Todo naufrágio é também lugar de chegada, de Marco Severo

Por Pedro Fernandes



Estamos há muito distantes das primeiras formulações sobre o conto enquanto forma literária. Edgar Allan Poe, nas resenhas críticas para a obra de Nathaniel Hawthorne, seu contemporâneo, apresentou a teoria da unidade de efeito juntamente com a ideia de que o conto poderia ser a forma apropriada para a expressão máxima dos talentos de um artista. Em parte, esta afirmação está presa ao contexto no qual se apresenta: o de desvalorização do conto pelos escritores que viam no romance a forma melhor acabada da narrativa – claro, estamos no auge do romance. Embora a história das formas literárias reivindique o lugar do conto muito anterior ao romanesco, este, por sua vez construiu seu grande reino cujas bases só agora, no princípio do auge de uma sorte de parafernálias de entretenimento que reivindicam a brevidade, tem sua legitimidade colocada à prova. 

Mas, o conto, assim como a crônica, apesar de praticado por todos os grandes escritores ainda se apresenta, para muitos, como a forma inferior no reino da literatura. Prova disso, certo escarcéu de opiniões, apressadas, logo adianto, pela escolha de Alice Munro, em 2013, para o Prêmio Nobel de Literatura. A canadense foi a primeira escritora que só praticou a forma conto ao longo de seu exercício escritural. E, por falar em Alice Munro, é que logo lembro que ela rompe com algumas das lições ditadas por Poe no passado e retomada reiteradas vezes pelos estudiosos que o sucederam: a brevidade. Um texto encavalado entre o romance, sempre de natureza mais complexa e interessado em dar conta da totalidade do mundo, para recuperar o termo citado por Lukács na sua apreciação acerca do nascimento da forma romance e sua relação com a epopeia clássica, e a novela, forma mais breve, menos complexa e dirigida para ser uma cópia – no sentido de repetição – no mundo do narrado do mundo do vivido. 

O leitor sempre encontrará na obra de Alice Munro narrativas longas capazes de levantar no leitor a revisão sobre o que sempre, dentre as diversas polêmicas sobre o conto, se convencionou como a brevidade; substituindo esta, ou talvez elastecendo-a, pela ideia, e agora sim mais coerente porque a brevidade ou leitura de uma sentada tal como apontava Poe não se qualifica pela quantidade de páginas, do que apontamos como unidade de efeito. Isto é, por mais longo que seja o conto de Munro seus narradores estão sempre presos a uma tela de modo que mesmo a diversidade de situações evocadas na narrativa são todas para um mesmo núcleo em comum. A metáfora da fotografia, proposta por Julio Cortázar – quem seduzido pela língua de Poe, viu-se obrigado a pensar sobre uma forma literária que também muito praticou – é a mais acertada para essa compreensão. Isto é, a narrativa do conto está limitada por uma fronteira – aquilo que fora do enquadramento da máquina fotográfica não deve interferir na sua composição porque será uma informação pouco relevante para o que é de interesse do observador. 

Mas, toda essa longa consideração é somente para dizer que o escritor que consegue manter-se atento apenas a esse foco – isto é, desprezando todo o arredor possível de interferência na narrativa e, logo, interessado em comprimir o que vê, tal como a imagem faz com o instante que revela, estará à vontade para o manejo do conto. Ou seja, enganava-se os romancistas do tempo de Poe e enganam-se os de hoje que a tarefa de escrever conto é a das mais fáceis e simples. Não é. Basta qualquer deslize e um contista pode cair na guilhotina. O que não é o caso de Marco Severo com o seu Todo naufrágio é também um lugar de chegada. Apesar do título de romance e dos dois livros que o leitor encontrará aí – sim, cada parte dessa obra com só mais algum texto daria um só livro, para lembrar do decálogo do perfeito contista de Quiroga ou de uma fala de Karl Ove Knasugård em Uma temporada no escuro – e alguns deslizes, o leitor estará ante algumas situações cuja unidade de efeito aparece muito bem construída. Por coincidência, nos contos de menor extensão. 

“Na casa do cordeiro, o lobo anfitrião” e “ Plantação abundante em terreno frágil”, os dois estão na primeira parte do livro, “O declínio do Homo erectus”, para citar os únicos deslizes do livro, o leitor se encontrará diante de um esquema que, aprimorado poderia se tornar uma novela de grande fôlego – sobretudo no primeiro que lida com uma diversidade de situações, de temporalidades, de núcleos narrativos que enfraquecem de um todo a unidade de efeito esperada de um conto. Para não falar na construção da linguagem que fere gravemente os protocolos de verossimilhança que devia se instalar entre a voz que conta a história e o narratário. 

