, é arbitrária e esconde a necessidade da ricaça em reverter a sua antipatia e manipular a vida em torno da babá de Camila. Eunice ainda não sabia, porém Mabel se encontrava no “banheirinho” da casa, no quarto da empregada, buscando conforto enquanto tomava comprimidos arranjados pela D. Lúcia. E é justamente nesses encontros e desencontros, entre dois tipos de famílias de origens sociais diferentes até configurar suas posições no edifício, que somos fisgados na composição de relações interessantes e de ordens interseccionais com os espaços romanescos.
 
De um lado, o porteiro e seus dois filhos debatendo-se entre si sobre as respostas aos desmandos violentos dos condôminos: seja pela rebeldia de João Pedro ou a resistência com caráter de aspiração social de Cacau. Do outro, o casal Lúcia e Tiago e a filha Camilinha aparecem naquela vida de patrão tocada pelo espírito de ideal meritocrático e incapazes de reconhecer o racismo imposto pela subserviência que exigem das domésticas. Todos sob os olhares de Mabel. Dimensionando os conflitos da protagonista-filha, Solitária consegue tensionar as particularizações pessoais da jovem aspirante médica para alcançar os vários episódios de racismo sofridos e/ ou testemunhado no ambiente de trabalho da mãe.
 
Tudo isso entrelaçado pelo centro indagador do romance: a relação entre mãe e filha. Talvez, seja esse o ponto mais passível de análise e reflexão, pois dele advém as problematizações mais sinuosas para tornar a leitura livre de campos rasos. O conflito de gerações existente aqui é significativo ao ponto de ser partida para repensar tanto a maternidade a nível social quanto as outras disparidades existentes na condição racial das protagonistas.



A ação presente na segunda parte — e seu constante uso para agilizar a trama — se torna um problema de linguagem para a fala de Eunice, a nova narradora. Três situações específicas ilustram justamente o desafio que o leitor enfrenta para dar firmeza ao resultado final. E isso não ignora, obviamente, a força simbólica que esses mesmos episódios causam.
 
No capítulo “Quarto de despejo” ocorre mais uma das reviravoltas da trama: a descoberta do aborto da filha pela mãe. Todo o acontecido, do flagra de Mabel e João Pedro no depósito do edifício ao diálogo das duas, flui de maneira muito breve, com as movimentações aparentemente já ilustradas, dadas de forma pura e simples. É paradoxal pensar como a afirmação que abre esta resenha encontra justamente a barreira de ver o pouco aproveitamento dos espaços na narrativa a partir daqui. Ora, os conflitos sempre aparecem nesses lugares pequenos e relegados, porém não chegam a dar totalidade da ambientação psicológica.
 
Com muito ligeireza, a camada superficial dos espaços age em tom denotativo sobrepondo o tom subjetivo dos sujeitos, que quando aparece por conotação desequilibra a leitura. Explico: muitas passagens de Eunice ocorridas pelo uso de metáforas e /ou repetição podem trazer impacto reduzido pois há poucos recursos psicológicos no desenvolvimento das habitações, tornando a linguagem mais artificial nas suas pretensões de conclusões na terceira parte.
 
Momentos de esboço para tornar a fala da mãe mais explicativa das explorações existentes soam menos sugestivas como quando ela afirma estar se misturando em “raiva, decepção e medo” ou que entre as milhares de coisas passadas na sua cabeça está a possibilidade de Mabel engravidar “e acabar se tornando outra Eunice”. Isto é, quando mais se espera de profundidade entre o drama das personagens, estas pouco se aprofundam diante a recorrências de cenas rápidas e sumária presença dos cômodos; e quando os recintos mais aparentarem ter atmosfera de qualidade narrativa, eles vão se esmaecer em um final rápido.
 
Por outro lado, a verve de Eliana com o enredo policial e de suspense (visto em obras anteriores) se acopla com a narração episódica quando surgem mais violências dos patrões aos empregados. No capítulo “Criada-muda”, as retratações desse objeto secular no Brasil associam o momento de rompimento de silêncio de Eunice contra D. Lúcia ao crime denunciado de trabalhado análogo à escravidão forçado a Dadá por D. Imaculada.
 
