Intermezzo, de Sally Rooney

Por Gabriella Kelmer


Sally Rooney. Foto: Jonny Davies


 
Desde o lançamento de Conversas entre amigos, publicado no Brasil pela Companhia das Letras em 2017 (a versão irlandesa é do mesmo ano), Sally Rooney foi alçada a uma esfera de notoriedade global a que poucos autores terão acesso ao longo de suas carreiras. Todas as suas obras, desde então, entraram em incontáveis listas de best-sellers; alguns de seus romances ganharam adaptações reconhecidas para outras mídias.
 
É possível que seja esse o caminho trilhado por Intermezzo, de 2024, romance que renova algumas das preferências temáticas da autora, como é o caso do adoecimento mental, da vida amorosa atravessada por arranjos atípicos ou disfuncionais, da solidão do sujeito contemporâneo. Sendo esse o caso, muito como nas obras anteriores, a abertura do mercado ― tanto o literário como o cinematográfico ― se justifica em parte pelo apelo das temáticas amorosa e sexual e, desconfio, também pelo fato de ser a escrita de Rooney um pouco mais sofisticada, quanto às temáticas abordadas, do que a de muitos de seus pares no subgênero a que pertence (no que podemos chamar amplamente de ficção para adultos).
 
O romance se dedica à história de dois irmãos, Peter e Ivan Koubek, cujo desentendimento tácito se aprofunda depois da morte do pai, a figura familiar mais importante da vida de ambos. A história se inicia durante o velório, quando os dois se encontram brevemente na cidade de origem; ao partirem de volta às respectivas casas, em Dublin, assumem o primeiro plano da obra, como era de se esperar, as vidas amorosas dos protagonistas.
 
“Um som ronronante mecânico lhe diz que alguém está ligando enquanto ele se senta no sofá e desamarra os sapatos. Chegou tarde do trabalho, terça-feira à noite, horário estranho para ligar, e não mandou mensagem antes, quase como se, sim, torcesse para ninguém atender. Pedido indeferido nesse caso. Difenidramina com uma taça de vinho tinto, vê o que as pessoas andam falando na internet. Dorme uma ou duas horas de luz acesa, se der sorte. Acorda de novo e tenta alguma coisa mais forte. Contempla com uma apreensão claustrofóbica as horas passando, sensação de ressecamento das pálpebras ao piscar. Três da madrugada, quatro, outro alprazolam, abre uma nova aba no navegador para digitar: psicose insônia. psicose início idade média. não consigo dormir enlouquecendo.” (Rooney, 2024, p. 63)
 
Peter, advogado bem-sucedido e irmão mais velho, vivencia uma depressão profunda, anterior à perda, e divide-se entre duas relações desajustadas com mulheres das quais deseja mais do que elas podem oferecer. A não-monogamia concretamente praticada é para ele inadmissível, sendo grande parte de seu sofrimento subjetivo vinculado à necessidade de reposicionar a vida e seus participantes nos locais designados a priori. O intervalo entre essas relações, atravessadas pela impossibilidade do contato sexual com o amor de juventude, Sylvia, e pela infrequência da provocação intelectual sentida nos encontros com a jovem Naomi, financeiramente mantida por Peter (situação cujas implicações problemáticas são tão conhecidas como exploradas por ambos), torna-se cada vez menor ao longo do romance, gerando muito desconforto no homem que as mantém.
 
Ivan, o irmão mais novo, vive reveses consideráveis na carreira como enxadrista. Sua genialidade é colocada em dúvida durante uma extensa má fase profissional, da qual, entretanto, deriva a apresentação à Margaret, mulher quatorze anos mais velha do que seus vinte e dois anos. O encontro entre os dois resulta num relacionamento mantido clandestinamente devido à diferença de idade. Sendo Margaret recém-divorciada, ela teme a exposição dentro da pequena comunidade onde vive no interior da Irlanda; Ivan, como não é incomum em sua idade, não tem muitas questões a complicarem o fato de ter encontrado uma companheira amorosa e sexual, estando sua angústia vinculada à impossibilidade de fazer as devidas interligações entre a perda do pai e seu xadrez ruim. Há, além disso, a má relação com o irmão.
 
O desajuste entre eles estende-se desde a adolescência de Ivan, devido à incompreensão gerada tanto por personalidades distintas como por dinâmicas familiares disfuncionais. Peter ressente-se pela responsabilidade assumida muito cedo, na ausência física da mãe e no absenteísmo emocional do pai; dentro do contexto de uma solidão ocasionada pelo acidente sofrido por Sylvia, afasta-se também do irmão, a cujas dificuldades de socialização está sempre aludindo. O mais novo, por sua vez, não tolera a superioridade do irmão, seu paternalismo exasperante, seu egoísmo voraz. Além disso, a compreensão de mundo reacionária de Ivan, em especial no que diz respeito às mulheres, é uma outra fratura que, mal desenvolvida na relação da personagem com Margaret, os diferencia (aliás, parece fugir a Peter a hipocrisia de seu discurso progressista sobre as mulheres não implicar diálogos francos com as duas com quem se relaciona).
 
