A vida como uma conversa entre amigos

Por Cláudia Ayumi Enabe




 
A conversa é uma estrutura nevrálgica para os romances de Sally Rooney. Em Pessoas normais (Companhia das Letras, 2021), os acontecimentos ganham significância na experiência de troca entre Marianne e Connell, em uma espécie de conversa ininterrupta que se estende pela vida dos personagens, tanto nos encontros quantos nos instantes de desencontros. Mais do que o diálogo, é a situação conversacional que costura o discurso a entrelaçar essas duas vidas. Isso significa não somente as palavras e as ideias, mas também as hesitações, os segredos, os não-ditos e as mentiras integram a conversação como uma complexa prática de linguagem, na qual os silêncios constituem a densidade desse instante de confluência com o outro.

Em uma “conversa entre amigos”, a confissão é um risco, deliberado ou não, mas inevitável. Talvez a conversa entre amigos seja ainda o único espaço em que essa troca de experiências ainda se preserve, em um movimento também de profunda humanidade, contrária à reificação geral das relações — de tal modo que a amizade seria um ponto de resistência à desintegração da narratividade preconizada por Walter Benjamin em seu mais célebre ensaio, “O narrador”. 

A dificuldade de pensar no sucesso de uma relação amorosa entre Connell e Marianne, com a consequente sensação de deslocamento em que surge o sexo entre ambos, parece associada à incapacidade de se mover do registro confessional, da conversa, para o discurso amoroso, que se estabelece pela hipertrofia de um eu que se manifesta no desejo ardente pelo outro. Uma transigência elaborada por Freud nos termos de uma dissolução: “No auge do enamoramento, a fronteira entre Eu e objeto ameaça desaparecer. Contrariando o testemunho dos sentidos, o enamorado afirma que Eu e Tu são um, e está preparado para agir como se assim fosse” (Mal-estar na civilização, tradução de Paulo César de Souza). Há uma paridade discursiva entre os protagonistas de Pessoas normais, de tal forma que é impossível considerar somente uma trajetória de vida, mas sim duas pessoas que se aproximam e se afastam, que se tocam e se retraem.

Considerando os títulos publicados por Rooney no Brasil, talvez se possa pensar que é o “belo mundo”, um no qual as fraturas de diversas ordens seriam menores, a impedir que os personagens se unam integralmente, sem a necessidade dos subterfúgios conversacionais para que a narrativa de suas vidas, um ao outro, torne-se possível. 

O “belo mundo” escapa porque o amor se revela impossível entre pessoas que o sonham de modo tão afinado. As fraturas interiores, provenientes das histórias de vida, conformam a conversação que se pode estabelecer. Lugares de classe e gênero, sociais, estão, mesmo que subjacentes, presentes nas palavras trocadas por Cornell e Marianne. Coincidentemente, Marianne é o nome pelo qual atende a interlocutora de Leonard Cohen em “So long, Marianne”, uma “conversa entre amigos” na qual também se revela conflituosa a continuidade entre a confissão e o amor. 

“Well, you know I love living with you, but you make me forget so very much” são algumas das linhas dessa declaração que escreve Leonard Cohen a sua amada Marianne. O esquecimento, na conversa entre amigos, é um deslize que pode gerar sentido, mas não possui centralidade no desenvolvimento desse gênero, por isso, aparentemente, Leonard e Marianne precisam se despedir (so long!), uma vez que Leonard precisa da amizade de Marianne. 

Conversar é justamente lembrar, na medida em que a lembrança é um ato criador, pois preenche os espaços em branco que permeiam as narrativas. O amigo é um leitor inveterado, como o pássaro Woodstock é do escritor Snoopy, segundo uma bela formulação de Julio Cortázar (Cortázar de A a Z): “si otra vez fuéramos capaces de empezar así uma novela para erizos, para seres como el pájaro Woodstock, lector siempre maravillado de las siempre incipientes obras completas de Snoopy”. Esse “leitor incipiente” de uma obra, formulação de Cortázar sobre o pássaro e o beagle desenhados por Charlie Schultz, representa bem o amigo que escuta, posição esta intercambiante e, geralmente, coincidente. Ao contar, o outro também capta as reações de quem escuta, percepção que modula o discurso, e permite a troca de turnos. Diante disso, a conversa entre amigos distingue-se fundamentalmente do discurso amoroso, pois a situação monológica, per se, é fatal para o gênero.  

O discurso amoroso é aquele que se desenvolve fragmentariamente, em “lufadas de linguagem”, segundo Roland Barthes (Fragmentos de um discurso amoroso). Pode-se pensar que a conversa entre amigos também possui essa fragmentariedade. Entretanto, a expressão cindida advém da dificuldade de se narrar o que aconteceu. Diferentemente também da enunciação do enamorado, os amigos não estão constantemente “intrigando contra si”, mais um atributo desvendado por Barthes. 

A conversa entre amigos possui o fundamento de transportar para um campo de partilha as experiências mais pessoais, mesmo que esse movimento não seja explícito, ao modo de alguém que conta tudo, mas de quem sugere e evidencia. Na partilha, o outro apreende os gestos e as ausências, transpondo a lacuna à significância da narrativa. A relação de Connell e Marianne, assim como a de Marianne e Leonard na canção, erige seu lirismo a partir do momento em que se percebe o outro na centralidade da própria narrativa. Um trajeto formativo, subjetivo e individual, mas partilhado. “Enquanto isso, a vida se abre à frente dele em todas as direções ao mesmo tempo. Fizeram muito bem um ao outro. De verdade, ela pensa, de verdade. As pessoas podem mudar as outras de verdade.” (Normal people, p. 262) — talvez essa seja a expressão máxima da amizade, da poética desse gênero cheio de lirismo que é a conversa entre amigos.


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Pessoas normais, de Sally Rooney
Débora Landsberg (Trad.)
Companhia das Letras, 2019

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