Dessa forma, a sinuosidade do ofício das domésticas é posição tão cheia de profusão e motivações racistas que os resquícios estruturais da escravidão, tanto nos artefatos residenciais ou no cambiamento da posição do assalariamento, confluem de maneiras muito diferentes, mas sempre iguais em seu tom originário. D. Lúcia afirma sua posição de generosidade e vítima de ingratidão por Eunice e Mabel; e a vizinha D. Imaculada, na verticalidade das ações, se aproveita do esforço físico de Dadá desde os dez anos, que já não sabe mais sua idade correta. Na própria maneira de entrelaçar tais injúrias se clarificam as relações de poder na contemporaneidade na mão da escritora.
 
Mais perto do fim, somos lembrados novamente desse funcionamento tão hierárquico dos condomínios de luxo do país, na ocasião da reconstrução da morte de um menino caído das janelas do décimo andar. Gilberto, filho da nova empregada Luzia, fora abandonado pela menina Camila na própria casa após sua mãe precisar sair para comprar comida do preparo do almoço.
 
Outra criança, opondo esta situação, havia sofrido também um acidente, nas páginas iniciais. Bruninho, sobrinho dos patrões, se afogou em uma piscina após o descuido de sua babá Irene. A resolução ocorreu na barbaridade do banal: Helena, a mãe, deu um tapa na babá e logo depois fez questão de mandá-la de volta para o interior, tal qual fosse produto. Logo depois, o pai trata de amenizar e esconder o ocorrido dos jornais pelo simples fato daquela empregada ser também menor de idade. Para além de retratar as óbvias atualizações que a prática escravagista se deu no Brasil, o romance dá cabo de informar como é constantemente institucionalizada em termos legais.
 
E é o próprio locus da justiça nacional que, anos mais tarde, contribuirá morosamente para não responsabilizar Camila e seus pais pela morte de Gilberto. A filha de Lúcia e Tiago exemplifica o claro contraste do trato criminal dado aos “acidentes” domésticos cometidos por cada lado da moeda.
 
O mais curioso aqui é que este último episódio se conclui justamente no momento final da narração, entre os quatro capítulos que se organizam ali na seção “Solitárias”. Curtos e sem dimensões de profundidade, os quartos da empregada, de porteiro, de hospital e de descanso não edificam sequer uma linguagem própria para dar um tom mais específico ao livro, e aparecem somente para endossar as resoluções dos crimes ocorridos e ensaiar elocuções excessivas sobre o que já havíamos lido antes nas narrações de mãe e filha.

Ironicamente, o momento do(s) quartinho(s) falar(em) é relegado para agir com rapidez, sem quaisquer apegos aos detalhes e nuances, causando a impressão de que o impacto está somente no título e o problema encontrado da falta de continuidade não aparenta ser crítica ao ocorrido com esses espaços na realidade.
 
Para a arquitetura da tripartição burguesa, o “quartinho da empregada”, tendo origem na construção da senzala como dependência da casa-grande, tem marcado em si o lugar de encolhimento e rejeição. Associado ao seu valor utilitário de trabalho, pouco se pensa nele no apreço da intimidade, no sentimento particular sentido por quem vive ali e nas ambiguidades residente entre afeto e repulsa. Se a interferência de discursos quase iguais entre três instâncias narrativas que deveriam ter elocuções distintas é um problema à escrita da obra, seu maior mérito é justamente embaralhar esse modelo residencial e dissolver as funções sociais e íntimas por todos os lugares representados. Essa dissolução permite um abrandamento de potenciais significados de cada ação, à medida que os capítulos avançam.
 
Solitária é, então, um romance de cenários pois explora na sua composição imagética uma narrativa de subtemas em torno do núcleo básico do trabalho doméstico no Brasil. Seu painel de cenas é constantemente variado e dimensiona os dilemas postos, mas o processo de descrição ágil desmonta construções mais fugazes das personagens. Nisso, o enredo do tipo crime policial ganha força enquanto a articulação ficcional das narradoras permanece invariável, com exceção de Mabel. O questionamento proposto aqui é menos se isso é um problema de leitura e mais do tom sugestivo que decorre da técnica aproveitada. Às vezes, bons personagens, no romance em geral, e os focos narrativos sob eles podem nos ganhar pela potencialidade de suas diferentes nuances, naquilo que vai ficando na gente por mais tempo, sem precisar de desfechos apressados e didáticos ao extremo (obviamente, não é de todo ruim e nem erro aqui), pois o problema da realidade pode ser mediado na literatura com a linguagem trabalhada que fecunda nossa intimidade para além da identificação com o noticiário do dia a dia.

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Solitária
Eliana Alves Cruz
Companhia das Letras, 2022
168p.
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