João Cabral olha Joan Miró

Por Pedro Fernandes

João Cabral de Melo Neto e Joan Miró


Em Manual de pintura e caligrafia, um dos primeiros romances de José Saramago, encontramos um pintor que, tomado pelo progressivo desinteresse das pessoas pela pintura expressiva se dedica à pintura figurativa, exclusivamente de retratos, esta que, possivelmente pela popularização da fotografia também cai em desuso. A última opção de H. é pela escrita, construída esta a partir de sua leitura interpretativa, espécie de crônica de observação, ainda eivada do plano visual e imagético que caracteriza seu modo de ver. A circunstância se apropria de uma discussão bastante clara no universo interartes (literatura-pintura) – ou mesmo anterior a ele, que é a relação entre palavra e imagem.

Não é interesse nestas notas enveredar por uma leitura deste livro do escritor português; tampouco ensaiar-se num itinerário, amplo e diverso qual o destas relações. Alinhavemos as duas questões, entretanto, numa compreensão aparentemente simples e comum, mas não simplista, a que compreende a palavra enquanto significação do mundo, e esta, portanto, elemento que preenche uma condição imagética – se não isso, presentificadora do mundo, salto primordial à fundação dos sentidos – e a pintura a imagem prontificada pelo captado por nossas papilas sensitivas. Sobretudo, em literatura, em que o texto ficcional é um complexo aparelho semiótico, porque sugestionador de imagens, a relação interartes nada tem de gratuita, apesar de sua complexidade. De maneira que, qual H. do romance de José Saramago, dificilmente um escritor não deixe de ser tocado por tal relação, sobretudo, na era da imagem.

Um desses escritores foi João Cabral de Melo Neto. Sem deixar de comentar acerca do valor imagético de sua poesia, toda ela, rico e complexo quadro figurativo – sem a qualidade do verossimilhante buscado pela personagem saramaguiana, o poeta deixou também alguma teorética das artes plásticas textualizada em prosa. A distinção é proposital porque, quando dizemos que a poesia cabralina é uma tela, compreendemos que sua poética da visualidade é também uma parte de sua teoria da pintura. Sobre a influência das artes plásticas sobre a criação poética de João Cabral, ele próprio assim se refere numa entrevista a André Pestana reunida por Félix de Athayde em Fixas ideias de João Cabral de Melo Neto (1998): “Nenhum poeta, nenhum crítico, nenhum filósofo exerceu sobre mim a influência que teve Le Corbusier. Durante muitos anos, ele significou para mim lucidez, claridade, construtivismo. Em resumo: o predomínio da inteligência sobre o instinto”.

Nos Cadernos de Literatura Brasileira dedicados ao poeta e editados pelo Instituto Moreira Salles (1996), ele discorre sobre sua afeição pela teoria: “A teoria da literatura sempre me interessou mais do que a literatura propriamente dita [...] na juventude, eu frequentava um grupo de intelectuais no Recife, que se reunia no Café Lafayette, e tinha a ambição de ser crítico literário. Para poder continuar a frequentar o grupo, passei a escrever poesia. Mas tentei fazer poesia crítica: de autores, de realidades”. Na mesma ocasião diz que sua “poesia é um esforço de ‘presentificação’ e de ‘coisificação’ da memória”. Isto é, acepções que encontram eco nas afirmativas aqui apresentadas.

De maneira mais precisa, a evidente relação de João Cabral com as artes plásticas, principalmente com a pintura, que o poeta encontra diálogo com o seu fazer poético, foi com Joan Miró. Os dois se conheceram em 1948, na Catalunha e formaram uma estreita amizade; basta dizer que Miró tornou-se uma das raras figuras a quem o amigo brasileiro visitava, tanto em Barcelona quanto em Terragona, onde o pintor era proprietário de uma casa de campo. Na ocasião, Miró fora censurado por Franco: não podia expor sua obra, nem circular pela cidade. João Cabral, que se encontrava em Espanha como diplomata, teve acesso, assim, a obras que só muito tardiamente seriam de conhecimento público: isso porque nos anos de censura, Miró não deixou de pintar. A amizade resultou ainda num daqueles profícuos intercâmbios criativos: vários poemas do brasileiro bebem desse convívio – exemplo mais vivo, “Campo de Terragona”, de Paisagens com figuras – enquanto o catalão também produz trabalhos marcados pela força criativa do poeta.



Um desses trabalhos de maior fôlego, e que sublinha claramente este intercâmbio, é o estudo “Joan Miró” publicado em Barcelona em 1950; dois anos depois este texto ganhou edição no Brasil pelo Ministério da Educação. Em 2018, o ensaio é reeditado, agora seguindo sua primeira aparição, acompanhado das gravuras realizadas pelo artista catalão exclusivamente para a obra do poeta brasileiro – trabalho organizado por Valeria Lamego.

