Seamus Heaney

Por Pedro Fernandes


Seamus Heaney não é uma figura de um todo desconhecida; há, evidente, razão para isso: depois de ganhar o Prêmio Nobel de Literatura em 1995, a obra do poeta já de um todo reconhecida pela crítica especializada, recebeu maior atenção ainda. E terá produzido, uma monumental obra, diga-se, configurando-se num dos maiores poetas do século XX. Nascido na Irlanda do Norte, criado no Condado de Derry e passado boa parte da vida em Dublin, Heaney deixou mais de vinte títulos de poesia e crítica literária, gênero que também praticou à larga, além das diversas antologias amplamente utilizadas ao redor do mundo e da tradução de vários títulos. À atividade crítica Heaney dedicou-se desde cedo e aperfeiçoou-se quando de sua estadia como professor em Harvard (entre 1985 e 2006) e na mesma profissão, mas como professor de poesia, de quando trabalhou entre os anos de 1989 e 1994 na Universidade de Oxford.

Mas sua obra não foi quista apenas entre os da crítica especializada. Heaney também foi fenômeno literário em alguns países – na Irlanda, por exemplo, sua obra é reconhecidamente de grande popularidade, elemento que, para o crítico Blake Morrison, é “coisa rara, um poeta ser altamente avaliado por críticos e acadêmicos e ainda ser bem quisto pelo leitor comum”, julgamento, evidente, pautado na constatação corriqueira de que para ser bom autor tem de ser inacessível, principalmente do ponto de vista da construção linguística, o grande trunfo de todo escritor que se aventura pelas sendas da palavra. Parte dessa popularidade de Heaney vem da preferência do poeta pelos assuntos comuns, o encantamento pelos lugares comuns da cidade, os acontecimentos comuns da história e uma linguagem totalmente despojada do “academicismo poético”.

A New York review of books o descreve como “o poeta que mostrou o melhor da arte ao se preocupar em construir uma visão coerente da Irlanda do passado e do presente”; algo que se justapõe à justificativa da Academia Sueca quando da sua escolha para o Prêmio Nobel – “obras de rara beleza lírica e profundidade ética que exaltam os milagres do cotidiano e do passado vivo”. Quando se fala em beleza lírica, leia-se a conhecida beleza sonora de poemas propositalmente bem elaborados, um escape, por vezes, da liberdade do verso e da banalidade dos temas ditos pós-modernos; pode-se dizer mesmo que Heaney foi um poeta à moda antiga, por decidir-se pela tradição, mas um poeta de fronteira. Parte das suas influências e também do seu método de trabalho são heranças da sua vida no interior da Irlanda e do convívio com o tradicionalismo religioso de sua família.



O maior interesse pela linguagem e pela literatura vem quando estudante de inglês na Universidade de Qeen, do contato com nomes de autores locais como Ted Hughes, Patrick Kavanagh e Robert Frost – influências admitidas por ele próprio ao se autodescrever certa vez para a New York review of books. No mesmo texto, Heaney diz que apreendeu com o seu lugar de infância todas as experiências que mais tarde seria seu ponto de confronto com o mundo moderno, constituindo-se, por essa natureza, campos de tensão na sua obra. O passado já é motivo, por exemplo, para os primeiros poemas ainda na década de 1960. De acordo com Morrison, um “espírito geral de reverência ao passado ajudou a Heaney resolver alguns constrangimentos ao se decidir pela carreira de escritor; como tal ela estaria servindo à sua comunidade, preservando pela literatura, seus costumes e culturas, mas, simultaneamente adquirindo acesso à grande comunidade das letras”. Processo semelhante ao que se deu com outros importantes nomes da literatura universal e, para citar um exemplo mais próximo dos leitores de língua portuguesa, algo que fez o moçambicano Mia Couto.

Obras indexadas à coletânea Death of a naturalist (1966) e Door into the dark (1969), se evocam certos ares de uma vida rural e os poemas se constituem pela construção mais formal, como se aqui fosse demonstrado os primeiros traços de um estudante de poesia não estão restritos a isso; saltam as descrições do comezinho rural, dos trabalhadores e suas funções, a contemplação da natureza enquanto fenômeno filtrado pelo olhar simultaneamente infante e adulto do eu-poético. A primeira obra de Heaney, entretanto, e bem lembra o Newsweek, é a que faz você usar o sentidos: ver, ouvir, cheirar, saborear; sua poesia é do dotada de um provincianismo, mas o poeta consegue transformar o menor ou mesmo o mais medíocre num sentimento coletivo a que se liga todo espírito humano de qualquer parte do mundo.  

O trabalho de Heaney também foi lugar para se refletir sobre a situação política de seu país; os versos se abriram para abrigar em si as frequentes e violentas lutas que assolaram a Irlanda durante o fim da juventude e início da idade adulta do poeta. Aqui, novamente, sua poesia se constitui pela capacidade de abrigar na forma questões locais, mas com dimensão universal, abrangendo as diversas complexidades do homem em conflito com o próprio homem. Esses lugares temáticos aparecem em obras como Wintering Out (1973) e North (1975). Esse perfil temático de sua obra é o que mais recebeu críticas negativas, reduzindo tais preocupações em termos de um panfletismo ou uma apologia à revolução. Para Morrison, tais reduções são simplistas; Heaney nunca se contentou apenas a tratar por tratar situações políticas, ou colocá-las numa dimensão simplista, ou ainda de fazer de sua obra um megafone sobre os problemas de seu país. Na verdade, o que quer o poeta, diz Morrison, é encontrar uma forma linguística única, um lugar na extensa galeria dos que já um dia disseram sobre tais situações, uma tentativa de descoberta sobre a linguagem e consequentemente sobre um quadro histórico capaz de dizer do mal-estar atual do homem moderno, embora, não tenha nunca fugido da ideia de que o papel do escritor e o direito do poeta é o de intervir ou questionar até que ponto a obra deve estar ao alcance de um compromisso com a história.



