J. P. Donleavy: Um safado em Dublin

Por José María Guelbenzu



James Patrick Donleavy é um escritor estadunidense nascido em Nova York, em 1926. Seu primeiro romance Um safado em Dublin (tradução de The ginger man) encontrou sérias dificuldades para publicação por causa de seu conteúdo suscetível de ser julgado por obscenidade. A editora Olympia Press – a mesma que um dia, muito anos antes, trouxe à luz outro romance igualmente tachado de obsceno, o Ulysses, de James Joyce – foi quem se atreveu a publicá-lo em 1955 e não apareceu nos Estados Unidos até 1958. Um safado em Dublin acabou por causar um grande impacto e hoje figura como um clássico do século XX na lista dos cem grandes romances deste período elaborada pela Modern Library.

O leitor que enfrenta hoje este livro pensará imediatamente em Charles Bukowski, um medíocre escritor que se tornou moda em nosso país há uns quantos anos por sua condição de alcoólatra e desleixada indiferença. A comparação é certamente interessante porque entre Bukwoski e Donleavy se mantém um abismo que deveria ensinar a muitos a diferença entre verborragia e literatura. Escrever a partir do marginal e pelo marginal é um exercício praticado por elementos que provêm da linha de corte autobiográfico escandaloso com ar de crua sinceridade marcada por sua vez por Henry Miller e que tem sua continuidade nos escritores da cena Beat. No caso de Bukowski, o gosto pelo sujo e pela cerveja se tornam em protagonistas de seus romances que, por azar, não passam de ser explosões verborrágicas de rancor social porque carecem do grau de elaboração literária de um William Burroughs.

A personagem central de Um safado em Dublin é Sebastian Dangerfield, um estadunidense de raiz irlandesa que regressa à Irlanda, onde vive com uma mão na frente e outra atrás. Filho de um pai bem-sucedido e estudante do muito famoso Trinity College, leva a vida de um indigente que apenas não parece como tal por classe e porque está casado com uma inglesa também pertencente a uma boa família. As censuras que passam por eles incluem o de que cada um acreditou que se casava com o outro contando com o dinheiro da família, mas não é bem assim. Têm também uma filha de alguns meses de idade que é ignorada exceto para servir de um objeto de raiva e que passa o dia indo de um lado para o outro com os amigos do casal igualmente indigentes e bêbados. O romance tem um componente autobiográfico.

Dangerfield se encontra, pois, na Irlanda e, apesar de sua condição marginal, sente e se rebela contra a pressão social da vida irlandesa impregnada do dogmatismo católico. Os encontros com sua companheira acabam indefectivelmente em brigas e os insultos e acusações que trocam entre si são violentos. Dangerfield é também um frequentador das casas de jogos e utiliza sua boa base familiar para dar golpes pela direita e pela esquerda. Carente de toda responsabilidade não está sujeito a regras e se enraiva por isso; seu comportamento, especialmente quando se cansa, é o de uma criança irrequieta. No correr do romance conhece outras mulheres, todas elas muito simples, confiáveis e até certo ponto enternecedoras, que o seduz de maneira diversa até que, finalmente, sentindo-se saturado em definitivo do ambiente de miséria dublinense, se propõe ir para Londres como meta de salvação. Seu companheiro de aventuras é um tal O’Keefe, outro estadunidense meio irlandês obcecado pelo sexo com que não tem nenhum êxito e é uma versão patética e a ainda mais perdedora do próprio Dangerfield. No fim, Sebastian Dangerfield chega a Londres, onde encontra um velho amigo (outro) de aventuras que dava por morto e O’Keefe acaba conseguindo que o deporte para os Estados Unidos, de onde escreve cartas desesperadas.

