Sobre a obra de Laxe

Por Ángel María Fernández

…embora ame e estime sua pátria, julgando-a digna de todo afeto e apreço, considere bastante acidental ter nascido nesta parte do globo, ou em seus antípodas, ou em qualquer outro lugar.
 
— José Cadalso

 


Vive-se ultimamente uma epifania cinematográfica a cada ano em Espanha. A obra de Oliver Laxe se soma à de Albert Serra e, intencionalmente ou não, levanta a bandeira dos francesismos à espanhola. Talvez seja a França que levanta a bandeira para os artistas que estima e, assim, inveja aos espanhóis por sua espanholidade. Não sei ao certo, mas pouco importa. Já faz algum tempo que o nacional pouco significa, por mais que as forças do poder se esforcem nesse sentido. Talvez esse esforço justifique por que ele está escapando por entre seus dedos. O chamado cinema espanhol deixou de sê-lo, e temo que o mesmo esteja acontecendo com o cinema francês e os demais. Ainda mais quando a Europa se assume como um país, essa utopia em andamento, mesmo que haja nesse grupo os que parecem menos que coadjuvantes, figurantes.
 
Talvez seja só eu, mas para alguém nascido na década de 1970, a França era o lugar de onde recebíamos a maioria das nossas lições, especialmente as culturais, mas também outras que iam da culinária à sexual. Isso mudou. Agora há diretores de cinema como Laxe ou Serra que nos ensinam lições como espanhóis afrancesados, uma forma como qualquer outra de ser europeu. O cinema é uma pátria.
 
O trabalho de Laxe em Sirāt é cinema com todas as virtudes (originalidade, renovação) e também todos os truques. Ninguém pode negar que também é um filme de efeito, nascido com um macguffin invejável, tão bom que se duvida dele até agora, depois de repensá-lo, ao escrevê-lo. Um macguffin é o “motivo da argumento que” em Sirāt “faz a trama avançar” ou não? Qual a importância do que os protagonistas buscam para depois encontrarem o que encontram? Responda você. Quanto aos efeitos, eu respondo. Na minha opinião, é o mesmo que molda um filme da Marvel. Nestes, os efeitos funcionam por acumulação, enquanto em Sirāt, funciona pela forma como são administrados; funciona pela surpresa, mas ainda é efeito: há uma razão para ser cinema. O elenco também é sensacional, da criança aos adultos, e o destino de cada um deles: há uma razão para ser cinema.
 
O filme também é a história de uma jornada, outro motivo clássico para o cinema, que é também como nos referimos ao dia ou aos dias em que nos medicamos com drogas. Sirāt é a história do barato e, acima de tudo, a história da descida das substâncias narcóticas mais tóxicas. A chave para qualquer farmácia é a relação entre dose e overdose. Quanto mais tóxica a farmácia, maior a chance de morrer na tentativa, e mais forte e grave a descida. Daí a magia espetacular, quase divina, das drogas psicotrópicas, particularmente do LSD, que se diz ser metabolizado antes mesmo de causar o barato: “uma substância medicinal”, como seu pai adotivo, Alfred Hoffman, o chamou.
 
O lugar para onde Sirāt nos leva, o lugar para onde nos coloca, o relaciona com Tardes de solidão; a obra de Laxe, no entanto, é tão semelhante à de Serra quanto distinta, em todos os sentidos. Se “envelhecer, morrer” era “o único enredo da peça”, no já clássico de Gil de Biedma, os cineastas o refinaram e nos mostram que o enredo é único: trata-se simplesmente de morrer. O cinema também serve para nos ajudar a morrer, uma maneira que as artes têm de nos ajudar a viver. Do que morre no caso de Serra ao que morre no caso de Laxe, haveria muito o que falar. No caso de Laxe, os animais também são importantes, mesmo que não ocupem o centro do filme. Em ambos, os animais humanos são o fundamental.
 
A sobrecarga de informação (volto às drogas) da mídia com Laxe e Sirāt é compreendida quando se descobre nos créditos alguns dos produtores do filme (dos traficantes), especialistas em overdoses de informação por si só. O representante por excelência do que antes poderíamos chamar de cinema espanhol está por trás do que antes poderíamos chamar de cinema à la française, ou talvez, para os franceses, isto é, para paladares requintados (diferente do carpetovetônico espanhol), que é o que sempre pareceu se esconder por trás das lições de arte, culinária e até mesmo sexo que chegaram do outro lado dos Pireneus. Parece um pouco complexado, eu sei, numa época em que as artes dizem cada vez menos sobre o que lhes pertence, porque pouco ou nada lhes pertence em comparação com o que lhes é compartilhado.
 
A obra de Laxe é espetacular, excepcional, singular e, portanto, própria, o que ele carrega em si tudo o que compartilha com o cinema como um todo e tudo o que faz deste filme (acidentalmente) espanhol no cinema europeu, isto é, o cinema africano, no continente de onde todos nós viemos, a velha pátria daquele projeto homo unido à pátria relativamente jovem do cinema.


* Este texto é a tradução livre de “Lo de Laxe”, publicado aqui, em Letras Libres

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

11 Livros que são quase pornografia

Dez poemas e fragmentos de Safo

Boletim Letras 360º #647

Os desenhos de Bukowski

Boletim Letras 360º #632

Seis poemas de Rabindranath Tagore