A primeira incursão de Heaney no mundo da tradução começou com o poema do irlandês Buile Suibhne; o texto, em linhas gerais, diz respeito a um antigo rei que, amaldiçoado pela igreja, transforma-se em homem-pássaro louco e forçado a vagar pelos campos ásperos e inóspitos de seu reino. Essa tradução foi publicada em 1984 como Sweeney Astray: a version from the Irish. Essa obra é aqui recuperada porque, para o New York Times Book Review este poema – dotado de uma dicção equilibrada sobre uma mente tragicamente desequilibrada – será o mote imaginativo para a obra Station Island, editada no mesmo ano da tradução. Aqui, uma série de poemas intitulada “Sweeney Redivivus” se constrói pela voz da personagem do texto de Suibhne. Essa série se constitui num dos grandes temas do livro e faz conexões entre as escolhas pessoais, os dramas e as perdas, numa colocação também de cunho universal; preocupações temáticas, aliás, que serão estendidas no livro de 1987, The Haw Lantern, obra na qual, Heaney assume traços de seu estilo linguístico com muita propriedade.

Embora não seja este trabalho, o de 1987, que o coloque no centro da crítica especializada. Somente com a publicação da antologia Selected Poemas, 1966-1987, editada em 1990, que uma nova direção, pode-se dizer assim, assume-se na sua literatura e é por ela que será reconhecido. Direção que se confirma no livro publicado logo em seguida, Seeing Things, título recebido pela crítica como o melhor e mais hábil da escrita em língua inglesa contemporânea. Essa boa recepção, logo se vê, será um dos elementos desencadeadores para que sua obra seja referida ao Prêmio Nobel.

E não foi um escritor que “se perdeu” depois da atribuição do título. Seis anos depois, Heaney publica Electric Light – livro que incorpora uma série de referências a Homero e Virgílio, mas com forte veio memorialístico, levando o crítico John Taylor afirmar que a obra de Heaney é uma explícita tentativa de alcançar a maturidade pela reexperimentação da infância e da idade adulta. Depois do livro de 2001, vieram District and circle (2006), obra que ganhou o Prêmio T. S. Eliot de Poesia, um dos prêmios de maior prestígio na Inglaterra, e Human chain (2010), seu último título do gênero.

Da obra ensaística do escritor, destaque para títulos como The redress of poetry (1995), livro em que Heaney pensa sobre o papel da poesia no mundo, aqui vista não apenas como algo que intervém, no sentido de remediar ou corrigir seus desequilíbrios, mas também como algo de celebração da existência. Neste livro, reúne-se uma seleção de conferências de quando o poeta foi professor em Oxford. Outro título é Finders Keepers: selected prose 1971-2001 (2002), obra que recebeu o Prêmio Truman Capote de crítica literária, outro designativo tido como o maior no idioma de língua inglesa. No jornal inglês Sunday Times o livro foi lido como “não apenas mais um livro de crítica literária, mas um registro da luta de trinta anos de Seamus Heaney com o demônio da dúvida”. As questões motivadoras dos textos são básicas: qual é a boa poesia? Como é que a poesia pode contribuir para a sociedade? Vale a pena toda dedicação do poeta à poesia?

Em língua portuguesa, Heaney é mais lido em Portugal; ao menos há mais traduções de sua obra em terra de Camões que por aqui. Trabalho para Vasco Graça Moura que traduziu uma de suas antologias, publicada em 1998 pela Campo das Letras e Rui de Carvalho Homem que traduziu dois títulos, Da terra a luz: poemas 1966-1987 (Editora Relógio D’Água, 1997) e Luz eléctrica (Quase Editorial, 2003). No Brasil, há apenas uma edição, Poemas, com 150 poemas traduzidos por José Antonio Arantes e publicados pela Companhia das Letras, em 1998.

Somando tudo, todos hão de convir que a popularidade da obra de Heaney tem seu extenso grau de importância. A sua crença no poder da arte e da poesia frente a um mundo em constante avanço tecnológico ou a permanente crise do homem enquanto instituição frente a essa órbita, é uma fresta pela qual é possível enxergar um vulto de esperança num futuro cada vez mais incerto. Questionado sobre o valor da poesia em tempos como estes, Heaney respondeu que é, precisamente, nesses momentos que as pessoas precisam perceber que necessitam muito mais de vida (e poesia é isso) do que de economia. O papel da poesia, crê o poeta irlandês, é o de nos fortalecer por dentro a título de suportar o peso da existência; e isso, ou fazemos ou estamos condenados ao precipício. 

A seguir, um catálogo com alguns poemas de Heaney a partir da tradução publicada no Brasil pela Companhia das Letras.




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