“São sete e dez da noite de segunda-feira e ele está cruzando a O’Connell Bridge, atrasado como sempre. Faróis traseiros vermelhos na escuridão azul, silhuetas de prédios. O ônibus faz uma curva aberta no porto enquanto ele espera para atravessar. Quer contar a ela do julgamento: expressões que ele já decorou para repetir. Tamanha concatenação de erros desleixados deve pôr em dúvida a amplitude e a qualidade do exame das informações por parte do ministro. Depois de atravessar nos sinais, chega à Westmoreland Street, as mãos nos bolsos do casaco. Desejo quase de assobiar sozinho a abertura do Concerto nº 24. O ministro agiu de maneira irracional nesse ponto e chegou  numa conclusão claramente equivocada. A mensagem que recebeu de Ivan esta manhã, contar para ela também. Ei. Desculpa de novo por ontem. Se ainda quiser me ver, como está esta semana para você?” (Rooney, 2024, p. 129)
 
Esses são, em linhas gerais, os conflitos que movimentam o romance, embora sua organização seja bastante desigual. Cedendo espaço às vidas amorosas dos irmãos, a relação fraterna e o luto pelo pai, dilemas atravessados pela inabilidade de expressar a raiva e a perda até que elas se interponham forçosamente, acabam subdesenvolvidos. Os capítulos dedicados a Peter passam pelo mesmo processo, subjugando os mais compreensíveis sentimentos de isolamento e depressão no contexto de uma urbanidade desigual, desterritorializada e alienadora a um único e enervante dilema, ocasionado antes por ensimesmamento do que por qualquer oposição real por parte das pessoas com quem ele se relaciona. No grande esquema dos temas do romance, é frágil descobrir tanta energia empregada num falso problema, cuja indelével conveniência ― o acidente de Sylvia durante a juventude gera as dores persistentes que impossibilitam a manutenção da intimidade sexual com Peter e o estatuto de perfeição do relacionamento que mantinham, gerando a demanda física por Naomi ― expõe abertamente as necessidades do enredo. Pesa ainda, no que corresponde à perspectiva de Peter, manifestada por um narrador onisciente em terceira pessoa, o pedantismo da personagem, que adentra longas considerações filosóficas e se considera uma mente privilegiada, chegando a citar sem nenhuma ironia, é verdade que em discurso indireto livre, o diálogo com Ofélia em que Hamlet (ato 3, cena I) evidencia o próprio orgulho, vingança e ambição, relacionando-os à própria trajetória profissional de “vitórias continentais, recordes inéditos, bolsas acadêmicas” (Rooney, 2024, p. 241). Embora a erudição e a arrogância de Peter sejam inerentes ao ser ficcional e às suas relações, não parece inteiramente proposital a impaciência gerada pela personagem.



 
Ivan, por outro lado, é apresentado ― na mesma narração onisciente ― a partir de uma perspectiva menos exaustiva, sendo seu conflito com Margaret quase sem problemas. A relação entre os dois, nascida de um sentimento mútuo de compreensão, nunca chega ao ponto da ruptura. Em termos de constituição amorosa, apresenta-se a vivência de um relacionamento equânime, embora sejam diferentes os marcadores de idade; é por essa razão que a descoberta das ideologias reacionárias de Ivan, nunca introduzidas à parceira, é tão surpreendente, pois deveriam inviabilizar, ou minimamente tensionar, o vínculo amoroso apresentado ao leitor. Havia nesse ponto a oportunidade de explorar mais detidamente as consequências do uso irrestrito da internet pelos jovens, a medida em que sua linguagem persiste comprometida por visões de mundo não apenas misóginas, mas francamente violentas; no entanto, a estabilidade da personagem, sua empatia, sua visão crítica do dinheiro e da organização social acabam nunca sendo afetadas, como se ter sido seduzido por concepções sexistas fosse um apêndice – ou uma adição tardia ao enredo.
 