O texto de João Cabral está distante de ser um mero exercício de leitura sobre a arte de Miró. É um ensaio marcado pela evidência de um observador sensível, atento pesquisador e interessado numa teoria interpretativa sobre o Surrealismo. O ensaio é um estudo acerca da trajetória da obra de Miró – dos primeiros passos do artista, de 1914, à grande viragem uma década depois quando deixa de seguir determinados padrões da época, principalmente a inscrição realista herdada do academicismo. A tese do autor de Pedra do sono, obra aliás que flerta muito de perto com a estética surrealista, é que o surrealismo de Joan Miró é construído, estudado, e não uma ordem desordenada ao sabor dos lugares insondáveis da imaginação criativa do artista: “Ele aceitou”, diz o poeta sobre Miró, aquela proposição inicial do Surrealismo, mas transformou-a num outro sentido. Ele entendeu-a não como a introdução do subjetivo e do psicológico [...] o que ele aceitou foi levar até o campo mais profundo do psicológico a busca de renovação formal”.

Ao definir dessa maneira a obra de Miró, o poeta brasileiro finda por nos oferecer também uma visita ao seu imaginário poético, uma vez que, João Cabral – todos sabem – levou ao limite esse exercício de construção estudada da poesia. O espírito artesanal do poeta, sabemos, se opõe ao automatismo, porque opta pelo excesso de razão, de trabalho intelectual e por uma expressão pessoal.

A trajetória de João Cabral de Melo Neto sobre Joan Miró, acompanha, qual o narrador de Manual de pintura e caligrafia (exceto porque não é uma transição entre a pintura a escrita), a passagem do artista catalão da obra marcada por traços renascentistas, perfazendo um percurso sobre o espírito desta filosofia na Europa do século XIII ao século XVII e como esta revolucionou as artes dando à pintura a ideia de profundidade (“O Renascimento criou a pintura”, diz), à compreensão de como Miró se dedica a uma poética da exploração das tessituras de superfície, um trabalho, anota, “demorado e tranquilo”: “Em Miró, mais do que nenhum outro artista, vejo uma enorme valorização do fazer. Pode-se dizer que, enquanto noutros o fazer é um meio para se chegar a um quadro, para realizar a expressão de coisas anteriores e estranhas a esse mesmo realizar, o quadro, para Miró é um pretexto para o fazer. Miró não pinta quadro. Miró pinta”.

Noutra ocasião, o poeta-crítico sublinha como o espírito construtor e racional de Joan Miró não pode ser reduzido a leis, no sentido de unidades de verdade prontas e deterministas. Também compreende que não é interesse do pintor combater tais leis, tampouco construir leis contrárias, “uma nova perspectiva paralela à dos pintores renascentistas”. “O que Miró parece desejar é desfazer-se delas precisamente porque são leis. Livrar-se, lavar-se delas, coisa a meu ver absolutamente diversa da atitude de substituí-las ou usá-las pelo avesso”. Tal compreensão prima, portanto por uma autonomia tão autêntica das leis de funcionamento da obra, que sua execução é propriamente natural. “Nesse tipo de composição não há uma ordenação em função de um elemento dominante, mas uma série de dominantes, que se propõem simultaneamente, pedindo do espectador uma série de fixações sucessivas, em cada uma das quais lhe é dado um setor do quadro”.

De alguma maneira, o ensaio de João Cabral de Melo Neto desenvolve ainda uma compreensão sobre o fenômeno da desrealização da arte moderna e contemporânea. A ruptura com a ideia de retratação da realidade em sua complexidade de elementos que a constitui é a abertura para uma renovação que assinala de outra maneira a heterogeneidade do real e estabelece este não como um dado acabado mas em construção a partir da interpretação de quem o observa. Isso não atesta um apagamento definitivo da ideia de ordenação objetiva, mas que esta ordem prescinde de um estado de descontinuidade.

A publicação deste ensaio seguido do trabalho plástico do artista em referência não é apenas uma acertada ideia de reavivamento da memória de um tempo de efervescência criativa, de uma amizade que rendeu bons momentos à história da humanidade, como só os encontros em prol da arte são capazes de propiciar; esta publicação qual a de há mais seis décadas é uma prova do quão carentes estamos os criadores de exercícios de união desse nível e nos encoraja a nos reinventar (como pensamento, como criadores). É, por fim, uma porta de entrada para duas obras significativas de universos só aparentemente distintos. Uma maneira de ver a si e ao outro, como estes se imbricam, como os lugares de criação se interferem, como se engendram visões autênticas sobre o mundo – tudo tão raro e tão caro no tempo dos excessos e das mesmidades.

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