Um Estado contra dois escritores

Por David Toscana

Boris Pasternak.

Boris Pasternak não viajou a Estocolmo em 1958 para receber o Prêmio Nobel de Literatura, horrorizado com a possibilidade de que o governo soviético, liderado por Nikita Khrushchov, não o permitisse voltar para sua terra natal. A mesma coisa aconteceu doze anos depois com Aleksandr Soljenítsyn, agora com uma União Soviética sob o comando de Leonid Brejnev.

Os dois escritores foram perseguidos e intimidados pela imprensa oficial, por colegas de classe ligados ao sistema, pelos serviços secretos, por funcionários comunistas, pelas gentes covardes.

Doutor Jivago, Um dia na vida de Ivan Denissovitch, O primeiro círculo, Pavilhão de cancerosos apresentavam a arte literária e a realidade através da pena de dois homens de espírito livre, o que significava ter uma visão crítica de seu mundo, seu governo, seu país, seus tempos e suas próprias experiências. Acima de tudo, esses romances exaltavam o indivíduo acima da massa. A enxurrada de insultos, ameaças e conselhos fraternais para que abandonassem o país não os levaram agir assim. Eram recomendações saídas de pequenas mentes simples e fanáticas que se sentem ameaçadas pelo pensamento livre.

A imprensa rotulou Pasternak de Judas, a União dos Escritores o expulsou de suas fileiras e Khrushchov disse que o autor de Jivago era pior que um porco, já que porcos não sujavam o lugar onde dormiam e comiam. Os covardes protegidos pelo poder tinham grande prazer em reafirmar os insultos. A coragem, por outro lado, estava do lado daqueles que na hora de escrever respeitavam suas consciências, não uma ideologia acomodatícia.

É por isso que o Prêmio Nobel foi oferecido a Soljenítsyn pela “força ética com a qual buscou as tradições indispensáveis da literatura russa”. Força ética. Tradições indispensáveis. Dois pares que causaram muitos exílios, trabalhos forçados e execuções naquele país.

Os órgãos oficiais denunciaram o prêmio como sacrilégio. Soljenítsyn foi acusado de falta de sentimento patriótico e falta de princípios morais.

As mentes inconsequentes costumam questionar: por que um escritor deseja permanecer no país que está criticando? Nem mesmo é necessário responder, porque mentes inconsequentes não entenderiam. A pátria de alguém é a pátria de alguém é a pátria de alguém.

As pressões e ataques dividiram a vida de Boris Pasternak, que morreria em 1960; mas ele esteve disposto a morrer muito antes, a partir do momento quando entregou o manuscrito que chegaria à editora Feltrinelli. “Eu o convido para minha execução”, disse ao homem que recebeu de suas mãos o romance.

Soljenítsyn foi um soldado corajoso durante a Segunda Guerra Mundial, depois passou oito anos torturantes em um campo de trabalhos forçados, que agora chamamos de gulag devido ao seu romance Arquipélago gulag, e fora da prisão ele superou um câncer que foi diagnosticado como mortal. Portanto, ele não era o homem para se encolher diante dos seus inimigos vociferantes ou outras ameaças de prisão ou mesmo confinamento em um hospício. “Leões a mim?”, deve ter pensado.

Na batalha entre a intimidação e a bizarrice, venceu o bizarrice. Com a derrota do poderoso governo soviético, ele não teve escolha a não ser forçar o escritor a embarcar em um avião e colocá-lo em Frankfurt.

Soljenítsyn passou vinte anos no exílio. Mas primeiro caiu o comunismo caiu. E ele foi capaz de retornar à sua terra natal e viver naquela nova Rússia.

Os anos se passaram. A literatura sobrevive, os panfletos morrem. Políticos e funcionários morrem, a arte e o universal permanecem. Hoje se sabe que os piores que os porcos, os carentes de patriotismo e sem princípios éticos, não eram os perseguidos, mas os perseguidores. E sempre deve ser assim. 


* Este texto é a tradução de “Un Estado contra dos escritores”, publicado aqui em Letras Libres

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