Sobre uma figura secundária

Por Daniel Rodríguez Barron


Hermann Hesse. Foto: Gisèle Freund


 
Figuras secundárias possuem um charme que nem sempre notamos. A protagonista sempre rouba toda nossa atenção, mas os grandes escritores, por vezes, recorrem às coadjuvantes para mostrar um caminho menos comum e mais discreto, que, no entanto, muitas vezes, representa suas ideias mais centrais.
 
É assim que se desenvolve a relação entre Emil Sinclair e Pistórius em Demian, de Hermann Hesse. Todos nós recordamos a narrativa: Sinclair busca um guia, um conhecimento supostamente secreto que lhe permita atravessar ileso o mundo, ou pelo menos compreendê-lo. Ele é alguém em busca de outros iniciados, seus iguais, que o compreendam e o encorajem. E, claro, encontra Demian.
 
Demian é o guia e o caminho. No entanto, a personagem de Pistórius é o outro caminho, o outro modo de ser um herói que Emil não ousa assumir, porque está obcecado em ser um escolhido. Por quem e para quê? Talvez apenas para contar esta história, porque, de outra forma, é difícil entender por que seria um escolhido, a menos que seu verdadeiro caminho não seja outro senão encontrar a si mesmo. Se for assim, é impossível concluir que ele tenha terminado de se conhecer quando o romance termina; ele ainda precisa experimentar o amor doméstico, a maturidade, a doença, a velhice...
 
Ser Demian ou Emil é fácil, desde que você não tenha mais de vinte anos. Depois disso, só resta o sacrifício, o crime, o suicídio ou... Pistórius. Pistórius foi Demian e foi Emil. Um adolescente com dons extraordinários, inteligente, sensível, culto. E agora é um homem comum. E para um demian, não há castigo maior.
 
O encontro acontece assim: Emil está perdido na cidade, em um desses périplos em busca de si mesmo, quando, de repente, para em frente a uma igreja e ouve uma melodia de Bach. Alguém está tocando Musikalisches Opfer magnificamente. Emil espera o músico sair e o segue até uma taverna. Falam de Abraxas, o contra-Deus que abraça o bem e o mal, uma divindade síntese. E então se reconhecem como iniciados, exceto pelo fato de Pistorius esclarecer: “sou um filho transviado”.¹
 
Que Pistorius seja um “filho” não é nenhuma surpresa. Todos os protagonistas dos romances de Hesse são eternos adolescentes. Mas o que significa “transviado”? Que desperdiçou seu talento; e, ainda assim, tem uma coisa ou duas a ensinar. Ele coloca Emil diante do fogo e lhe diz: “cada um de nós é um ser total do mundo, e da mesma forma como o corpo integra toda a trajetória da evolução, remontando ao peixe e mesmo a antes, levamos em nossa alma tudo o quanto desde o princípio está vivendo na alma dos homens. Todos os deuses e todos os demônios que já existiram, quer entre os gregos, os chineses ou os cafres, todos estão conosco, todos estão presentes, como possibilidades, desejos ou caminhos”.
 
E em que constitui seu fracasso? Ele se rendeu a Cristo em vez de Abraxas, a quem conheceu tarde demais. Queria ser um sacerdote, mas um “sacerdote não quer converter, quer viver entre os crentes, entre seus semelhantes, e quer ser substrato e expressão do sentimento que fazemos nossos deuses”. Ele gosta de Abraxas, aquele deus gnóstico, mas sabe que é uma religião de solitários, e “uma religião solitária não é nada. Tem que tomar-se coletiva; é preciso ter culto e adeptos, festas e mistérios”.
 
Em outras palavras, Pistórius não quer ser único, como Demian e Emil; ele quer ser um igual entre seus iguais. E, portanto, quer estar em comunidade. Demian e Emil não sabem, nem querem, estar em uma comunidade, porque então perderiam seu estatuto de seres “diferentes”. Então, por revelar a impostura de sua ambição adolescente, Emil o pune. Ele lhe diz que sua ideia é “arqueológica”. O arqueológico não pode ser individual ou único; caso contrário, não poderia representar uma cultura, uma civilização; o arqueológico é fundamentalmente o anônimo. Emil o insulta, sugerindo que ele é adulto demais, que é algo como uma lesa-majestade traiçoeira nos romances de Hesse.
 
O segredo que Pistórius quer lhe transmitir é este: ninguém se salva sozinho. No fundo, é mais difícil aceitar ser uma pessoa comum do que alguém especial. Mas ao Super-Homem nietzschiano não se pode dizer nada tão obsceno. Talvez o Super-Homem só possa ser a Supercriança: o adolescente, o puer aeternus, sem vínculos, cuja identidade, ética e responsabilidade estão sempre por se definir. “O impulso que te faz voar é o nosso grande patrimônio humano, comum a todos”, diz Pistorius.
 
O verdadeiro trabalho, ele insiste, não é tanto se somos ou não capazes de mudar o mundo — isso ainda está para ser visto —, mas “dentro de nós mesmos, temos que renová-lo a cada dia; de outro modo, nada conseguiremos.” “Em lugar de crucificar-te a ti mesmo ou a outrem, o melhor é bebermos todos o mesmo cálice, elevando solenemente nosso espírito e pensando no mistério do sacrifício”, isto é, pode-se pensar no ideal, sem necessariamente querer cumpri-lo a todo momento, pois só podemos acessar esses estados de embriaguez momentaneamente. Não se pode presumir carregar o estigma de Caim sem orgulho, porque a chama de Deus só chama quando quer; não está em nós a possibilidade de entrar nesse estado, exceto quando atentos para não perder a oportunidade quando o chamado chegar. E mesmo isso, Pistórius aponta, é “um luxo e uma fraqueza. Seria mais digno e mais acertado estar simplesmente à disposição do destino, sem aspirações de qualquer ordem.”
 
Mas será possível alcançar a condição de homem sem atributos, um homem comum e trivial, e aceitar e viver isso? “É muito difícil, é o único verdadeiramente difícil. [...] Aquele que verdadeiramente só quer seu destino já não tem semelhantes e se ergue solitário sobre a terra, tendo a seu lado somente os gélidos espaços infinitos.” Inspirado, Pistórius esclarece: “As pessoas como tu e eu vivemos já por demais solitárias; mas nós ainda temos pelo menos um amigo e a oculta satisfação de seremos diferentes dos demais, de nos rebelarmos e de querer o extraordinário. Mas também a isso devemos renunciar se quisermos seguir o caminho até o fim. Também não se deve querer ser revolucionário, exemplo ou mártir. Não se pode.”
 
Ser um homem comum, sem maiores pretensões, porque não há nada a ensinar, nada a provar, nada a ser, exceto cumprir “é o único verdadeiramente difícil”: assumir a tarefa de viver e morrer sem alarde, servir sem buscar outra recompensa além a de ter servido.
 
Não é de se admirar que Emil lhe dê as costas. Ele quer ser o protagonista de sua própria via crucis. Ser único, especial, foi o canto da sereia do século XX, refinado ao ponto do ridículo até agora neste século. Talvez seja hora de ouvir Pistórius e deixar o sonho do demian para a adolescência do espírito.


 
Notas da tradução
1 Este excerto e outros do romance Demian é da tradução de Ivo Barroso (Record, 2012). 


* Este texto é a tradução de “Sobre un personaje secundario”, publicado aqui, na revista El Cultural.

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