E se Shakespeare não fosse Shakespeare (dúvida de Linguística Forense)

Por Teresa Galarza



Foi Shakespeare Shakespeare? Sabemos quem foi Shakespeare. Mas foi ele quem escreveu toda a sua obra? Existem algumas teorias sobre isso. De acordo com os céticos, Shakespeare poderia ter sido, na verdade, Christopher Marlowe, ou Edward de Vere, ou uma mulher italiana — Emilia Bassano —, ou Sir Francis Bacon ou, talvez, ao invés de um único autor, um coletivo que incluiria vários atores e escritores.
 
Nos últimos anos, uma peça de Morgan Lloyd Malcolm despertou a curiosidade de alguns fãs de teatro e fofoqueiros: Emilia. A peça é sobre uma contemporânea de Shakespeare chamada Emilia Bassano. Nascida em Londres em 1569 em uma família de imigrantes venezianos — músicos e fabricantes de instrumentos, possivelmente judeus —, ela foi uma das primeiras mulheres a publicar um volume de poesia na Inglaterra.
 
A obra de Bassano, adequada aos padrões religiosos da época, também é considerada feminista. Sua existência foi descoberta em 1973 pelo historiador de Oxford A. L. Rowse, que especulou que Emilia poderia ter sido a amante de Shakespeare, a “Dark Lady” descrita nos sonetos. Na peça de ficção Emilia, de Lloyd Malcolm, a personagem de Shakespeare usa as palavras de Bassano para a famosa defesa das mulheres feita pela personagem chamada Emilia no Otelo de Shakespeare.
 
A vida não-ficcional de Shakespeare está bem documentada. Os mais de setenta documentos existentes o indicam como ator, acionista de uma companhia de teatro, credor e investidor imobiliário. Parece que ele evitou pagar impostos, que especulou com cereais durante uma época de escassez e que foi multado várias vezes. O perfil é o de um empresário da indústria do entretenimento (desde o Renascimento). Talvez por isso se questione se ele foi realmente o autor de sua obra. Como Shakespeare adquiriu conhecimento sobre história, cultura, música, astronomia, vocabulário de outras línguas, países estrangeiros ...? E como ele sabia tanto sobre algumas cidades do norte da Itália? Shakespeare não foi educado até o pré-adolescente, não foi à universidade, não há registro de que tenha trabalhado no âmbito do teatro até os 28 anos e morreu aos 52.
 
A questão da autoria literária é de interesse desde que os autores assinam suas obras e os egos são mais importantes do que a próprio trabalho. As dúvidas sobre a autoria de Shakespeare começaram por volta de 1785, quando o reverendo James Wilmot afirmou que Sir Francis Bacon era o verdadeiro autor. Desde então, a polêmica sobre a autoria das peças de Shakespeare não cessou. Em 2016, a controvérsia ganhou as manchetes em vários meios de comunicação depois que a publicação The New Oxford Shakespeare destacou Christopher Marlowe como coautor de Shakespeare em Henrique VI. A notícia apareceu na BBC, The New York Times e The Washington Post.
 
Linguistas forenses foram encarregados de analisar as obras de Shakespeare e Marlowe. A análise de autoria é um ramo da linguística forense, um termo cunhado na década de 1960 durante a investigação de um caso de assassinato. Devido ao crescente interesse por este campo da linguística e, especificamente, pela identificação do autor, alguns estudiosos aproveitaram esta oportunidade para retornar à chamada “controvérsia de Shakespeare”.
 
O estudo da autoria atrai pesquisadores e profissionais de uma variedade de disciplinas, incluindo a linguística, a literatura, a história, a teologia, a psicologia, a estatística e a ciência da computação. Esses pesquisadores examinam uma variedade de parâmetros quando tratam de estabelecer uma autoria. A forma como o texto é produzido, ou seja, o meio e os materiais, é o primeiro dado e a base do trabalho, principalmente em documentos manuscritos. Mas o mais importante é o estilo, o tom, as descrições das pessoas, os lugares, as emoções e as situações, a estrutura das frases, o uso das diferentes categorias gramaticais e a pontuação. Os linguistas forenses também analisam o perfil psicolinguístico do autor para responder à pergunta: que tipo de pessoa escreveu isso? Finalmente, eles comparam os textos de estudo com outros textos. Essas técnicas, em resumo, permitem que os linguistas forenses organizem e analisem cientificamente os dados de um documento.
 
