Caderno vermelho, caderno azul

Por Maurício Montiel Figueiras




De quem falamos quando falamos de Paul Auster? Do narrador que nos anos oitenta se tornou a nova ponta de lança da literatura estadunidense graças ao fato de a crítica francesa reconhecer o valor e as contribuições de títulos como O inventor da solidão, A trilogia de Nova York (composta por Cidade de vidro, Espectros e A sala trancada), No país das últimas coisas e Palácio da Lua? Do poeta cuja habilidade lírica fica evidente não só em Ground Work: Selected Poems and Essays (1970-1979) mas no seu trabalho como tradutor para o inglês de Jacques Dupin, Edmond Jabès e Stéphane Mallarmé, entre outros? Do ensaísta que em A arte da fome demonstra que pode praticar com facilidade o gênero de Montaigne? Do editor responsável por The Random House Book of Twentieth-Century French Poetry e Achei que meu pai era Deus, uma antologia que recupera cento e setenta e nove das quatro mil histórias verdadeiras recebidas como parte do National Story Project, lançado através de um programa da National Public Radio? Do romancista que nos anos noventa, depois de publicar A música do acaso e Leviatã — que conta com um personagem baseado em Sophie Calle, a artista francesa com quem Auster colabora em Double Game and the Gotham Handbook — parecia ter chegado a um beco sem saída em Mr. Vertigo e especialmente em Timbuktu? Do cinéfilo que, apesar das relutâncias expressas no Dossier Paul Auster, numa série de entrevistas com Gérard de Cortanze, e em Da mão para a boca, sua autobiografia, sucumbiu ao encanto da sétima arte: primeiro como ator incidental na adaptação de Philip Haas A música do acaso; depois, como roteirista e codiretor de Cortina de fumaça e Sem fôlego, díptico brooklyniano de Wayne Wang; depois como cineasta com O mistério de Lulu e finalmente como responsável, junto com sua esposa (Siri Hustvedt, esplêndida ficcionista) pela história de O centro do mundo, filme erótico dirigido por Wang?
 
 O caso de Auster confirma que assumir a figura do homem orquestra nem sempre rende bons frutos; a incursão em Hollywood, para não ir mais longe, afetou a sua literatura. Em 1995, o autor afirmava: “Tenho alguns problemas com o cinema. Não só com este ou aquele filme específico, mas com os filmes em geral, com o próprio meio [...] Trabalhar em Cortina de fumaça e Sem fôlego foi uma experiência fantástica, mas basta. É hora de voltar para minha toca e começar a escrever novamente. Há um novo romance batendo na minha porta.” Esse romance acabou sendo Timbuktu (1999), o ponto mais baixo de uma carreira que começou a deslumbrar a crítica e o público dos dois lados do Atlântico. Tal tropeço narrativo, precedido e de alguma forma anunciado pelo deslize fílmico de O mistério de Lulu (1998), seria seguido por O livro das ilusões (2002), onde Auster acerta contas com a sétima arte através de um comediante do cinema mudo que decide desaparecer — o desaparecimento como clássica estratégia austeriana — depois de um acontecimento que beira o implausível e merece ser rotulado de hollywoodinesco. Este romance, no entanto, contém elementos suficientes para recuperar a fé num escritor que elevou os mecanismos do acaso e do destino a alturas incomuns; isso é comprovado, por exemplo, pelas treze histórias verdadeiras de O caderno vermelho (1993). Fetiche austeriano por excelência, o caderno estreou em Cidade de vidro (1985) e logo se tornou um leitmotiv, uma presença inquietante que ressurge em diversos livros. Auster confessa: “Sempre trabalhei com cadernos de espiral […] Está tudo ali, reunido num só lugar. O caderno é uma espécie de casa das palavras […] Como escrevo tudo à mão, o caderno passa a ser o meu lugar privado, um espaço interior.”
 
