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Foto: Pascal Biomez |
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Uma dedicatória escrita pelo
próprio autor torna um livro um objeto único. A assinatura confere ao exemplar
uma espécie de aura que, por definição, lhe falta. Isso o distingue das
centenas ou milhares de volumes semelhantes que saíram junto com ele da gráfica.
Transforma-o em um item de colecionador, um objeto de desejo, um tesouro. O
mercado sabe disso: livros autografados pelo autor são mais caros. Às vezes,
verdadeiras fortunas são pagas por eles.
Mas essas fortunas são pagas, é
claro, quando se trata de obras de escritores altamente reconhecidos. Em outros
casos, o impacto de uma assinatura ou dedicatória de um autor no valor do livro
pode ser quase imperceptível. Há alguns anos, adquiri um exemplar do romance
La
máquina de escribir [trad. livre, A máquina de datilografia] com dedicatória
de seu autor, Juan Martini, em um sebo de Buenos Aires, pelo equivalente a
cerca de US$ 4. Teria sido muito mais barato sem a assinatura? Na capa, o
volume trazia — e ainda tem — um adesivo que diz: “Exemplar autografado”. O que
significa que algum livreiro se deu ao trabalho de imprimir adesivos com esse
slogan. Se todos foram usados
para
vendas como essa, n
ão pareceu ser um apelo publicit
ário muito relevante.
A caligrafia de Martini invejaria a
qualquer estudante de medicina, mas parece que diz claramente seu sobrenome e
abaixo acrescenta: “Bs As, X 96”. Como a impressão do livro foi concluída em
agosto do mesmo ano, 1996, podemos confirmar que o exemplar foi assinado quase
que imediatamente após sair do forno. Quem sabe em que contexto e para quem
Martini assinou, que com o tempo se tornou um autor injustamente esquecido. Ele
morreu no final de abril de 2019, aos 75 anos. Talvez em algum momento alguém o
“redescubra” e sua obra seja revalorizada, e este exemplar autografado que carrego
comigo também será uma joia para o mercado, e não apenas para mim.
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Geralmente, os leitores “comuns”
valorizam muito todos os livros autografados que possuem, visto que os recebem
de duas maneiras: ou os compraram já autografados (como eu fiz com o livro do
Martini) e a presença da assinatura os faz valorizá-los de uma maneira
especial, ou os levaram ao autor para obter a dedicatória. Mas isso muda quando
alguém se torna um leitor “prestigiado”: começa a receber livros dedicados, mas
indesejados, de escritores que desejam ser lidos e recomendados aqui e ali. Às
vezes isso dá origem a histórias curiosas.
Uma das mais famosas foi contada
pelo escritor argentino Juan Filloy. Pouco depois da publicação, em edição de
autor, de seu romance
¡Estafen!, de 1932, ele enviou um exemplar a
Borges. “Dediquei-lhe, como era costume naquela época: ‘Com carinho, Juan
Filloy’”, explicou em entrevista. Algum tempo depois, em um sebo, ele encontrou
um exemplar do mesmo romance. “Achei muito estranho”, explicou ele, “porque eu
costumava fazer edições apenas para amigos. Quando abri, fiquei surpreso ao ver
a dedicatória. Era o livro que eu tinha dado de presente para Borges!”
Qualquer um em tal situação
poderia ficar além de embaraçado, amargurado, desapontado… O que Filloy fez? “Comprei
o livro, voltei para casa e o enviei novamente como presente. Abaixo da
primeira dedicatória, escrevi outra: ‘Com renovado carinho, Juan Filloy.’”
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Não faz muito tempo ouvi uma
história parecida. O escritor A escreve ao leitor B para oferecer-lhe o envio
de seu romance mais recente. Há algum tempo, o escritor A já enviara um de seus
romances anteriores para o leitor B. Ele não sabe se o leitor o leu ou não, mas
não se importa: quer enviar seu romance mais recente de qualquer maneira. O
leitor B responde que ficaria feliz em recebê-lo e pede para que envie ao
endereço na rua C.
Antes de enviar a remessa, o
escritor A procura seu romance anterior em um site de vendas de livros usados.