Existem também programas de computador que podem detectar a autoria com bastante precisão. Quando o romance O chamado do cuco foi publicado, não foi difícil analisá-lo com um software e, ao compará-lo com diversos textos de J. K. Rowling, descobrir que ela era a autora, e não o tal Robert Galbraith, que assinava. O software pega uma amostra de escrita e determina, com base na similaridade, quem, entre um grupo de autores, tem maior probabilidade de ter escrito essa amostra. Depois, um linguista deve verificar o trabalho e ser capaz de explicar as diferenças e por que elas são significativas.
 
Com o software se adianta muitíssimo o trabalho. Graças a esses programas, todos os tipos de textos anônimos famosos estão sendo examinados em busca de pistas sobre seus autores. Mas não confie neles, textos não tão famosos também são analisados: tuítes, status do Facebook, resenhas da Amazon... o que for preciso para obter pistas sobre nossos hábitos de consumo. O panóptico de Foucault para esses tempos é o celular.
 
A segunda edição de The Oxford Companion to Shakespeare foi publicada em janeiro de 2016, pouco antes das análises computacionais provando a autoria de Marlowe de partes da peça de Shakespeare serem confirmadas e publicadas. Meses depois, o renomado professor e editor do volume de Shakespeare divulgou um comunicado no qual explicava que Shakespeare colaborou com outros autores mais do que normalmente se pensa e que um terço de suas obras poderia ter sido escrito a quatro mãos.
 
Então, em vários programas de rádio da BBC, especialistas shakespearianos começaram a intervir falando de fatos bastante surpreendentes, como o de que o vocabulário de Shakespeare não era tão excepcionalmente amplo como sempre se pensava, mas era o usual da época. Parece que muitas das palavras e frases que pensávamos serem cunhadas por Shakespeare já haviam sido usadas por outros escritores antes dele e que eram típicas dos manuais de conversação da época.
 
Hugh Craig, diretor do Center for Literary and Linguistic Computing, concorda que Shakespeare não possuía o grande vocabulário geralmente atribuído a ele. Craig comparou as palavras que Shakespeare usou com as que aparecem em outros textos de dramaturgos da época e concluiu que a diferença de vocabulário não era surpreendente. Para Craig, o talento do autor inglês se deve principalmente à maneira como ele usou palavras comuns e correntes.
 
O trabalho de Craig levou a descobertas mais curiosas, como a de que uma série de cenas da peça A tragédia espanhola, anteriormente atribuída ao dramaturgo Ben Jonson, são, na verdade, shakespearianas. Os resultados estão em seu livro Shakespeare, Computers and the Mystery of Authorship.
 
Em relação a Bassano, é consenso que a sua pessoa e a sua obra devem ser aprofundadas se quisermos saber mais sobre a criação das obras de Shakespeare. Até agora, alguns estudiosos pensam que ela não era apenas a “Lady Dark” dos sonetos, mas também teve muito a ver com a criação de algumas obras de Shakespeare. Os enredos de cerca de quarenta histórias italianas, alguns nunca traduzidos para o inglês, estão incorporados às peças de Shakespeare. Shakespeare, como autodidata, poderia ter encontrado, traduzido e compreendido fontes tão diversas, mas também poderia ter recebido ajuda de alguém que conhecia essas histórias e que, além disso, o fez mudar seu ponto de vista sobre as mulheres.
 
A análise forense de autoria é um tema em ascensão que vai gerar mais interesse nos próximos anos, conforme ouvirmos falar de outras descobertas ainda mais impactantes. A questão é: devemos aplicar esse rigor científico ao lado humanista e estudar Shakespeare como se ele fosse um criminoso a ser descoberto? O que deveria importar é o estudo ― e o prazer ― dos textos de Shakespeare; o fim às vezes é o menos importante, e pode ser conveniente alterá-lo. Ironicamente, se Shakespeare não fosse Shakespeare, muito do interesse por sua obra estaria perdido. “Ser ou não ser, eis a questão”. 

* Este texto é a tradução de “Y si Shakespeare no fuera Shakespeare (duda de lingüista forense)” publicado aqui em Jot Down.
 

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

11 Livros que são quase pornografia

Elizabeth Bishop e Lota Macedo Soares

Dez poemas e fragmentos de Safo

Boletim Letras 360º #631

Boletim Letras 360º #646

Boletim Letras 360º #645