A literatura antissistema está mais propensa a dar em produtos como Bukowski, embora às vezes consiga consagrar-se num livro que adquire o caráter de mito, como é o caso de On the road, de Jack Kerouac. Um safado em Dublin é também um mito, mas, diferentemente do livro de Kerouac, mais simples e despretensioso em sua escrita, manifesta uma complexidade literária e uma elaboração expressiva que o inscreve entre os grandes livros que contribuíram para as transformações da escrita romanesca na segunda metade do século XX. De fato, quem verdadeiramente se encontra por trás do exercício estilístico de Donleavy é James Joyce, mas o romance de Donleavy é muito mais fácil de ler; está escrito de maneira linear e sua expressão é acolhedora e intimista. O que um leitor experiente logo descobrirá é o formidável trabalho estilístico que se esconde por baixo da aparência de agilidade e diversão que o romance oferece à primeira vista. À maneira irlandesa, essa qualidade que tem boa parte de sua grande literatura para revitalizar sistematicamente a língua inglesa desde Jonathan Swift, volta de novo a aparecer neste livro com todas as honras.



A maneira de se expressar de Donleavy se baseia, por um lado, num atraente jogo de aliterações e, sobretudo, da interação entre a primeira e a terceira pessoa na mesma voz narrativa, de maneira que as atitudes ou ações propriamente ditas são relatos em terceira e os pensamentos em primeira, mas o que o escritor faz é entrelaçá-los, formando uma só voz, o que estabelece um jogo de espelhos e perspectiva de uma força expressiva grandiosa. A trama narrativa é mínima; na realidade o que se narra é uma série de encontros divididos em cenas em sucessão e nada mais. Não há intriga à maneira clássica, nem revelações de pontos obscuros (inclusive as regressões da memória são nítidas) e logo se pode dizer que carece de trama. Repito: um tipo que se dá mal com todo o mundo e, em especial, consigo próprio, depois de vagar de um lado para outro e seduzir um par de ternas jovens, decide ir a Londres com a esperança de mudar a vida e sem nenhum interesse em saber por quais meios conseguirá isso. Toda a graça e fixação que romance cria no leitor e que consegue convertê-lo num seu cúmplice está no uso da linguagem, na expressividade do relato por si próprio.

O que verdadeiramente busca o indeciso de perdido Dangerfield, esse verdadeiro preguiçoso carente de vontade, perdido completamente em seu caminho e que agora realiza verdadeiros malabarismos de autoengano, é encontrar um lugar onde possa se esconder do mundo e de suas obrigações. É um menino malcriado que nunca se tornou homem, mas que tem o tamanho de um homem. Seu aspecto rude encerra um espírito de sedutor. Vive de mentir para os outros e para si. Sonha que em cada manhã possam aparecer em seu bolso as moedas necessárias para suprir as necessidades mais imediatas e necessita reduzir o mundo ao seu lugar pessoal para se sentir seguro. É frágil, mas sabe o que vale a fragilidade como mecanismo de sedução.

O contraste entre sua mulher Marion e as outras mulheres (como a encantadora senhorita Frost, a terna e doce Mary...) mostra que, enquanto elas se deixam enfeitiçar, desaparecem ou se deixam abandonar, ela, que também resiste a deixá-lo, está presente na vida de Dangerfield sempre relembrando que ele é um filho da puta. É a clássica diferença entre a companheira e as amantes: por isso Marion a abandona e as outras se deixam. Sebastian Dangerfield é um colossal egoísta, um sem escrúpulos, tomado pelas fantasias mundanas com as quais sublima sua triste errância, como quando abriga a assustada senhorita Frost: “Sebastian recostou-se na cadeira e olhou para Miss Frost nos olhos. Pêlos curtos crescendo nas laterais da cabeça. E ao redor do teu nariz a carne se volta para cima [vejam como nesta última frase já se misturam a terceira e a primeira pessoa como ponte para o uso seguinte da primeira]. Algo que antes não havia me dado conta. Acredito que só és uma pequena menina, senhorita Frost. Isso é o que és. Necessitas que te fodam, isso é tudo. Venha, deixa-me que te foda em meu pequeno bosque onde os corvos grasnam em todas as árvores. E pelas portas amplas de minha casa. Oh, elas são grossas, para mantê-los fora. Porque não queres nada com a gente, não confias em ninguém. Acho que os quero em bronzes, peso e aparência, com dobradiças de latão de boa qualidade.  Eu vejo, Dangerfield...” [volta a mesclar]**.

