Camões, cantor de seu povo e voz de seu tempo

Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta

Camões lê Os Lusíadas. António Carneiro

Será difícil encontrar, em toda a história da literatura em língua portuguesa, um poeta tão magistral quanto Camões. Para que possamos conhecer melhor sua obra, preparamos esse dossiê dividido em duas partes. Veremos, em primeiro lugar, o que a crítica denomina poesia épica e, na sequência, seus poemas líricos.

Camões não foi o primeiro poeta a ter a ideia de escrever um poema épico sobre a expansão portuguesa – o humanista italiano Angelo Policiano já se havia oferecido a D João II para fazê-lo –, mas foi da sua pena que nasceram os inesquecíveis versos sobre as conquistas ultramarinas de Portugal.

O gênero épico, para os autores do Classicismo, traduzia-se de forma perfeita nas obras de Homero (Ilíada e Odisseia) e Virgílio (Eneida). O modelo não variava muito: esperava-se que o poema apresentasse uma disputa entre os deuses em relação ao comportamento humano; divididos, eles passavam a acompanhar o desdobramento de determinada ação humana (uma guerra, uma viagem marítima...), que apresentava uma unidade de conjunto e um desfecho. Era imperativo que o poema contasse com um herói para simbolizar a força e a determinação humanas.

Camões encontrou o que parece ser a solução perfeita para a contradição de elaborar uma epopeia em pleno Renascimento. Em lugar de um herói semidivino – incoerente com o espírito mercantilista e a exaltação das conquistas humanas –, construiu uma personagem – Vasco da Gama – que representa a grandeza de um povo. Nasce assim a epopeia pátria, cujas raízes podem ser traçadas nos textos do cronista Zurara.

Frontispício de uma das primeiras edições de Os Lusíadas


Os Lusíadas – obra prima do escritor português – trata-se de um poema dividido em 10 cantos que apresentam 1 102 estrofes e perfazem 8 816 versos. O título da obra trata-se de um neologismo inventado por André Resende, humanista português, para designar os portugueses descendentes de Luso – filho ou companheiro de deus Baco. Daí a obra abordar a história de Portugal – “a glória do navegador português” e a memória dos reis que “foram dilatando a Fé, o Império”.

A ação desenvolve-se em torno do herói declarado: o navegador Vasco da Gama. A leitura do poema, porém, obriga o leitor a reconsiderar a opção por um único herói e reconhecer que sobressai, em seu poema, a grandiosidade do povo lusitano, “a quem Netuno e Marte obedeceram”.

A crítica observa Os Lusíadas dotado de uma organização interna que permite a sua divisão em cinco partes: (a) proposição – que é a apresentação do poema, com a identificação do tema e do herói; (b) invocação – o eu-lírico pede as musas que lhe deem “um engenho ardente” e um “som alto e sublimado”, como manda a tradição clássica; (c) dedicatória – o eu-lírico dedica o poema a D Sebastião, rei de Portugal à época da publicação de Os Lusíadas; (d) narração – parte mais longa do poema, constitui a narrativa na qual é desenvolvido o tema, com o relato dos episódios da viagem de Vasco da Gama e com a reconstituição da história dos reis portugueses; (e) epílogo – encerramento do poema. Inicia-se com o pedido do eu-lírico as musas que lhe inspirem para que calem a voz de sua lira, pois encontra-se desiludido com uma pátria e um povo que já não considera merecedores das glórias de seu canto.

Camões lê Os Lusíadas (outra cena). António Carneiro.

Camões, em Os Lusíadas, faz um crítica – típica de seu tempo – à cobiça e à tirania no episódio do Velho do Restelo (canto IV – momento de partida das naus capitaneadas por Vasco da Gama).

Mas um velho, de aspeito venerando,
Que ficava nas praias, entre a gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça, descontente,
A voz pesada um pouco alevantada,
Que nós no mar ouvimos claramente,
Cum saber só de experiências feito,
Tais palavras tirou do experto peito:

– Ó glória de mandar, ó vã cobiça
Desta vaidade a quem chamamos Fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
Cua aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tromentas,
Que crueldades neles experimentas!

