Apontamentos sobre inspiração, drogas e literatura

Por Pilar R. Laguna



Alguns dirão que a literatura é uma droga. E logo existirão muitas vozes contrárias, talvez mais que a favor desta afirmativa. Para estes, me justifico: a literatura pode viciar, consegui-la pode ser cara ou barata, entretem e logo nos abre mundos reais e imaginários como uma vivacidade que é difícil encontrar algum outro correspondente, mesmo se este for o cinema, seu grande competidor.

Seja como for, a relação da literatura com a droga é muito mais que uma simples semelhança e está diretamente relacionada com a inspiração e a natureza de todas as ideias, porque abre de certo modo – e citando Aldous Huxley – as portas da percepção e nos dão acesso aos mistérios da mente, que não estão ao alcance de todas as pessoas.

A inspiração é um conceito escorregadio. Poderia se dizer que sua definição é, em contrapartida, seu oposto, isto é, não ter nada a dizer. Ou seja, quando vem a inspiração é uma espécie de consciência recém adquirida de que temos algo a dizer. Em ocasiões esse algo pode dar lugar a uma obra-prima e às vezes pode acabar nesse quadro horrível que pintaste e com todo orgulho penduraste na sala de estar. É uma coisa ambivalente talvez e não seja possível dar como certa e que está a serviço apenas do primeiro tipo de obra. Alguém pode estar inspirado e não criar nada. Alguém pode, repentinamente, inspirar-se no meio de uma conversa e contribuir com a criação de algo genial.

É difícil determinar a inspiração, mas se podemos concluir que se trata da passagem de um estado de passividade para a atividade, ainda que alguns como Picasso digam que é melhor que quando chegue nos alcance ativos. As definições de inspiração variaram no tempo, dependendo muito do imaginário da época, da concepção do ser humano e seu lugar no mundo. Nas sociedades mais antigas como a grega ou os povos nórdicos, se relacionava, geralmente, com a intervenção divina e assim será também para os cristãos em épocas mais avançadas. Com a aparição da psicologia e o estudo da mente esta chispa criativa passa a se situar no interior do ser humano e atualmente seguimos essa possibilidade depois de anos encantados por reconhecer nossas maravilhas e sem reconhecer praticamente nenhuma outra.

Ocorra dentro ou fora do ser humano, a grande companheira da inspiração em todas as artes, talvez porque mande a mente a passear, é a droga. As civilizações antigas utilizaram dela nos seus rituais para aproximar-se das divindades e na atualidade talvez ainda para aproximarmo-nos a algo ou distanciarmo-nos de tantas outras coisas. É o grande filão da inspiração na literatura. Do conhaque à maconha passando por todo tipo de compostos naturais ou sintéticos, alguns dos grandes escritores se deixaram levar pelos jardins da imaginação com gosto. Bem utilizadas, ajudam a abrir as portas da autocensura e, portanto, a criar obras mais puramente humanas – ou animalescas.

Por exemplo, para F. Scott Fitzgerald a vida era chata, sem sentido. Quando não estava bêbado tudo era muito lógico e via que o que escrevia quando estava sóbrio não era nada sentimental. O álcool era para ele, como para tantos outros, uma maneira de conectar-se com suas intimidades e com essa consciência coletiva para criar histórias que de alguma forma emocionam a mente humana. Também é uma estupenda forma de se passar pelo ridículo sem esforço e envergonhar o seu amigo Hemingway. Este não bebia para escrever. Escrever bêbado parecia-lhe uma aberração. Hemingway era um consumidor ocioso. Tinha o poder de beber grandes quantidades de álcool sem chegar a ficar bêbado, mas não fazia para se inspirar, fazia para sobreviver, assim como Tennessee Williams ou John Cheever, que eram extremamente tímidos quando bebiam e extremamente eloquentes quando vertiam suas histórias no papel.

Se atentarmos ao curso da vida de uma porcentagem ampla dos escritores, a sensibilidade não pode ser um presente; é sim um castigo. Ser sensível neste mundo é grave. É uma espécie de provação divina, da mesma natureza que a inspiração. E para conectar-se com as divindades, ou para lidar com esse peso da sensibilidade, ou mesmo porque eram espíritos frágeis incapazes de exercer o autocontrole, muitos escritores decidiram provar o doce mel da droga e, como consequência, grande parte da história da literatura – e da literatura mais recente – está impregnada desta relação que tem distintas naturezas e que representou de distintas maneiras.