 Em A noite do oráculo, seu décimo primeiro romance — que começa, como Cidade de vidro, com uma peregrinação urbana: a errância novaiorquina como ritornello — o autor faz a casa das palavras mudar de cor e de dono; agora se trata de um caderno azul importado de Portugal que Sidney Orr, o protagonista, adquire num estabelecimento chamado O Palácio do Papel em alusão ao restaurante que chama de O Palácio da Lua (ambos os negócios pertencem a imigrantes chineses). É setembro de 1982 e estamos na área de Cobble Hill, no Brooklyn, território austeriano, se é que já existiu. Alter ego de seu criador, com quem divide profissão, Sidney está convalescendo de uma doença quase fatal quando se depara com o caderno que durante nove dias o mergulhará numa estranheza que evoca uma afirmação do próprio Auster — “Assim que eu começo a escrever […] o entorno desaparece. Nada é importante. O lugar onde estou é no caderno” — e confirma o alerta de John Trause, colega e amigo próximo de Orr e cópia de Don DeLillo: “Esses cadernos são muito gentis, mas também podem ser cruéis, e é preciso cuidado para não se perder neles.”



A perda de Sidney no feitiço literário (“As palavras saíram de mim como estivesse escrevendo um ditado, transcrevendo as frases de uma voz que falava na linguagem cristalina dos sonhos, dos pesadelos, das ideias desencadeadas”) põe para funcionar a matrioshka narrativa que é A noite do oráculo. Em primeiro plano está a vida de casado de Orr e Grace, uma designer gráfica e espécie de filha adotiva de Trause. Ao fundo está a história que Sidney começa a escrever no caderno azul, inspirada — como o filme que Auster e Wim Wenders iriam fazer juntos em 1990 e que nunca chegou a acontecer — em um personagem de O falcão maltês, de Dashiell Hammett: Flitcraft, um indivíduo comum que, ao se salvar de ser esmagado por uma viga, opta por desaparecer e retomar sua existência em outra cidade. No terceiro plano está o manuscrito que Nick Bowen, o Flitcraft nascido da caneta de Orr, recebe nos escritórios da editora onde trabalha: A noite do oráculo, romance datado de 1927 sobre um soldado inglês que volta a enxergar depois de ficar cego nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial. No quarto plano estão as notas de rodapé que completam, como flashbacks e notas digressivas, a narrativa que ocupa o primeiro plano.
 
 Alimentado por vários afluentes — a obsessão de um homem pelas fotos tridimensionais de sua família; uma frustrada versão cinematográfica de A máquina do tempo, de H.G. Wells; o affaire entre Grace e Trause que Sidney reconstrói em seu caderno —, esse impecável fluxo espiral é a maior conquista de A noite do oráculo. Não deixa de ser irônico que os erros, ou melhor, que as concessões hollywoodianas sejam agrupadas no primeiro plano narrativo, fundamental para Auster: “Na realidade, [este romance] é simplesmente uma história de amor”. Bem, não, teríamos que discordar, é muito mais do que isso: uma mise en abîme que abre as portas do laboratório literário para expor os altos e baixos da ficção, um passeio por certas razões que tornaram a obra austeriana cativante e que aqui se renovam — os caminhos sinuosos do acaso, o pai ausente, o personagem marginal transformado em museógrafo que redesenha o mundo a partir de seus fragmentos (neste caso, de antigas listas telefônicas).
 
“Talvez”, lemos em algum momento, “escrever não seja registrar eventos do passado, mas fazer coisas acontecerem no futuro”. Talvez Sidney Orr devesse ter guardado o caderno em vez de destruí-lo no final de A noite do oráculo, emulando o protagonista de A sala trancada (1986); talvez devesse ter permitido que as coisas continuassem acontecendo naquele espaço interior. Talvez Paul Auster devesse ouvir o conselho de uma de suas criaturas: “Não quero que você perca tempo pensando em cinema. Concentre-se nos livros. Esse é o seu futuro e espero grandes coisas de você.” Nós, seus leitores, nos unimos a esse desejo e esperamos que a mudança de cor não ofusque o futuro de um caderno que tanto tem contribuído para a literatura estadunidense atual. 


* Este texto é a tradução livre de “Cuaderno rojo, cuarderno azul”, publicado inicialmente em Letras Libres.

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