Como era cinza o meu vale. “A estrada”, de Cormac McCarthy

 Por Alfredo Monte




A obra de Cormac McCarthy, se é que se pode julgá-la por apenas três títulos lidos (Meridiano de sangueTodos os belos cavalosOnde os velhos não têm vez), demonstra nítida tendência ao apocalíptico, com suas histórias ambientadas numa espécie de limiar do universo, mais próximas do caos e da barbárie primordial do que de pálidos esforços civilizatórios. Como bom descendente de William Faulkner, porém, ainda assim nos deparamos com toda uma escala de valores morais permeando esse território de desolação.

A estrada (tradução de Adriana Lisboa para The Road), que ganhou o Pulitzer como a melhor ficção de 2006 nos Estados Unidos, se passa num futuro em que a civilização como a conhecemos acabou: um homem e seu filho vagam em direção a um incerto Sul, mais quente, numa waste land invernal em que tudo virou ruínas, os sobreviventes que se encontra são perigosos, até canibais (uma mulher dá à luz e o cadáver do seu bebê é encontrado pela dupla de viajantes assado num espeto), os animais morreram em sua quase totalidade, o silêncio e a escuridão são aterradores, e o tom é cinza; aliás, as cinzas se espalham e cobrem o mundo, até o mar parece ter virado uma espessura de cinzas (e de qualquer forma evoca mais o desespero do que a sentimento de amplidão que todos conhecem):

“Vasculhavam as ruínas carbonizadas de casas em que não teriam entrado antes. Um cadáver flutuando na água preta de um porão entre lixo e canos enferrujados. Estava numa sala de estar parcialmente queimada e aberta para o céu. As tábuas empenadas por causa da água inclinadas sobre o quintal. Livros ensopados numa estante. Apanhou um e abriu-o e colocou-o de volta. Tudo úmido. Apodrecendo. Numa gaveta encontrou uma vela. Não havia como acendê-la. Colocou-a no bolso. Caminhou para luz cinzenta lá fora, ficou parado de pé e viu por um breve momento a verdade absoluta do mundo. As voltas frias e incansáveis da terra morta e abandonada. Escuridão implacável. O vácuo preto e esmagador do universo. E em algum lugar dois animais caçados tremendo como marmotas em seu abrigo. Tempo usurpado e mundo usurpado e olhos usurpados com os quais lamentá-lo.”

Mais adiante:

“O transbordar sedoso das cinzas sobre a calçada. Ficou parado apoiando-se no parapeito arenoso de concreto. Talvez na destruição do mundo fosse finalmente possível ver como ele fora feito. Oceanos, montanhas. O grave antiespetáculo das coisas deixando de existir. A desolação extensa, hidrópica e secularmente fria. O silêncio.”

O protagonista mantém uma bala no revólver que carrega para, em último caso, dar cabo do filho (a própria esposa optou pela morte, e o diálogo que a antecede seu “desaparecimento”, rememorado pelo marido, é um dos grandes momentos de A estrada). Não dá para deixar de evocar a dupla Abraão-Isaac (ressonâncias bíblicas não faltam, há até uma passagem extraordinária num irônico “éden” onde eles descobrem maçãs comestíveis), inclusive ao resgatar o nomadismo e errância que norteia os descaminhos dos heróis do Velho Testamento.


Já citei em outros artigos o que diz um personagem do maravilhoso Crimes e pecados, de Woody Allen: “o universo é basicamente inóspito e o povoamos com nossos afetos”. Em A estrada lemos:
“Ele não tinha como construir para o prazer da criança o mundo que perdera sem construir também a perda e achava que talvez o menino soubesse disso melhor do que ele… não podia acender no coração da criança o que eram cinzas no seu próprio.”

O que poderia ser o encontro do que restou do faroeste na visão mccarthyana com Samuel Beckett (em cujo Molloy encontramos uma dupla pai-filho também, mas estava pensando mesmo era no pós-apocalíptico Fim de jogo) reverte seu potencial niilismo, quando constatamos que o pai ensina ao filho códigos morais do antigo mundo. Isso vai preparando o final que, contra todas as expectativas, é até esperançoso e positivo. Na verdade, é um final para o menino, não para o seu pai. 

Ao longo de toda as suas peripécias, este contrariava todos os valores que queria ver sobrevivendo naquele: não se solidariza nem socializa com ninguém, mata, pilha, é indiferente aos destinos de um outro menininho e de um cachorro fortuito, e de todas as pessoas desamparadas que encontram pela estrada. Todos os apelos e gestos civilizatórios e, em última instância, humanos, são do filho, que já nasceu no após, no mundo cinzento. Eram realmente cinzas no coração do pai, mas algo se acendeu no coração do filho. E A estrada envereda pelo mesmo caminho de resgate, ainda que indizivelmente melancólico, do humano (embora o narrador afirme que não se pode resgatar nem endireitar), das melhores parábolas de José Saramago (como o esplêndido Ensaio sobre a cegueira ou os momentos mais belos de A caverna). Tanto que, sem revelar os acontecimentos finais, sinto-me obrigado a transcrever as emocionantes últimas palavras do romance:

“Antes havia trutas nos riachos das montanhas. Você podia vê-las paradas na correnteza cor de âmbar…Em suas costas havia padrões sinuosos que eram mapas do mundo em seu princípio. Mapas e labirintos. De algo que não podia ser resgatado. Não podia ser endireitado. Nos vales profundos e estreitos em que eles viviam todas as coisas eram mais antigas do que o homem e num murmúrio contínuo falavam de mistério.”

* Publicado originalmente em A tribuna de Santos, em 16 de fevereiro de 2008 e revisto para esta coluna.
 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Seis poemas-canções de Zeca Afonso

Boletim Letras 360º #581

Clarice Lispector, entrevistas

Confissões de uma máscara, de Yukio Mishima

O fim, de Karl Ove Knausgård (1)

Jon Fosse