Dos poetas do século XIX ao enigmático Pynchon passando pela Geração Beat, muitos são os escritores que se inspiraram com o uso da droga para criação de suas obras – muitas vezes fazendo dela um elemento narrativo a mais. Existe muitas obras que trazem histórias e situações ou simplesmente observações em torno das substâncias psicoativas. Por exemplo, sobre Edgar Allan Poe não se sabe com certeza se chegou ou não a consumir ópio, o que se sabe entretanto é que os narradores que utilizava em suas obras – especialmente em seus Tales – o faziam. Consumidores ou não, a droga foi muito popular entre os poetas. Charles Dickens e Oscar Wilde introduziram o ópio em suas obras. Arthur Rimbaud e Paul Verlaine tomavam um pouco de tudo e ambos escreveram sobre isso. O ensaio Os paraísos artificiais (1860) de Charles Baudelaire reflete tanto uma fascinação pelo haxixe e pelo ópio como se constitui numa advertência acerca dos efeitos que essas substâncias podem causar ao longo da vida. Num tom mais sério que O cachimbo de kif (1919) de Valle-Inclán, antologia de poemas que fala com humor sobre vários tipos de substâncias.

Pulando uma época – sobre a qual falaremos mais adiante – de fascinação pelo álcool e as drogas chamânicas, chegamos aos anos cinquenta, momento quando aparece uma geração de autores que falam de liberdade sexual e de consumo. Poderia se dizer que todos os representantes da Geração Beat consumiam drogas e de certa maneira estas os representavam como artistas. Diversas substâncias são elementos centrais em suas criações e condutoras da trama, ou algo decorativo mas contextual, como a pano de fundo. Um autêntico recurso literário em si mesmo. Nomes como Jack Kerouac e seu icônico Na estrada (1957) ou William Burroughs e seu atípico romance Almoço nu (1959), e também Elise Cowen, Diane di Prima, Denise Levertov, Allen Ginsberg, Neal Cassady ou Ken Kesey vivem no mundo literário às portas do verão do amor.

Um verão e uma geração de escritores que também têm seu próprio testemunho coletivo no livro de Tom Wolfe, O teste do ácido do refresco elétrico (1968) que retratou a psicodélica viagem que Kesey e seus seguidores fizeram à bordo do Further. Um pouco mais adiante no tempo, a psicodelia e da paranoia hippie são já patrimônios imateriais nos Estados Unidos. Alguns criadores literários, especialmente o misterioso Thomas Pynchon, se encarregam de traduzir em seus romances uma época vibrante em que a droga é a protagonista. E seguindo uma linha parecida, Robert Anton Wilson e Robert Shea com sua trilogia Illuminatus! (1975) repleta de drogas, psicodelia e paranoia em igual parte, parecem clamar um autêntico gênero literário próprio.

Mas a presença das substâncias psicoativas na literatura não foi apenas uma simples questão de inspiração narrativa. Alguns autores dedicaram extensas páginas a teorizar sobre as drogas: seus efeitos, sua natureza e pertinência na vida cotidiana e na sociedade de seu tempo. Os mais famosos ao ouvido de qualquer um será o nome do inglês Aldous Huxley e do seu livro que publicou em 1954, As portas da percepção, onde analisa os efeitos que tinham em seu corpo o consumo de quatrocentas miligramas de mescalina sob a tutela do psiquiatra Humphrey Osmond. Seguiu sua estrela, embora de um modo mais rigoroso, com uma análise quase científica, o poeta e pintor belga Henri Michaux, que experimentou a droga entre 1955 e 1960, e partir dessa experiência deu origem a várias obras, a primeira delas Miserável milagre (1956). Michaux experimentou muitas drogas – LSD, láudano, éter, psilocibina – mas a que ocupou maior parte de seus estudos foi a mescalina, uma droga que, concluiu, estava feita para violar o cérebro.

Antes deles, em 1947, o francês Antonin Artaud escrevia Os Tarahumaras para dizer ao mundo como o consumo de maconha com os Tarahumara enquanto viajava pelo México havia ajudado a ter acesso a uma forma de conhecimento ancestral. Um pouco mais tarde, e de novo a tempo para o verão do amor, Carlos Castaneda apresentava sua dissertação de mestrado em Antropologia intitulada The Teachings of Don Juan – a Yaqui of knowledge, lançada no Brasil como A erva do Diabo. Embora muito criticada e colocada em questão, na obra Castaneda havia estado alterado da consciência pelo consumo de psilocibina, peiote e tolache, durante cinco anos enquanto procurava os ensinamentos de Don Juan. O livro se converteu numa espécie de bíblia da cultura hippie desde sua publicação num agitado 1968. Quase ao mesmo tempo o estadunidense Timothy Leary publicará vários livros, entre eles The Psychedelic Experience (1964), nos quais recolhe as chaves das da presença da droga na cultura da época a partir de O livro tibetano dos mortos.