Para sua surpresa, descobre que um exemplar está sendo vendido por um valor
mais alto porque foi dedicado pelo autor — ou seja, nosso escritor A — ao
leitor B. Onde fica a livraria? Na mesma rua C, não muito longe do endereço
indicado pelo nosso leitor B.
Qualquer pessoa em tal situação
poderia ficar embaraçada, amargurada, despontada... ou pelo menos voltar atrás
na decisão de enviar o novo romance. O que o nosso escritor A faz? Nada. Ou
melhor: eu não tinha feito nada até o momento em que me contaram a história.
Mas algo precisava ser feito. Espero que ele tenha aceitado isso com a
compostura e a graça do bom e velho Filloy.
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Para alguns autores, adicionar uma
dedicatória a um de seus livros pode não ser fácil. Principalmente quando um
amigo ou alguém de sua confiança pede uma mensagem “personalizada”, “não aquela
que você escreve para todo mundo”. Além disso, muitas vezes ele tem que fazer
isso imediatamente, sem tempo para pensar, forçado a fazer o que nunca faz:
escrever em público. O pânico da página em branco também pode ocorrer nessas
circunstâncias.
E também, qual página assinar? A
primeira, a página em branco chamada
cortesia? A seguinte, que
geralmente inclui apenas o título do livro? Alguém me explicou que entre os
ingleses há uma tradição de não assinar nenhuma dessas duas, mas sim a que vem
depois, na qual costumam aparecer o título do livro, o nome do autor e da
editora. Também me disseram que os autores riscam os próprios nomes com uma
caneta. Não tenho, nem me lembro de ter visto, nenhum livro dedicado por um
autor inglês. Talvez algum leitor deste artigo possa corroborar esta versão. O
fato é que qualquer página do livro poderia ser assinada. Por que pensar que
você sempre tem que assinar no começo? Talvez haja algum autor excêntrico que
sempre escreve suas dedicatórias nas margens da página 39.
Há, ainda, dedicatórias
enigmáticas. “Cristian: en la tranquera” foi tudo o que Alejandro Dolina me
escreveu — além de sua assinatura — em um livro dele há mais de duas décadas.
Passei anos tentando entender o que ele queria dizer, até que me resignei a
pensar que era algum tipo de saudação. Agora me ocorre que poderia ser outra
coisa. Por exemplo, um trecho de um texto mais longo, um texto que só faria
sentido se fosse reunido com os outros fragmentos, escritos naquele mesmo dia,
na mesma apresentação. É improvável, mas não impossível. Artistas são
inescrutáveis.
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Minha biblioteca tem alguns
exemplares dedicados pelos seus autores. Não muitos. A maioria delas, de amigos
e conhecidos. Durante anos, estive convencido de que pedir aos autores que
autografassem seus livros era um sinal de frivolidade, de bajulação. Foi um
pecado: por causa dele, perdi a oportunidade de ter livros autografados por
autores que admiro, a quem eu poderia ter pedido, muitos dos quais não poderei
mais pedir porque já faleceram. Eu sei que é um detalhe menor, uma
trivialidade, uma questão de fetichismo. Mas nós, leitores que amamos livros de
papel e consideramos nossa biblioteca uma parte fundamental de nossas vidas,
não somos fetichistas?
É por isso que, já há algum tempo,
adotei uma atitude que também recomendo aos outros: na dúvida, corra o risco de
ser visto como um bajulador do que perder uma boa dedicatória. Uma pequena nota
escrita à mão que transforma o livro em um item de colecionador, um objeto de
desejo, um tesouro que não tem nada a ver com dinheiro. Como a que um amigo
escritor me escreveu há alguns dias: “Para Cristian, com quem vivi
inesquecíveis aventuras românticas intelectuais (Sarlo e Altamirano em Las
Violetas!).” Aliás, tínhamos acabado de ver Beatriz Sarlo e Carlos Altamirano
tomando café na tradicional confeitaria Las Violetas, em Buenos Aires. Uma nota
manuscrita que é quase uma página de um diário compartilhado e, ao mesmo tempo,
uma prova de afeto que nunca precisará ser renovada. * Este texto é a tradução livre
de “Libros autografados por sus autores: historias y dedicatorias”, publicado
aqui, em
Letras Libres.
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