O autor como personagem: o Goethe de Martin Walser

Por Alfredo Monte




 
OS SOFRIMENTOS DE WERTHER ENVELHECIDO
 
“Que ora devo esperar de algum rever,
Da flor ainda fechada deste dia?
Com Paraíso e Inferno a te envolver,
Na indecisão tua alma se angustia! –
Adeus, ó dúvidas! No umbral dos Céus
Ela te leva a alçar nos braços seus.

No Paraíso então foste acolhido,
Como se jus fazendo à vida eterna;
Finda a esperança, e o desejo contido,
Cá estava pois a meta mais interna,
E ao contemplar da singular beleza
Secava a fonte ansiosa da tristeza.
(…)
 
A um seu olhar, como ao vigor solar,
E a um sopro seu, como aos da primavera,
Derrete-se o egoísmo a degelar
Toda a crosta invernal em que estivera;
Finda o interesse, acaba a teimosia,
Quando ela chega e os põe em letargia.

É como se dissesse; `De hora em hora
A vida se oferece amigamente.
Do passado o registro é incerto agora.
Do amanhã é vedado estar ciente.
E se com a noite eu já me amedrontei,
Com o pôr do sol, que brilha, me alegrei.

Faça pois como eu: sensato e rindo,
Olhe bem o momento! Sem tardança!
Com simpatia o tome por bem-vindo,
Quer em hora de ação, quer em festança.
Ponha-se inteiro e puro onde estiver,
Para tudo e invencível você ser.`

Bem dito isso, achei: se um deus lhe deu
Do momento essa graça tão presente,
Quem acaso ao amável lado seu
Um eleito da sorte não se sente?
Mas eu, mandado embora, o que faria,
Já sem você, de tal sabedoria?

Ora estou muito longe! E o que convém
Ao minuto atual não sei dizer;
O bom e o belo que dele me advêm
São apenas um fardo a rebater,
Ante a bruta saudade me impelindo,
Só me resta um remédio, o choro infindo.

Choro que jorra e flui, mas não tem jeito
De em meu íntimo a flama arrefecer…
(…)

Perdendo o Todo, eu mesmo, que era outrora
Favorito dos deuses, me perdi.
A me provar mandaram-me Pandora,
Que mais riscos que bens trazia em si;
À boca dadivosa eles me alçaram
E, ao separar-me dela, me arrasaram.”
 
 
Os versos acima são de um dos mais famosos poemas de Goethe (1749-1832), a Elegia, composta por 23 sextetos, agora universalmente conhecida como Elegia a Marienbad, e que faz parte de um pequeno volume chamado Trilogia da paixão (que pode ser encontrado numa edição conjunta da Rocco com a L&PM). A versão que utilizei foi feita por um dos nossos tradutores mais admiráveis e escrupulosos, Leonardo Fróes.
 
Elegia foi escrita em 1823, aos 74 anos do autor. O doloroso episódio biográfico que o inspirou (a paixão por uma mocinha de 19 anos, Ulrike von Levetzow) e que alijou o poeta da posição de “favorito dos deuses” é o mote para um delicioso e brilhante romance de Martin Walser (publicado em 2008, e traduzido no Brasil por Renata Dias Mundt, em edição da editora Planeta), Um homem apaixonado. Nele, encontraremos integralmente a Elegia (vertida de forma literal pela tradutora, por isso, apesar da sua competência optei pela versão de Fróes como intróito desta resenha).
 
Não vou entrar aqui no mérito da conveniência ou não desse gênero de paixão (no caso, uma diferença de 55 anos), que foi uma tendência da vida madura de Goethe. Só pretendo enaltecer as virtudes de uma obra que ousa nos fornecer um retrato verossímil de um criador quase inescrutável, apesar do teor confessional de boa parte da sua produção, e do tour-de-force de Thomas Mann, ao retratá-lo num famoso capítulo de Carlota em Weimar, obra-prima de 1939.
 
Na sua primeira parte, a narrativa localiza Goethe e a família Levetzow (mãe viúva e três filhas) na Marienbad de 1823, que começa a se tornar uma estância badalada no “circuito das águas” europeu. O ancião ocupa a posição mais eminente entre os homens de letras europeus, e é seguido, bajulado, citado, ou seja, aquela coisa pomposa que cerca a figura de Goethe como “ser olímpico”. Portanto, para as mulheres do clã é um privilégio a convivência com ele, o qual há dois anos está fascinado por Ulrike. Ela, por sua vez, parece manter sempre uma atitude de flerte, provocativa e sedutora. O sucesso do “casal” enamorado (eles chegam a trocar beijos, o que é evocado na Elegia) chegará ao auge quando ganharem um concurso de fantasias, ele como Werther, seu personagem mais famoso, e ela como Lotte, a amada do infeliz e suicida herói. Já nesse passo do romance, Walser nos impressiona porque, seguindo os meandros mentais e sentimentais de Goethe, nem por isso deixamos de pressentir, pulsando sob diálogos admiráveis em elegância e discrição, as intrigas da pequena sociedade ali instalada para o verão. Nessa parte, há também a constrangedora e cruel cena da queda de Goethe (num colóquio no escuro com Ulrike), em que se fica patente (e patético, até no sentido etimológico de “páthos”) seu esforço desesperado de manter a “dignidade”, grande meta dos seus anos tardios, mesmo movido por uma paixão potencialmente ridícula.
 
Ele usa seu protetor e amigo, o soberano de Weimar, para pedir em seu nome a mão de Ulrike. Na segunda parte, vemos como, sem querer perder o apelo mundano da presença do grande homem, a mãe da moça fará tudo para mantê-los sob vigilância, depois de uma discreta fuga para Karlsbad, ele no encalço delas.
 
Quando se pensa que não há o que avançar no romance, ele se torna melhor ainda: Goethe voltou a Weimar e escreveu a sua Elegia. O que fazer com ela? Não a pode mostrar para quase ninguém. E o grande homem é quase refém na sua casa: sua nora Ottilie (que está mais para esposa, tal forma voraz com que se apossou da vida cotidiana do famoso sogro) faz cenas, cai doente, devido aos boatos da possível ligação com Ulrike (transmitidos de boca em boca), o vigia, conspira, e ele chega a acreditar que até sua correspondência é revistada e censurada.
 
Pela arte de Walser, missivas reais e imaginárias se misturam, e ficamos conhecendo tanto a vida externa, os hábitos e as regras férreas que sustentam a existência (e freiam seu lado passional) do velho Werther como a sua vida interior de “homem apaixonado”, mas condenado à resignação: “…estás em terra inimiga… és agora o resignado, como nunca o foras… a mais nobre fachada cultural da Alemanha, da Europa, do mundo todo, o exemplo de resignação para os tempos vindouros, todos os infelizes devem levantar os olhos para ti como para uma constelação: assim se lida com uma grande dor, vês, de forma que a dor não seja mais dor… um sorriso, um esgar cultural que torna o teu rosto mais belo, a dor é uma poema de ocasião…” O poder da máscara.

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