[...]

A que novos desastres determinas
De levar estes Reinos e esta gente?
Que perigos, que mortes lhes destinas,
Deba[i]xo dalgum nome preminente?
Que promessa de reinos e de minas
De ouro, que lhe farás tão facilmente?
Que famas lhe prometerás? Que histórias?
Que triunfos? Que palmas? Que vitórias?

Assim, ao mesmo temo que glorificou os feitos heroicos portugueses, o poeta criticou a sede desmedida de poder. Na verdade, as palavras do Velho parecem proféticos sinais do que ocorreria com Portugal em pouco tempo. A derrota de D Sebastião e seus nobres na batalha do Alcácer deixaria o país sem rei e isso faria com que Portugal perdesse sua soberania para a Coroa espanhola.

Ligações com Os Lusíadas

A obra provavelmente concluída em 1156 tem sido base para muitos textos da literatura depois de Luís de Camões, claro, além de servir de matéria à produção diversa de outras manifestações artísticas: das artes plásticas ao cinema, do teatro à poesia e o romance. Sem buscar se deter na leva de materiais, abaixo destacamos três textos (e suas sinopses) produzidos por nomes da envergadura do poeta português e que tomam por base Os Lusíadas.

1. Mensagem, de Fernando Pessoa

O único título publicado em vida é composto por 44 poemas e veio a lume em 1934 pela Parceria António Maria Pereira; no mesmo ano a obra foi ganhadora do Prêmio Antero de Quental, promovido pelo Secretariado Nacional de Informação. Fortemente vinculado ao Regime Ditatorial de Salazar, Fernando Pessoa recusou a honraria frustrando o interesse do regime de trazê-lo como moleta de apoio ao poder salazarista. O livro volta ao tema do passado glorioso português e busca compreender um sentido, tal como o discurso do Velho de Restelo, sobre os descobrimentos do antigo império. Apesar de ter passado para a posteridade como um discurso de exaltação à Pátria, essa compreensão carece de uma pequena revisão; o que pode ser exaltação pode ser também uma crítica à ruína vivida pelo país desde o período dos grandes feitos.

2. As naus, de António Lobo Antunes

Publicado em 1988, este é o sétimo romance do escritor português. Segundo o Dicionário da obra de António Lobo Antunes trata-se de um imaginoso encontro de tempos e de espaços. Uma quantidade de nomes importantes da cultura ibérica veem-se retornado a um Lisboa distante da que conheceram; entre o grupo está Luís de Camões, apresentado pelo epígono de Homem de Nome Luís. Cada uma das personalidades conta das suas vidas por terras africanas; é sabido que Camões iniciou sua carreira como poeta lírico e se envolveu em amores com mulheres da corte, enquanto levava uma vida boemia e turbulenta, o que, terá levado a autoexílio na África, alistado como militar, onde perdeu um olho em batalha. No retorno a Portugal foi preso e depois de ter a pena comutada foi para o Oriente, onde escreveu Os Lusíadas, obra publicada no retorno ao país. Ao recuperar vultos históricos como Camões, António Lobo Antunes "inverte o assaz mitificado e glorioso sentido dos descobrimentos portugueses, reescrevendo assim Os Lusíadas em modo paródico."

3. Que farei com este livro?, de José Saramago

Trata-se de uma peça de teatro em que se apresenta Luís de Camões regressado das Índias e tendo que negociar com a obtusa Inquisição e a medíocre corte de Lisboa a permissão para publicar Os Lusíadas. A peça foi escrita em 1980 para marcar as celebrações do quarto centenário do poeta português e foi representada pela primeira vez pelo Grupo de Campolide / Companhia de Teatro da Almada.

Ligações a esta post:
>>> Camões, um gênio do lirismo amoroso
>>> Camões, uma nova visão sobre o amor


* As ideias e expressões que compõem a primeira parte deste texto são exclusivamente de ABAURRE, Maria Luiza; PONTARRA, Marcela Nogueira; FADEL, Tatiana. Português: língua e literatura. São Paulo: Moderna, 2000.

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