Os diários de Sylvia Plath: uma leitura tortuosa
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Sylvia Plath em registro do amigo Gordon Lameyer, 1953. |
Diários de autores famosos são
obras que nos servem para indicar diretrizes de investigação de processos
literários os quais se conectam às existências dos escritores por nós
analisados. Obviamente, não defendo aqui uma visão do processo literário presa aos
elementos biográficos de uma dada existência, o que seria empobrecer demais a
literatura. Mas em alguns contextos, vida e obra estão tão conectados que é
impossível não se pensar em mecanismos de entendimento mútuo.
Sylvia Plath é um exemplo perfeito
dessa situação. A autora cometeu suicídio muito jovem e é autora de um romance
muito interessante chamado A redoma de vidro, obra que revela muito a dimensão
de abuso por ela sofrida de um ambiente patriarcal brutal. Na figura de Esther,
Plath conta a história de uma jovem moça mutilada entre o sonho de ter uma
carreira bem sucedida enquanto contém dúvidas sobre o futuro ao lado de uma
família tradicional.
Esse tipo de mutilação é algo
presente em diversas páginas dos diários de Plath. A autora em diversos momentos
escreve longos parágrafos fragmentários os quais revelam a dimensão de si
cindida entre a mulher livre e a que deseja o lar americano conhecido por todos
nós das obras fílmicas. No começo do livro que compila seus relatos, esse tipo
de situação é mais comum, ao mesmo tempo em que histórias de abusos sexuais
surgem revelando todo o terror que Sylvia começa a adquirir dos homens.
O modo de escrita nesses momentos
lembra por demais a escrita romanesca e há muito dos poemas também. O fluxo de
consciência toma conta e uma variedade de simbolismos é usada no sentido de reforçar
os efeitos produzidos na consciência da autora pelos fatos narrados. Aos
poucos, surgem autocobranças cada vez mais intensas a respeito da produção de
trabalhos literários e começamos a entender que os diários na verdade viraram
uma espécie de produção literária improvisada.
São neles que Plath consegue
colocar em prática o seu labor de uma maneira que ainda não consegue nos livros
e nos poemas e contos enviados a diversas revistas. Aliás, os fracassos em
obter aprovação desses periódicos são algo que afetará demais a psique de
Plath, a qual ao longo dos anos, mesmo jovem, começará a se ver como alguém que
viu seu tempo passar. Por conta disso, os diários se mostram com uma certa
dimensão de terror psicológico, pois vemos a mente de Plath se deteriorar ao
longo dos anos.
Como tentativa de controle, ela
cria lista de mandamentos, metas, estratégias de leitura e de trabalho,
esquemas de ação e outros recursos para conseguir se manter raciocinando e
produzindo o seu trabalho. Ao mesmo tempo, em diversos momentos a obra assume
um aspecto descritivo focado no ambiente externo, como uma tentativa da autora
de se manter ligada ao mundo real sem se perder tanto em devaneios. A escrita
se torna repetitiva como ocorre em boa parte dos diários, mas aqui penso que o
elemento primordial de repetição não são os fatos do cotidiano em si, mas as
tentativas de elaboração, em um sentido psicanalítico, do que ocorre consigo e
ao redor.

Em diversos momentos desde o
começo do livro, o vocabulário psicanalítico dá as caras como um recurso Plath
de desbravar as suas neuroses. Há momentos em que ela explora o rancor pelos
homens a partir da tradicional ideia de inveja ao pênis trazida por Freud e
outros autores. As mulheres teriam esse rancor em si por conta da liberdade que
os homens têm e elas não e isso se demonstra mesmo dentro do casamento. Ao
mesmo tempo, ela aborda demais a relação com a mãe como uma forma de enxergar
em si um sentimento de culpa e de insatisfação pessoal do qual não consegue se
livrar. A autora usa mesmo registros de sua terapia após a primeira tentativa
de suicídio como uma estratégia de desvendar o que se passa consigo, ainda mais
após a primeira tentativa de suicídio.
O casamento com Ted Hughes também
é explorado nesses diários, mesmo que de um jeito mais tácito. Sylvia fala de como Hughes consegue um grau
de sucesso em aprovar seus textos que ela não consegue. A priori isso soa como
admiração, mas após um pouco surgem elementos de ressentimento na sua escrita.
Enquanto Hughes voa livre pelos mares literários, Sylvia se vê presa a uma
rotina de dona de casa que drena ainda mais suas energias e cada vez mais seus
planos e esquemas se mostram obsessivos com a ideia de melhorar sua produção e
seu ritmo de aprovação de trabalhos.
Não é fácil ler os diários de
Sylvia Plath. Mas a leitura é necessária para se entender ainda mais o processo
mental que a levou tanto à produção de obras importantes na prosa e na poesia,
quanto ao seu fatídico suicídio. Além disso, em tempos nos quais o debate sobre
suicídio volta a ficar em voga, com todos em tese confinados com medo de um
vírus assassino, mergulhar nos meandros de uma psique como a da autora é um
apelo a que pensemos com mais urgência sobre os temas da saúde mental, em uma
sociedade como a nossa que cobra demais, em especial das mulheres,
produtividade em diversos setores de sua existência.
Ligações a esta post:
>>> A tradução de um texto do escritor Rafael Narbona sobre os diários de Sylvia Plath
>>> Um texto de Fernanda Fatureto sobre os diários de Sylvia Plath
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