Vive-se ultimamente uma epifania
cinematográfica a cada ano em Espanha. A obra de Oliver Laxe se soma à de Albert
Serra e, intencionalmente ou não, levanta a bandeira dos francesismos à espanhola.
Talvez seja a França que levanta a bandeira para os artistas que estima e,
assim, inveja aos espanhóis por sua espanholidade. Não sei ao certo, mas pouco
importa. Já faz algum tempo que o nacional pouco significa, por mais que as
forças do poder se esforcem nesse sentido. Talvez esse esforço justifique por
que ele está escapando por entre seus dedos. O chamado cinema espanhol deixou
de sê-lo, e temo que o mesmo esteja acontecendo com o cinema francês e os
demais. Ainda mais quando a Europa se assume como um país, essa utopia em
andamento, mesmo que haja nesse grupo os que parecem menos que coadjuvantes,
figurantes.
Talvez seja só eu, mas para alguém
nascido na década de 1970, a França era o lugar de onde recebíamos a maioria
das nossas lições, especialmente as culturais, mas também outras que iam da
culinária à sexual. Isso mudou. Agora há diretores de cinema como Laxe ou Serra
que nos ensinam lições como espanhóis afrancesados, uma forma como qualquer
outra de ser europeu. O cinema é uma pátria.
O trabalho de Laxe em
Sirāt
é cinema com todas as virtudes (originalidade, renovação) e também todos os
truques. Ninguém pode negar que também é um filme de efeito, nascido com um
macguffin
invejável, tão bom que se duvida dele até agora, depois de repensá-lo, ao
escrevê-lo. Um
macguffin é o “motivo da argumento que” em
Sirāt “faz
a trama avançar” ou não? Qual a importância do que os protagonistas buscam para
depois encontrarem o que encontram? Responda você. Quanto aos efeitos, eu
respondo. Na minha opinião, é o mesmo que molda um filme da Marvel. Nestes, os
efeitos funcionam por acumulação, enquanto em
Sirāt, funciona pela forma
como são administrados; funciona pela surpresa, mas ainda é efeito: há uma
razão para ser cinema. O elenco também é sensacional, da criança aos adultos, e
o destino de cada um deles: há uma razão para ser cinema.
O filme também é a história de uma
jornada, outro motivo clássico para o cinema, que é também como nos referimos
ao dia ou aos dias em que nos medicamos com drogas.
Sirāt é a história
do barato e, acima de tudo, a história da descida das substâncias narcóticas
mais tóxicas. A chave para qualquer farmácia é a relação entre dose e overdose.
Quanto mais tóxica a farmácia, maior a chance de morrer na tentativa, e mais
forte e grave a descida. Daí a magia espetacular, quase divina, das drogas
psicotrópicas, particularmente do LSD, que se diz ser metabolizado antes mesmo
de causar o barato: “uma substância medicinal”, como seu pai adotivo, Alfred
Hoffman, o chamou.
O lugar para onde
Sirāt nos
leva, o lugar para onde nos coloca, o relaciona com
Tardes de solidão; a
obra de Laxe, no entanto, é tão semelhante à de Serra quanto distinta, em todos
os sentidos. Se “envelhecer, morrer” era “o único enredo da peça”, no já clássico
de Gil de Biedma, os cineastas o refinaram e nos mostram que o enredo é único:
trata-se simplesmente de morrer. O cinema também serve para nos ajudar a
morrer, uma maneira que as artes têm de nos ajudar a viver. Do que morre no
caso de Serra ao que morre no caso de Laxe, haveria muito o que falar. No caso
de Laxe, os animais também são importantes, mesmo que não ocupem o centro do
filme. Em ambos, os animais humanos são o fundamental.
A sobrecarga de informação (volto
às drogas) da mídia com Laxe e
Sirāt é compreendida quando se descobre
nos créditos alguns dos produtores do filme (dos traficantes), especialistas em
overdoses de informação por si só. O representante por excelência do que antes
poderíamos chamar de cinema espanhol está por trás do que antes poderíamos
chamar de cinema à
la française, ou talvez, para os franceses, isto é,
para paladares requintados (diferente do carpetovetônico espanhol), que é o que
sempre pareceu se esconder por trás das lições de arte, culinária e até mesmo
sexo que chegaram do outro lado dos Pireneus. Parece um pouco complexado, eu
sei, numa época em que as artes dizem cada vez menos sobre o que lhes pertence,
porque pouco ou nada lhes pertence em comparação com o que lhes é
compartilhado.
A obra de Laxe é espetacular,
excepcional, singular e, portanto, própria, o que ele carrega em si tudo o que
compartilha com o cinema como um todo e tudo o que faz deste filme (acidentalmente)
espanhol no cinema europeu, isto é, o cinema africano, no continente de onde
todos nós viemos, a velha pátria daquele projeto
homo unido à pátria
relativamente jovem do cinema.
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