Em termos formais, a autora é muito afeita ao descritivismo ― “Alunos bocejando, bebendo de copos de papel, unhas batendo nos teclados” (Rooney, 2024, p. 74), “Mulheres com bebês e carrinhos, a Sra. Harringon no canto com o bule de chá, a máquina de expresso retinindo ao lado da pia” (Rooney, 2024, p. 87), “Mais tarde, em Roma: a tarde fresca cinzenta no pátio vazio de Doria Pamphilj. Pilares de pedra cercando um bosque de laranjeiras” (Rooney, 2024, p. 210) ―, constituído, embora em alguns momentos de forma bem executada, sem grandes inovações de linguagem. As orações curtas nem sempre funcionam, restando a impressão de uma ausência de motivação para o seu uso, quando ele deveria sublinhar questões de maior impacto ou lirismo na narrativa (nota-se o recurso na página 86, quando diz o texto que “Margaret bate de leve com o nó dos dedos antes de abrir mais um pouco a porta e olhar para dentro. A luz pálida da janela.”). A tentativa de emprego de uma linguagem poética ― parece-me ser esse o caso da descrição da luz da janela ― foi mais desnorteante do que compreensível, faltando muitas vezes qualquer propósito a ela associado. Do mesmo modo, os períodos longos, em que irrompem as subjetividades dos seres ficcionais em discurso indireto livre, desdobram-se em tentativas de aproximação da reflexão interior a partir de construções que não soam genuínas, falhando em emular uma sequência razoável de pensamentos: “E esta semana a mãe tem enviado as mensagens de sempre para deixá-lo culpado a respeito do cachorro, a respeito da incapacidade de Ivan de visitar o cachorro, e implicitamente da incapacidade de Ivan de visitar ela mesma, a mãe, a quem não tem vontade de visitar (...)” (Rooney, 2024, p. 161). Nesse caso, resta desmotivada a repetição dos termos e a elucidação de quem é aquela a quem se deseja visitar, “a mãe”, tendo sido o referente já mencionado no período e certamente mais do que reconhecido pela subjetividade de Ivan.
 
Com isso não nego os pontos positivos da obra. O reencontro final entre os irmãos é algo tocante; há diálogos, em suas interdições, em seus silêncios, bem elaborados; as interações trazem uma interioridade que se interpõe com bastante força, replicando a urgência de pensamentos que demandam atenção, como ocorre em geral durante as conversas cotidianas nas quais a vida subjetiva se torna esfuziante. É preciso dizer, todavia, que esses traços não autorizam a comparação do romance com obras do modernismo inglês e irlandês, como as há em algumas das críticas anglófonas sobre o romance; a aproximação é não apenas exagerada, mas absolutamente incabível, em particular se considerados os vários momentos em que a narrativa replica e aprofunda dinâmicas incomodamente juvenis, como é o caso da reflexão de uma personagem masculina que diz ter “medo da própria falta de jeito” por serem suas mãos “grandes” e “brutas” ao tocarem a mulher vitimada por constante sofrimento físico.
 
A obra, nesses casos, parece buscar se aproximar de estratégias mercadológicas ao mesmo tempo em que as mantém a certa distância, tanto por uma pretensa profundidade das temáticas discutidas (a dor de Sylvia como ponto de partida para a autocomiseração de Peter, que possui os atributos da masculinidade estereotípica, agora em desajuste dentro daquela relação), como pelo que chamei de maior sofisticação temática, expressão que só pode fazer sentido em face do completo desinteresse por verticalizar as questões discutidas de outras obras de mesmo alcance e apelo comercial. Talvez por essa tentativa de agradar a duas demandas ― de um lado, um mercado que deseja ler histórias de amor e sexo com papéis de gênero reafirmados (ainda que seja a partir de uma perspectiva que se quer crítica), de outro, uma demanda por um trabalho com a linguagem melhor desenvolvido, em que se verticalizam questões humanas, políticas e sociais ―, falha o romance em corresponder a qualquer uma das duas, gerando-se um meio-termo que não alcança inteiramente nem o entretenimento desinteressado, nem a fruição estética.
 
Reforço, entretanto, um certo material humano que persiste na narrativa, trazendo um regime de subjetividade muito vinculada à lógica de funcionamento das relações e do mundo em 2025. O descompasso entre os irmãos, o senso de autoimportância de Peter, a dificuldade de relacionamento de Ivan, o desajuste e a complicação dos envolvimentos amorosos, todas essas são temáticas ― e é importante que sejam consideradas assim, como temáticas, com pouco ou nenhum desdobramento estético ― cuja apresentação ecoa no leitor do presente. Essa é uma razão muito válida para a leitura do romance, apesar de eu considerar que sua reverberação durará pouco mais do que as listas de mais vendidos a que vem sido associado, a menos que, é claro, ele se torne uma série multimilionária.
 
A dubiedade da escrita de Rooney será suficiente para que eu incorra em novas leituras, embora eu confesse que elas se darão por curiosidade mais do que por expectativa.


Ligações a esta post:

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Intermezzo
Sally Rooney
Débora Landsberg (Trad.)
Companhia das Letras, 2024
488p.


Referências
ROONEY, Sally. Intermezzo. São Paulo: Companhia das Letras, 2024.
SHAKESPEARE, William. Hamlet. Trad. Millôr Fernandes. Porto Alegre: L&PM Pocket, 1999.
 

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