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Mostrando postagens de setembro, 2020

O que teríamos feito sem Ursula K. Le Guin?

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Por Laura Fernández   Ursula K. Le Guin nunca quis ser escritora. Mas foi, sem mais delongas. “Não me lembro de ter feito outra coisa senão escrever”, respondia a qualquer pessoa interessada quando deu o passo definitivo. Desde criança, escrevia. Enviou seu primeiro conto para uma revista quando tinha 11 anos. Recebeu uma carta de recusa. Demorou mais dez anos para enviar qualquer outra coisa a qualquer lugar novamente. E o que conseguiu? Outra carta de rejeição. “Você escreve bem”, dizia a carta, “mas não sabemos exatamente o que você faz.” A época? Meados da década de 1950, quando ainda não existia uma ficção científica e literatura de fantasia que fosse considerada como tal. Na ficção científica reinava a chamada hard sci-fi , ou seja, aquela que tendia a dar detalhes técnicos, a justificar, em certo sentido, o papel da ciência numa época em que ainda ninguém confiava excessivamente nela, popularmente falando. No que diz respeito à Literatura com maiúsculas, esta era feita pelo “rea

Júlio Verne: uma viagem ao coração do mar

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Por Juan José Rodríguez O capitão Nemo observa um polvo gigante da cabine do Nautilus. Gravura de Alphonse de Neuville e Edouard Riou, 1870. O quanto alguém tão peculiar como Júlio Verne ainda incendeia em nossas mentes? Ele não foi um Charles Dickens, um Balzac ou muito menos um Dostoiévski, mas toda a sua obra é uma coluna fundamental quando se trata de explicar o grande impacto da literatura nas sociedades modernas. Sem a sua presença não haveria marcos monumentais como a divulgação lúdica da ciência, a cultura do entretenimento, o gosto pelas viagens e o respeito sagrado pelas regiões desconhecidas da natureza. Júlio Verne ainda nos cativa com seu ar de Art Nouveau ― os especialistas em cultura francesa diriam Segundo Império ― com sua voz antiga de antiquário e sua cenografia de espaços abertos em horizontes desconhecidos. Sua prosa de folhetim, planejada para manter em suspense um leitor muito mais cavalheiresco do que o atual, hoje padece de digressões doutorais, pois o desej

Jacques Roumain no céu do Caribe

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Por Pedro de la Hoz Jacques Roumain e Nicolás Guillén. Arquivo: Fundação Guillén   Talvez pela intuição de que logo partiria para sempre, a última vez que Jacques Roumain viu Nicolás Guillén em Havana deixou com o poeta cubano um exemplar do romance que marcaria sua grande estatura literária junto com a tradução francesa de alguns versos do amigo. Mas também, por essa mesma intuição, ele quis levar consigo uma lembrança. “Nicolás, se você me convida para almoçar, qualquer prato é bom, desde que tenha um pouco de inhame.”   Deus sabe, ou melhor, Papá Legbá, se para o haitiano aquele pedaço de alimento da terra que alimentava escravos e quilombolas, libertos e operários de seu país e do nosso foi, desde sua profunda condição antilhana, um gatilho de imaginação, como a famosa madeleine foi para Proust.   A verdade é que Roumain morreu pouco depois, exatamente em agosto de 1944, aos 37 anos, para entrar definitivamente no panteão daqueles seres que se recusam a morrer. Ainda há tanta vida

Boletim Letras 360º #394

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DO EDITOR 1. Abro este boletim registrando a continuidade de uma marca que foi até então alcançada sempre esporadicamente: o número de visitas diárias ao Letras se manteve nas três últimas semanas sempre acima dos dois mil acessos, chegando a três, quatro mil visitas por dia.   2. O motivo das chegadas é sempre desconhecido sobretudo porque o blog deixou de divulgar as posts diárias no Facebook, restando apenas ao pequeno público de quase dois mil leitores que acompanha através do Twitter. Será o algoritmo dessa rede mais sadio que aquele? Pesquisar.   3. Este registro é para, além de entender a solidão na grande multidão. É para reafirmar os agradecimentos pela sua chegada, leitor. Sempre que possível interaja. É uma maneira de aliviar o abismo intransponível aberto entre o lado de cá e o daí.   4. Esta é a nova edição do Boletim Letras 360º, uma post semanal criada há 394 semanas, desde quando os algoritmos do Facebook passaram a trair nós todos. Reúnem-se aqui todas as notícias q