Há na linguagem de Dangerfield um lirismo que, paradoxalmente, bebe no rude, no descaramento, mas sua fala não deixa de ter ecos do estranho coloquialismo de um Pound ou a vibrante brutalidade de um Céline. Esse lirismo possui uma cadência literária que contém a chave de seu atraente poder de sedução. Do mesmo modo que Dangerfield é improvável como sedutor até o vermos seduzir, a prosa de Donleavy seduz quando somos colocados em contato com um lirismo extraído da sordidez de uma personagem repulsiva. Aí é onde se estabelece o abismo entre a simplismo de um Bukowski e a abundância expressiva de Donleavy. Inclusive nos momentos de estrita bebedeira de Dangerfield, a maneira como se registra essa condição não está em nenhuma informação sobre o que bebeu ou deixou de beber, mas no movimento da mente de uma pessoa ébria; a ebriedade se desprende do estilo porque só descreve o turbilhão mental da personagem. O capítulo 22, que relata uma grande bebedeira contada ao ritmo galopante dos acontecimentos em se misturam com grande habilidade momentos do passado que só podem aparecer em tal estado de livre fluxo de consciência, é um exemplo admirável do modo de narrar de Donleavy.

O livro contém cenas memoráveis, como, por exemplo, o baile da trindade dos idiotas, uma via crucis pelos pubs de Londres com Dangerfield disfarçado de canguru, Parnell tocando com uma lata vazia e colher imitando um tambor e McDoon com sua barba ruiva e seu cajado de pastor, os três escandalizando e berrando pelo meio das ruas entre um estabelecimento de bebidas e outro e tudo isso para celebrar seu reencontro com uma aparente fortuna na figura de seu velho amigo Cocklan. E não menos extraordinária é, em geral, a relação com a escandalosa senhorita Frost, uma verdadeira descoberta como personagem, que culmina mais tarde numa forma de se entender carnalmente rematada com estas palavras:

“– Lilly, porque você quer que eu faça assim?
– Oh, senhor Dangerfield, é muitíssimo menos pecado.
E
divertido
também.”

“Se não fosse porque na minha veia corre sangue azul, há muito que a teria vendido no hospital”, diz seu velho comparsa Tone Malarkey; e este ataque à dignidade irlandesa convertido em ácida crítica nacionalista nos lembra que a Irlanda tampouco sai bem parada neste carnaval de perdedores. Não em vão que a pressão clerical irlandesa conseguiu retirar de cartaz a versão teatral deste romance. Donleavy não deixa títere com cabeça porque sua personagem é também, como dizíamos, um antissemita. Enfim, nada melhor para concluir estas notas que um exemplo do estilo de descrição de Donleavy que pode dar uma ideia bastante próxima de qual seja a porta de entrada neste romance excepcional:

Às oito. As ruas estavam úmidas, charcos d’água sobre blocos de granito. Ao oeste as nuvens redemoinham em silêncio, absorvendo o cheiro terroso das chaminés fumegantes nesta fria noite de sábado. Pés de passaram movem sua alma por esta cidade irlandesa. As vozes ásperas dos meninos dos jornais definem as esquinas das ruas às costas. Aqui encima em White Friar Street posso ouvi-los rezando o rosário. E na janela do hospital se acendeu uma luz e uma enfermeira baixou a persiana. O morgue do hospital onde contemplavam com amor mortos desconhecidos e a beleza branca dos que morrem jovens. Velas tremeluziam nas lamparinas dos coches das funerárias, nos caixões. Sentiu uma mão no braço que o deteve, uma velha louca pedindo uma esmola e com os dizeres incontrolados em seu coração lhe respondeu com a educação que não tinha usado com sua mãe. E ela riu do cavalheiro inglês, dentes na bruma. Pagou-lhe uma taça num pub. Estava orgulhosa da companhia deste cavalheiro protestante, contando-lhe que seu velho havia derramado água fervendo no pé e desde então estava acamado, um ano inteiro. Ele lhe contou muitas mentiras e deixou o pub num mar de lágrimas quando se pôs a cantar Oh Danny Boy”.

* As traduções dos excertos são a partir das citações usadas pela autora no seu texto.
** Este texto é uma tradução de resenha editada na Revista de Libros.

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