E na Espanha, desde o final dos anos oitenta o máximo expoente quanto aos estudos das drogas é o madrilenho Antonio Escohotado. Embora autor de várias obras centradas neste tema, Historia general de las drogas (1989) e Aprendiendo de las drogas: usos y abusos, prejuicios y desafios (1995) são talvez as mais relevantes atualmente. Tratam-se de rigorosas análises e pesquisas que oferecem uma perspectiva científica de numerosas substâncias.

Afastando-se um pouco dos usos recreativos, a relação droga-literatura teve um lado obscuro e problemático. Uma imensa quantidade de escritores sofreu os efeitos com usos de drogas e em alguns casos isso ficou também registrado em sua obra e noutros casos é um tema que se oculta com o receio de serem malvistos. Confissões de um comedor de ópio (1821), de Thomas de Quincey é um bom ponto de partida para falar sobre a dependência entre escritores. O autor inglês começa a consumir a substância em 1804 para combater o sofrimento com nevralgias e nunca conseguirá se livrar de um todo do consumo; uma luta interna e responsável por opiniões de ordem ambivalente – entre recordações “amargas e felizes” – como apresenta no citado livro. Para de Quincey o ópio dava à mente um esplendor constante e uniforme; ao mesmo tempo dizia que ninguém ri muito tempo se usa o ópio.

A poeta e antiescravagista inglesa Elizabeth Barrett Browning começou a consumir ópio aos catorze anos por prescrição médica e foi viciada durante toda sua vida em láudano e morfina. O também poeta Alphonse Daudet contraiu sífilis muito cedo e o tratamento para aliviar as dores passava pelo consumo dessas mesmas substâncias, uma triste experiência que retratou no seu romance La doulou, publicado em 1930. Neste mesmo ano, Jean Cocteau escreveu em Ópio. Diário de uma desintoxicação que “todo o que alguém faz na vida, e mesmo no amor, se faz a bordo de um trem que se dirige para a morte. Fumar ópio é abandonar o trem em curso; é ocupar-se noutra coisa que não é a vida nem a morte”. O poeta francês começou a fumar ópio depois da morte de seu jovem amante, o também escritor Raymond Radiguet. O diretor de O sangue de um poeta (1932) conviveu com um severo vício da droga dos intelectuais, do qual só conseguiu se livrar numa clínica de desintoxicação, registrando o processo no referido diário.

Uma quantidade assombrosa de escritores era alcoólatra: F. Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway, Charles Bukowski, John Berryman, Raymond Carver, Jean Rhys, Elizabeth Bishop ou Marguerite Duras. Stephen King preferiu não refletir diretamente em seus romances sobre o vício em cocaína porque passou entre 1978 e 1986; Robert Louis Stevenson escreveu sua obra-prima O estranho caso do Dr. Jekyll e Mr. Hyde (1886) em apenas seis dias com ajuda do pó que era parte de sua dieta diária. Hunter S. Thompson tinha uma curiosa rotina de trabalho que incluía o consumo de cocaína, uísque e maconha, charutos cubanos e pornografia, mas a maior mostra de sua excentricidade aparece em seu celebrado Medo e delírio em Las Vegas (1971), reflexo de um estilo de vida que terminava em 2005 quando atirou contra si mesmo na cabeça.

Jean-Paul Sartre consumia anfetaminas com regularidade e inclusive reconheceu que chegou a ver caranguejos que o seguiam durante a época de quando escreveu seu romance A náusea (1938). O estadunidense Philip L. Dick foi usuário dessa mesma droga durante a década de setenta e disse que em grande parte de sua produção literária está marcada por esta substância, especialmente o livro Um reflexo na escuridão (1977), onde quis representar o lado vil da droga. E um pouco mais adiante, os anos em que o britânico Irvine Welsh passou em alguma parte de Londres consumindo heroína lhe valeram, sem dúvida a inspiração necessária para escrever Trainspotting (1993), sua continuação Pornô (2002) e o desfecho Skagboys (2012). Um pouco como Jim Carroll em Diário de um adolescente (1978) retratando o vício em heroína que sofreu durante a década de sessenta.

A lista parece muito extensa e, naturalmente, está incompleta. A droga está relacionada às vezes com os gênios e quase sempre com os que se postam à margem da ordem. Sensibilidade, literatura, debilidade e droga compõem um marco quase lógico. A droga é literatura e a literatura é droga. Uma relação muito estreita, quase inseparável, que deixou e continua deixando uma quantidade significativa de escritos sobre drogas para que saibamos um pouco mais desses paraísos e infernos que alguém pode encontrar se sabe onde buscá-los.

Ligações a esta post:

* Este texto é uma tradução de "Apuntes sobre inspiración, drogas y literatura" publicado em JotDown / El País

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