Martin Walser: o escritor e o polemista

Por Judith Kunze


Martin Walser. Foto: Felix Kaestle


 
“Pode-se dizer que é a compulsão constante de não deixar que a dor incessante da existência tenha a última palavra.” Esta frase de um dos mais importantes romancistas alemães do pós-guerra, Martin Walser — nascido em 1927 em Wasserburg e falecido no final de julho de 2023 em Überlingen — é talvez o que ilustra mais claramente a estrutura das suas personagens literárias, anti-heróis que lutam com conflitos internos, vivenciam decepções, enganam-se, fogem e fracassam.
 
No entanto, a maioria das pessoas associará Martin Walser a uma figura altamente controversa que defendia veementemente as suas opiniões em público. Assim, muitos se lembrarão da grande disputa mediática com Marcel Reich-Ranicki, desencadeada pelo seu romance de 2002, Morte de um crítico, ou pelo seu discurso em Frankfurt, em 1998.
 
O comprometimento político de Walser foi mais do que a “percepção de um tema obrigatório”, como chamava o próprio autor, segundo o professor e crítico Micha Brumlick: como era costume na época, ele vociferava mas debatia. Em 1958, juntamente com outros escritores, compôs uma carta aberta contra as armas nucleares; em 1998, no seu discurso na Paulskirche após receber o Prêmio da Paz dos Editores Alemães, criticou o fato de ser constantemente mostrado aos do seu país o seu passado nacional-socialista e que isso não contribuía automaticamente para uma memória crítica. “Incêndio intelectual”: esta foi a reação inicial do presidente do Conselho Central da Comunidade Judaica, Ignatz Bubis, ao discurso.
 
Walser também se viu obrigado a desempenhar um papel — embora pareça um pouco difícil dizer, como fez Brumlick na Deutschlandfunk: quando estava em crise se agarrava ao fogo de palha da política.
 
No romance Morte de um crítico, a personagem do crítico Ehrl-König é quase uma transposição do principal crítico literário da época, Marcel Reich-Ranicki. Em muitas resenhas, o crítico fictício é considerado insultuoso, uma certa consequência da disputa entre Walser e Reich-Ranicki que durou décadas. Por outro lado, apenas recebia atenção a análise da narrativa e das personagens.
 
No romance, o personagem Hans Lach é acusado de assassinar o crítico A. Ehrl-König, cujo nome faz referência ao poema “Erlkönig” de Goethe. O crítico desapareceu após sua última apresentação no programa Die Sprechstunde. Ehrl-König, que tem uma poltrona Império, “uma bela imitação, feita de madeira clara”, que lembra mármore, e “ranhuras e folhagens douradas”, diz que “os livros são bons ou ruins”. Ele havia criticado duramente o último livro de Lach, Mädchen ohne Zehennägel, em seu programa, que sempre começava dizendo: “Estou atrasado, mas estou aqui”. “Por que Hans Lach, contanto que tenha um editor que saiba vender bem livros ruins, escreveria bons livros?”, diz. Lach aparece na festa após o programa, embora Ehrl-König, egocêntrico e obcecado pelo poder, nunca convide autores de obras que criticou e ameaça revidar.
 
Michael Landolf, narrador e protagonista do romance, está convencido da inocência de Lach. Ele investiga o caso, fala tanto com o silencioso Lach na prisão quanto com os convidados da festa e mostra ao leitor os acontecimentos do último programa Die Sprechstunde citando os participantes em discurso indireto. “Agora percebi que não sentia pena do morto, mas apenas do culpado”, diz Landolf. No final, verifica-se que Ehrl-König não foi assassinado, mas aparentemente ele próprio encenou a sua morte ao aparecer novamente no programa.
 
A polêmica não surgiu apenas pela caricatura do crítico, mas também pela visão que tinha de suas origens judaicas. “Seu livro nada mais é do que uma fantasia de assassinato […]. Você construiu uma espécie de teatro mecânico no qual é possível saborear o assassinato sem cometê-lo. Mas não se trata do assassinato do crítico enquanto crítico, como acontece, por exemplo, com Tom Stoppard. É sobre o assassinato de um judeu”, disse F. Schirrmacher ao Frankfurter Allgemeine Zeitung.
 
Em Um cavalo em fuga (1980), também elogiado por Reich-Ranicki, os aspectos sociopolíticos ficam em segundo plano, mas o romance ainda aspira a refletir sua época. O tema da narrativa de corte psicológico é a crise da meia-idade e como lidar com ela na perspectiva de um conselheiro estudantil que envelhece. No livro, duas famílias se enfrentam e não poderiam ser mais diferentes. Por acaso, Helmut Halm encontra-se com um antigo colega de estudos Klaus Buch e reacende sua antiga amizade. Enquanto os Halm levam uma vida tranquila, os Buch são ativos e atléticos. O romance fala sobre os dois homens e suas esposas, suas profissões e suas estratégias de vida.
 
O romance autobiográfico Ein springender Brunnen (1998) acompanha a vida do adolescente Johann na era do Nacional-Socialismo. O crítico I. Radisch também recomenda Die Inszenierung (2013), um alegre romance de amor sem narrador, mas caracterizado apenas pela fala e pelo diálogo. Um diretor de cinema está deitado em uma cama de hospital e — assunto tão antigo quanto atual — ama duas mulheres: a enfermeira noturna e sua esposa.
 
Ou seja, além de uma personalidade controvertida, Walser foi acima de tudo um grande escritor. Escreveu cerca de setenta livros entre romances e contos. Na década de 1950 fez parte, juntamente com Heinrich Böll, Günter Grass, Wolfgang Koeppen e Max Frisch, da literatura do pós-guerra: temas como o passado nazista, a revolução, a perda de identidade ou o compromisso sociopolítico têm um peso importante em muitas de suas obras que, apenas na década de 1960, voltaram a ser politizada.

Ligações a esta post:


* Este texto é a tradução livre de “Martin Walser: el escritor y el polemista”, texto publicado aqui em Letras Libres.
 
 

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

A vegetariana, de Han Kang

Cinco coisas que você precisa saber sobre Cem anos de solidão

Boletim Letras 360º #604

Rio sangue, de Ronaldo Correia de Brito

Boletim Letras 360º #597

16 + 2 romances de formação que devemos ler