Basta dizer que, refiro-me ao primeiro título citado acima, estamos ante um motorista que vaga pelo mundo oferecendo carona para criaturas à beira das estradas e fazendo justiça com as próprias mãos tão logo conclui que está diante de um ser que em nada contribui para o progresso humano. A ideia, vê-se, é brilhante, tem uma força incrível para um conto, mas a maneira como é construída – sobretudo a escolha do ponto de vista desencontrado da linguagem – colocam a ideia em cheque. “Minha primeira providência foi comprar pra Izildinha um perfume que prestasse. Não que entenda porcaria nenhuma do assunto, mas eu paguei por ele quase o valor de uma vaca, devia prestar. A verdade é que eu nunca soube, porque em pouco tempo eu e Izildinha estávamos gastando nosso tempo com coisas mais interessantes. E não pense você que eu estou me referindo aqui a passar o dia pendurado em cima dela. Izildinha era o meu amor. Eu andava pegando na mão, abrindo a porta dos lugares onde a gente entrava, afastando a cadeira da mesa. Um gentleman da melhor estirpe. E todo dela, ninguém mais me interessava”. No que esta linguagem e esses gestos se ajustam a um sujeito bruto, quase sem instrução porque abandonou a escola ainda no início da adolescência? 

Pois bem, nesta passagem, o narrador recorda de como se envolveu com a cuidadora / acompanhante da avó depois de relatar a perda dos pais – o pai descobre a mãe com o melhor amigo na cama, mata os dois e depois morre num acidente o que faz a situação ficar entre a dúvida se foi tudo intencional ou não –, a morte vagarosa do avô com doses de veneno simplesmente porque descobre o velho masturbando-se para um vídeo pornô no computador enquanto a avó não desconfiava de nada e este logo depois se desinteressa de anexar o nome do neto ao testamento, a chegada de Izildinha na sua casa e os primeiros namoros, a morte da avó muitos anos depois, a queda na sarjeta do casal expulso do paraíso já que a fazenda e todos os bens vão para as mãos de ONGs, a vida na cidade, o prêmio na loteria tirado por Izildinha, a transformação dessa personagem em madame, a gravidez, o emprego do narrador-personagem numa família de ricaços onde se envolve sexualmente com todos da casa – das empregadas à filha dos patrões, o incentivo ao aborto de uma, a morte e a desova do corpo de outra – a nova expulsão do paraíso, a descoberta de tudo por Izildinha, a morte trágica dela e do filho num suicídio, o viravolta da personagem que não é descoberta por nenhuma das circunstâncias que provocou, até o reencontrarmos ela no vago trabalho sobre o qual falamos no início de tudo. É muito para o que se pede ser tão pouco.

Marco Severo imprime uma escrita amarga, com muito eco da violência urbana tratada por narrativas como a de Rubem Fonseca. A primeira parte do livro expõe perfeitamente isso. Está interessado em transcrever a violência contemporânea, desfazendo-se sobre a ideia de que nunca o homem passa pela convivência em harmonia qual preconiza algumas imagens sobre nossa condição em relação com o tempo passado. E constata algo ainda mais forte: o homem do nosso tempo é cruel para com os da sua espécie porque simplesmente quer ser cruel. Isso é um grande diferencial que não nos faz melhor que os nossos antepassados. Lá, havia toda uma conjuntura favorável à barbárie, agora, a barbárie apesar de vista com maus olhos se mantém travestida nos gestos mais sutis e ingênuos, como se mostra, para citar um exemplo, no espantoso caso da mãe que tragada pela repetição contínua da amiga sobre os valores do filho provoca um acidente a fim de se vingar de nada, apenas para dar vazão ao sentimento macabro de infelicidade do outro. 

Além disso, há um fator, muito bem observado e presente em grande parte das narrativas de Severo, que carcome todas as existências dessas vidas em naufrágio: o capital. As relações aí estão permeadas de interesses que passam pelo dinheiro fácil e, depois disso, uma gana de estarem bem socialmente, tal como se exibe nos sorrisos fakes das redes sociais. Uma clara e lúcida observação sobre a derrocada de determinados valores que num passado não muito distante nos definiam melhor como criaturas humanas e que agora nos colocam na mesma condição de predadores – numa selva de concreto, ansiando atenções, mendigando espaços. As criaturas de Severo agem pela força da impulsão, como animais, que depois de se verem roubadas grande parte das possibilidades de estarem ao sol ou porque nem aí conseguiram chegar, partem para a última condição, a do selvagem. 

