Bird e a sinceridade de Andrea Arnold

Por Ernesto Diezmartínez
 



Perto do final de Bird (Reino Unido, Estados Unidos, França e Alemanha, 2024), o sexto longa-metragem da consagrada cineasta inglesa Andrea Arnold (Aquário, 2009; a precoce obra-prima O morro dos ventos uivantes, 2011; Docinho da América, 2016 e Cow, 2021), um personagem diz ao outro, como uma serena lição existencial, que “a vida nem sempre precisa de sentido”. É uma declaração esperançosa que, à medida que nos aproximamos da conclusão do filme, serve como um contraponto necessário a tudo o que vimos: pobreza, abandono, vício e violência. Embora, em meio a tanto contínuo infortúnio, também tenhamos visto generosidade, solidariedade, amor e, acima de tudo, sinceridade.
 
Apresentado no Festival de Cannes 2024 — onde foi vergonhosamente ignorado pelo lamentável júri presidido por Greta Gerwig, que decidiu conceder o prêmio ao indefensável Emilia Pérez (Audiard, 2024) — Bird é marcado, do começo ao fim, pela sinceridade. Não há duplicidade nos personagens centrais: nenhuma em Bug (Kerry Keoghan, sensacional), esse pai terrível, egoísta e negligente que ainda quer começar uma nova vida com sua jovem noiva; nenhuma na adolescente inquieta Bailey (a estreante Nykiya Adams), que está descobrindo a si mesma e seu possível futuro naquela área semirrural esquecida do norte de Kent; e menos ainda naquele estranho excêntrico, o Bird do título (Franz Rogowski, frágil), que aparece do nada em busca de suas origens familiares porque nasceu há vários anos no mesmo prédio onde Bailey mora.
 
A sinceridade é, portanto, um valor fundamental para todos os personagens que constituem a trama narrativa do filme, incluindo um valioso sapo sul-americano, que Bug cria para vender sua gosma supostamente alucinógena como droga, ajudando-o assim a pagar seu casamento iminente com a alegre Kayleigh (Frankie Box). O problema é que, segundo Bug, o sapo em questão só baba quando ouve “música sincera”. Por exemplo, “Yellow”, do Coldplay.
 
Arnold nos engana com a verdade desde o início. Embora o enredo seja extremamente realista a ponto de beirar a pornô-miséria melodramática — estamos em uma favela em alguma cidade costeira no sul da Inglaterra, com perigo iminente em cada esquina, violência em cada lar, vícios e gravidez na adolescência em abundância —, logo percebemos que o mundo duro e rude que estamos testemunhando será experimentado através dos olhos e da sensibilidade da curiosa pré-adolescente Bailey, que gosta de escapar das quatro paredes sórdidas em que vive e deambular o restante do dia, às vezes até dormir em algum terreno baldio à noite e se deixar acordar por algum cavalo solto por aí. Nesse lugar simples, comum e ainda assim mágico, aliás, é onde Bailey conhece Bird, um homem estranho, de fala mansa, quase infantil, que sorri, pula e faz piruetas como se fosse um duende.
 
O lirismo depositado nas imagens de Arnold — trabalho de câmera nervosamente manual, edição sincopada/fragmentada, enquadramento subjetivo da perspectiva do protagonista — imediatamente nos faz duvidar. Será que a aparição repentina de Bird, literalmente levada pelos fortes ventos campestres de Kent, pode ser fruto da imaginação de Bailey? Não: o excêntrico homem também é visto por outros personagens, anda pelas ruas, bate em várias portas, pergunta por pais dos quais não se lembra e intervém num momento crucial, quando Bailey visita a sua mãe viciada, que é violentamente abusada pelo seu novo namorado.
 
Ou seja, Bird existe no mundo real, embora seja evidente que também pertence a outro mundo muito diferente, um no qual Bailey se move, seja através da sua imaginação, seja porque tem acesso àquele universo mágico onde os corvos carregam mensagens de amor, onde é possível se comunicar com os pássaros, onde alguém se transforma num piscar de olhos para salvar o dia, onde uma raposa chega como convidada a um casamento e onde sapos produzem uma gosma psicotrópica quando ouvem música.
 
Essa ambiguidade em Bird é fundamental para que o filme funcione segundo suas próprias regras, as que permitem a Arnold criar um universo narrativo sincrético no qual o real se alterna — ou até mesmo se funde — com o fantástico e o maravilhoso. Por meio dessa posição argumentativa radical, Arnold pretende nos apresentar uma verdade moral reconfortante que alcançamos não através do sofrimento gratuito dos personagens, mas testemunhando a comovente solidariedade entre eles, a genuína sinceridade de seus sentimentos.
 
Bug, o bonitão, pode não ser o melhor pai, mas é o único que Bailey tem. Sua infeliz mãe pode ter um péssimo gosto para namorados, mas ela ainda está lá. E a vida pode não ser um mar de rosas para Bailey ao entrar na adolescência, mas eventualmente fica claro para ela que, entre seus vizinhos e familiares, ela nunca estará sozinha. “Ninguém aqui está sozinho”, palavras (honestas) do Blur. 


* Este texto é a tradução livre de “Bird y la sinceridad de Andrea Arnold”, publicado aqui, em Letras Libres.

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