Os diários de Sylvia Plath: uma leitura tortuosa

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Por Rafael Kafka Sylvia Plath em registro do amigo Gordon Lameyer, 1953. Diários de autores famosos são obras que nos servem para indicar diretrizes de investigação de processos literários os quais se conectam às existências dos escritores por nós analisados. Obviamente, não defendo aqui uma visão do processo literário presa aos elementos biográficos de uma dada existência, o que seria empobrecer demais a literatura. Mas em alguns contextos, vida e obra estão tão conectados que é impossível não se pensar em mecanismos de entendimento mútuo. Sylvia Plath é um exemplo perfeito dessa situação. A autora cometeu suicídio muito jovem e é autora de um romance muito interessante chamado A redoma de vidro , obra que revela muito a dimensão de abuso por ela sofrida de um ambiente patriarcal brutal. Na figura de Esther, Plath conta a história de uma jovem moça mutilada entre o sonho de ter uma carreira bem sucedida enquanto contém dúvidas sobre o futuro ao lado de uma família tradicional. E

Sophia de Mello Breyner Andresen e João Cabral de Melo Neto, convívios pela poesia

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Por Pedro Fernandes Sophia de Mello Breyner Andresen. Foto: Fernando Lemos.   O que sempre importa no trabalho de buscar compreender os meandros do convívio entre escritores é encontrar as semelhanças e distanciamentos sobre suas maneiras de compreender os processos criativos. Quase sempre, encontramos pequenos traços de influência que podem vigorar de uma ou de ambas as partes e se fazer notar na obra literária. Quando não, o que ressoa é apenas afeto, trocas de gentilezas e cordialidades mútuas, uma ou outra leitura sobre os contextos ocupados por cada um, sem os grandes apelos que se faz recorrente quando os envolvimentos alcançam uma maior intimidade.   O convívio entre os poetas João Cabral de Melo Neto e Sophia de Mello Breyner Andresen é sui generis . Os registros sempre entregam uma admiração respeitosa, e às vezes desmedida, da parte dela, desde o primeiro encontro em setembro de 1958 em Sevilha quando os dois se conhecem pelo intermédio do poeta carioca José Paulo Moreira da

Um Estado contra dois escritores

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Por David Toscana Boris Pasternak. Boris Pasternak não viajou a Estocolmo em 1958 para receber o Prêmio Nobel de Literatura, horrorizado com a possibilidade de que o governo soviético, liderado por Nikita Khrushchov, não o permitisse voltar para sua terra natal. A mesma coisa aconteceu doze anos depois com Aleksandr Soljenítsyn, agora com uma União Soviética sob o comando de Leonid Brejnev. Os dois escritores foram perseguidos e intimidados pela imprensa oficial, por colegas de classe ligados ao sistema, pelos serviços secretos, por funcionários comunistas, pelas gentes covardes. Doutor Jivago , Um dia na vida de Ivan Denissovitch , O primeiro círculo , Pavilhão de cancerosos apresentavam a arte literária e a realidade através da pena de dois homens de espírito livre, o que significava ter uma visão crítica de seu mundo, seu governo, seu país, seus tempos e suas próprias experiências. Acima de tudo, esses romances exaltavam o indivíduo acima da massa. A enxurrada de insultos, ameaças

E se Shakespeare não fosse Shakespeare (dúvida de Linguística Forense)

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Por Teresa Galarza Foi Shakespeare Shakespeare ? Sabemos quem foi Shakespeare. Mas foi ele quem escreveu toda a sua obra? Existem algumas teorias sobre isso. De acordo com os céticos, Shakespeare poderia ter sido, na verdade, Christopher Marlowe, ou Edward de Vere, ou uma mulher italiana — Emilia Bassano —, ou Sir Francis Bacon ou, talvez, ao invés de um único autor, um coletivo que incluiria vários atores e escritores.   Nos últimos anos, uma peça de Morgan Lloyd Malcolm despertou a curiosidade de alguns fãs de teatro e fofoqueiros: Emilia . A peça é sobre uma contemporânea de Shakespeare chamada Emilia Bassano. Nascida em Londres em 1569 em uma família de imigrantes venezianos — músicos e fabricantes de instrumentos, possivelmente judeus —, ela foi uma das primeiras mulheres a publicar um volume de poesia na Inglaterra.   A obra de Bassano, adequada aos padrões religiosos da época, também é considerada feminista. Sua existência foi descoberta em 1973 pelo historiador de Oxford A. L.