Os contos de “O declínio do Homo erectus” parecem saído das páginas policiais; traduzem um mundo gris e sem perspectiva, são versões de uma mesma versão: o cerzido do mito do bom selvagem desfeito e um retorno à condição de que o homem é, por natureza, mau. Se a civilização converteu-se em forma para o ideal burguês, ideal este que levou determinadas culturas sobreporem-se a outras e tornou-se arma para dizimação – isto é, um triunfo da violência sem que fosse visto enquanto tal – agora, esse lado obscuro exposto e não visto se apresenta, com todas as condições submetidas ao capital – como o que há de mais danoso ao homem e sua coletividade. Este livro nasce da tensão entre o doméstico e o selvagem. O tempo todo estamos diante de recordações que fazem estourar, das células da memória, o mal que está em nós e não apenas dorme mas se aperfeiçoa desde o alvorecer da humanidade.



Mas, antes de acusar o escritor de uma mirada pessimista – o que seria uma grave injustiça, afinal, parece que atravessamos a natureza crepuscular da civilização – é preciso avançar à segunda parte do livro, ou o outro livro de Todo naufrágio é também um lugar de chegada, para encontrar, inclusive um sentido para este título. A segunda parte chama-se a “A ascensão da fênix roubada”. Ainda que as vozes que aí habitam não deixem de estar marcadas pelas grandes perdas ou o estiolamento das relações, sobra, no final de cada amargor um fio tênue de esperança, como se, enfim, o homem pudesse encontrar nas coisas mais simples da existência, alguma possibilidade para o recontro de si, a possibilidade justaposição das partes cindidas. Há a espera, a reconciliação, a renovação de sonhos, certo amor. Também é aqui que as narrativas ganham melhor sustança: o contista parece aproximar a lente de sua câmera para determinados recortes e faz com que mesmo as situações comezinhas – como a de uma provocação sedutora de toda uma vida entre uma mulher e homem – ganhe sentidos mais sofisticados – como o amor transcendente evidenciado numa narrativa cuja estrutura retoma o relato de uma carta redigida por uma portuguesa ao amor ausente. 

Enquanto os primeiros textos aproximam-se da ideia de Short Stories, no sentido proposto por Edgar Allan Poe, isto é, narrativas em que o contista ensaia a criação de personagens com alguma complexidade psicológica, nestes, perduram o conceito de tales ou narrativas relatadas oralmente sem interesse no aprofundamento das personagens e com um sentido que muito se aproxima da força do conto tradicional: uma situação que evoca uma certa moral. Assim, em “Perdendo o cabaço”, para retomar um exemplo citado anteriormente, a situação faz lembrar que a cautela é sempre melhor que pressa ou que quem se apressa come cru, para recorrer a um ditado comum entre nós; ou em “Carta para o ausente” a sugestão de na ausência o outro se torna a dimensão mais importante de nós; ou, só para citar um terceiro exemplo, em  “O delicado valor do fim” a moral recai sobre a necessidade de valorizar as pequenas coisas e mesmo as maiores perdas podem servir de impulso para a existência. Justifica-se assim o título “A ascensão da fênix roubada”. 

Em todas as narrativas aqui encontramos sujeitos marcados pela inflexão do destino mas que buscam resistir as hecatombes da existência, o que por fim, é uma conclusão palpável a esta antologia: se estamos sós no mundo enquanto seu criador dorme o sono dos justo nós vamos, à nossa medida, escapando, inventando e reinventando outras maneiras de ser e estar no mundo. Nesse âmbito das invenções e reinvenções, vale recorrer à epígrafe que Marco Severo utiliza para abrir Todo náufrago é também um lugar de chegada, texto de Elvira Vigna, “Somos nós que inventamos a ajuda mútua e, com ela, a linguagem”. A linguagem ainda é nosso ponto de encontro e proteção contra as intempéries de existir; nela é possível até que a maior das desgraças seja suavizada e tornada condição para refletir sobre nós, no que fomos, somos e poderemos nos tornar. Essa é maior das lições de toda obra literária e Marco Severo demonstra estar no caminho certo.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Boletim Letras 360º #579

Boletim Letras 360º #573

Seis poemas-canções de Zeca Afonso

A bíblia, Péter Nádas

Boletim Letras 360º #574

Confissões de uma máscara, de Yukio Mishima