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Hermann Hesse. Foto: Gisèle Freund |
Figuras secundárias possuem um
charme que nem sempre notamos. A protagonista sempre rouba toda nossa atenção,
mas os grandes escritores, por vezes, recorrem às coadjuvantes para mostrar um caminho menos comum
e mais discreto, que, no entanto, muitas vezes, representa suas ideias mais centrais.
É assim que se desenvolve a
relação entre Emil Sinclair e Pistórius em
Demian, de Hermann Hesse.
Todos nós recordamos a narrativa: Sinclair busca um guia, um conhecimento
supostamente secreto que lhe permita atravessar ileso o mundo, ou pelo menos
compreendê-lo. Ele é alguém em busca de outros iniciados, seus iguais, que o
compreendam e o encorajem. E, claro, encontra Demian.
Demian é o guia e o caminho. No
entanto, a personagem de Pistórius é o
outro caminho, o outro modo de
ser um herói que Emil não ousa assumir, porque está obcecado em ser um escolhido.
Por quem e para quê? Talvez apenas para contar esta história, porque, de outra
forma, é difícil entender por que seria um escolhido, a menos que seu
verdadeiro caminho não seja outro senão encontrar a si mesmo. Se for assim, é
impossível concluir que ele tenha terminado de se conhecer quando o romance
termina; ele ainda precisa experimentar o amor doméstico, a maturidade, a
doença, a velhice...
Ser Demian ou Emil é fácil, desde
que você não tenha mais de vinte anos. Depois disso, só resta o sacrifício, o
crime, o suicídio ou... Pistórius. Pistórius foi Demian e foi Emil. Um
adolescente com dons extraordinários, inteligente, sensível, culto. E agora é
um homem comum. E para um demian, não há castigo maior.
O encontro acontece assim: Emil
está perdido na cidade, em um desses périplos em busca de si mesmo, quando, de
repente, para em frente a uma igreja e ouve uma melodia de Bach. Alguém está
tocando
Musikalisches Opfer magnificamente. Emil espera o músico sair e
o segue até uma taverna. Falam de Abraxas, o contra-Deus que abraça o bem e o
mal, uma divindade síntese. E então se reconhecem como iniciados, exceto pelo
fato de Pistorius esclarecer: “sou um filho transviado”.¹
Que Pistorius seja um “filho” não
é nenhuma surpresa. Todos os protagonistas dos romances de Hesse são eternos
adolescentes. Mas o que significa “transviado”? Que desperdiçou seu talento; e,
ainda assim, tem uma coisa ou duas a ensinar. Ele coloca Emil diante do fogo e
lhe diz: “cada um de nós é um ser total do mundo, e da mesma forma como o corpo
integra toda a trajetória da evolução, remontando ao peixe e mesmo a antes, levamos
em nossa alma tudo o quanto desde o princípio está vivendo na alma dos homens.
Todos os deuses e todos os demônios que já existiram, quer entre os gregos, os
chineses ou os cafres, todos estão conosco, todos estão presentes, como
possibilidades, desejos ou caminhos”.
E em que constitui seu fracasso?
Ele se rendeu a Cristo em vez de Abraxas, a quem conheceu tarde demais. Queria
ser um sacerdote, mas um “sacerdote não quer converter, quer viver entre os
crentes, entre seus semelhantes, e quer ser substrato e expressão do sentimento
que fazemos nossos deuses”. Ele gosta de Abraxas, aquele deus gnóstico, mas
sabe que é uma religião de solitários, e “uma religião solitária não é nada. Tem
que tomar-se coletiva; é preciso ter culto e adeptos, festas e mistérios”.
Em outras palavras, Pistórius não
quer ser
único, como Demian e Emil; ele quer ser um igual entre seus
iguais. E, portanto, quer estar em comunidade. Demian e Emil não sabem, nem
querem, estar em uma comunidade, porque então perderiam seu estatuto de seres “diferentes”.
Então, por revelar a impostura de sua ambição adolescente, Emil o pune. Ele lhe
diz que sua ideia é “arqueológica”. O arqueológico não pode ser individual ou
único; caso contrário, não poderia representar uma cultura, uma civilização; o arqueológico
é fundamentalmente o anônimo. Emil o insulta, sugerindo que ele é adulto
demais, que é algo como uma
lesa-majestade traiçoeira nos romances de
Hesse.
O segredo que Pistórius quer lhe
transmitir é este: ninguém se salva sozinho. No fundo, é mais difícil aceitar
ser uma pessoa comum do que alguém especial. Mas ao Super-Homem nietzschiano
não se pode dizer nada tão obsceno. Talvez o Super-Homem só possa ser a
Supercriança: o adolescente, o
puer aeternus, sem vínculos, cuja
identidade, ética e responsabilidade estão sempre por se definir. “O impulso
que te faz voar é o nosso grande patrimônio humano, comum a todos”, diz
Pistorius.
O verdadeiro trabalho, ele
insiste, não é tanto se somos ou não capazes de mudar o mundo — isso ainda está
para ser visto —, mas “dentro de nós mesmos, temos que renová-lo a cada dia; de
outro modo, nada conseguiremos.” “Em lugar de crucificar-te a ti mesmo ou a
outrem, o melhor é bebermos todos o mesmo cálice, elevando solenemente nosso
espírito e pensando no mistério do sacrifício”, isto é, pode-se pensar no
ideal, sem necessariamente querer cumpri-lo a todo momento, pois só podemos
acessar esses estados de embriaguez momentaneamente. Não se pode presumir
carregar o estigma de Caim sem orgulho, porque a chama de Deus só chama quando
quer; não está em nós a possibilidade de entrar nesse estado, exceto quando
atentos para não perder a oportunidade quando o chamado chegar. E mesmo isso,
Pistórius aponta, é “um luxo e uma fraqueza. Seria mais digno e mais acertado
estar simplesmente à disposição do destino, sem aspirações de qualquer ordem.”
Mas será possível alcançar a
condição de homem sem atributos, um homem comum e trivial, e aceitar e viver
isso? “É muito difícil, é o único verdadeiramente difícil. [...] Aquele que
verdadeiramente só quer seu destino já não tem semelhantes e se ergue solitário
sobre a terra, tendo a seu lado somente os gélidos espaços infinitos.”
Inspirado, Pistórius esclarece: “As pessoas como tu e eu vivemos já por demais
solitárias; mas nós ainda temos pelo menos um amigo e a oculta satisfação de
seremos diferentes dos demais, de nos rebelarmos e de querer o extraordinário. Mas
também a isso devemos renunciar se quisermos seguir o caminho até o fim. Também
não se deve querer ser revolucionário, exemplo ou mártir. Não se pode.”
Ser um homem comum, sem maiores
pretensões, porque não há nada a ensinar, nada a provar, nada a ser, exceto
cumprir “é o único verdadeiramente difícil”: assumir a tarefa de viver e morrer
sem alarde, servir sem buscar outra recompensa além a de ter servido.
Não é de se admirar que Emil lhe
dê as costas. Ele quer ser o protagonista de sua própria via crucis. Ser único,
especial, foi o canto da sereia do século XX, refinado ao ponto do ridículo até
agora neste século. Talvez seja hora de ouvir Pistórius e deixar o sonho do
demian para a adolescência do espírito.
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