Mãe, de Hugo Gonçalves

Por Pedro Fernandes

Hugo Gonçalves. Foto: Manuel Manso.



Caso curioso o do romance, descrito algumas vezes como a forma mais instável da prosa. E isso é notável quando encontramos livros que assim se designam sendo apenas o romanesco enquanto possibilidade. Mãe, de Hugo Gonçalves, que por razões óbvias recebeu um título diferente do original no Brasil — em Portugal, saiu como Filho da mãe — é um desses casos. Trata-se do itinerário de um escritor às voltas por reconstituir a memória da mãe que morreu vitimada de um câncer quando ele ainda criança. A obsessão por essa ideia assume direções variadas e a de descrevê-la se demonstra nascer, primeiro como silêncio e fuga, e depois como fala e compreensão do acontecido, a história possível. Esses dois movimentos fundem-se e oferecem o conteúdo do livro, mas o conteúdo procurado, este se realiza — e daí porque falamos de um romance enquanto possibilidade — apenas como imaginação. Agora, não será isso mesmo um romance, o vivido perspectivado?
 
O livro de Hugo Gonçalves é também um enfretamento; a tentativa de, ao lançar luz sobre um assunto aprisionado à região dos interditos, refazer devidamente o luto, um movimento que, embora longamente encenado desde quando a jovem mãe deixa uma família desamparada pela sua ausência, nunca é realmente vivenciado, seja porque a figura ausente deixara seu lugar muito antes da morte — o agravamento da doença a afasta do convívio familiar para tratamentos na Inglaterra —, seja porque os que ficam vivem isolados, à sua maneira, a tarefa de maturação da morte, até que buscam outra vez recuperar a ordem lacunar com a reconstituição da família, um trato assumido pelas decisões tomadas pela figura paterna, o núcleo desse pequeno grupo.
 
Uma das atitudes do pai, além do silêncio que imprime aos filhos e da retomada da ordem familiar com um novo casamento, é a de apagamento contínuo da memória da morta. Não é possível fazer acusações de escolhas, mesmo porque cada geração ou ajuntamento familiar processa uma circunstância como essa de maneira diferente. No caso aqui falamos sobre uma família cujas raízes ainda estão assentadas ao tempo da longa noite que se abateu sobre Portugal só vencida com a Revolução dos Cravos em 1975. Os modos de agir, em todos os níveis, ou seja, dentro e fora do âmbito do grupo, estão de alguma maneira marcados do resquício do autoritarismo e das forças de domínio genuinamente opressivas e centradas no poder de mando do masculino. Nem é preciso dizer que o reduto do pai na tríade Deus, Pátria e Família, sempre se marca pela imposição, pelo silêncio para quaisquer temas sobre os quais os envolvidos atribuam a impossibilidade de desenvolvê-lo e a morte é um deles, como será a sexualidade, para citar outro assunto-tabu nesse reduto.
 
Nesse sentido, a morte da mãe adquire contornos dos mais diversos quando transformada em assunto literário. Sem tocar na ideia do acerto de contas do escritor com sua memória, ou melhor, com uma memória que aos poucos se apaga — seja pelos silêncios, seja pelo desfazimento dos registros que possam reativar as lembranças do vivido, seja ainda porque o pouco que se lembra está envolto na nebulosa da infância, de quando, ou romantizamos o acontecido ou impomos outras camadas de apagamento —, podemos tecer: a ruína da família, um fatalismo que se torna mais evidente a partir de quando os ajuntamentos não mais precisam se equilibrar à fina custa para satisfazer uma moral; e as marcas indissolúveis do paterno no processo de degradação da ordem e da educação das novas gerações. Não é o caso de encontrarmos a notória imagem da sociedade em crise devido a um modelo inoperante, mas a vemos quando encontramos os efeitos do trauma na ordem familiar ou mesmo do modelo educacional imposto ao narrador, ao irmão e muitos outros meninos de sua geração numa escola de tempo integral católica.
 
Hugo Gonçalves, portanto, finda por esmiuçar pelo lado de dentro do modelo social vigente algumas das suas implicações negativas que guarneceram a formação de todo ocidente, uma fez todas as práticas descritas encontrarem clara marca coletiva e reverberação noutras culturas. Exemplo disso é a maneira como os adultos instituem uma política de comportamento e de linguagem em torno do câncer. A doença, impossível de ser tratada nos assuntos diários em que as crianças estivessem presentes ou pelo nome próprio entre os adultos, aparece sempre pela via indireta nos discursos ou tratada de forma eufemística. Essa é uma circunstância que recorda, a título de demonstrar a universalidade da abordagem nesse romance, o Brasil de meados da década de oitenta, o ponto temporal em torno do qual se desenvolve as implicações de Mãe, quando encontramos exatamente as mesmas estratégias sinalizadas aqui da cultura portuguesa; certamente que, fora desses dois países, também terá acontecido o mesmo. Nesse caso, os interditos são os mais variados: como o próprio câncer, atinge regiões mais profundas e só alcançáveis aos atingidos pela consciência da morte iminente pelas formas da invenção, como age Margarida sobre a causa da doença da filha ou mesmo os netos, cada um, buscando nos seus convívios com o imaginário infantil e religioso dos adultos, fundindo-os numa espécie de credo próprio, alguma alternativa de salvação para a mãe que não chega.


 
Impossível de recuperar a história original capaz de estabelecer um retrato perdido da mãe, o narrador investe no trabalho de sondagem para as inquietações que se acumulam desde o tempo da infância e para as perguntas que se armam quando se envolve a investigar o ocorrido. Por isso que, a história buscada não se realiza; ela é preenchida com os materiais adjacentes: os movimentos da própria busca; alguns diálogos estabelecidos com as pessoas de convívio de sua mãe, isso que muitas vezes oferece alguma aproximação com aqueles cujas relações se fizeram sem a autenticidade que tinham de antes do episódio nuclear do livro, como o convívio com o irmão mais velho; a reconstrução de situações pessoais que findam por recuperar ainda uma memória coletiva e outros temas caros a esse interior, como os impasses intergerações, interculturas, intersubjetividades, resultados, claro está, dos muitos convívios exercidos pelo narrador na primeira fase da sua vida, a de quando a alternativa vigente é adiar o mergulho definitivo no acontecimento de 1985.
 
Uma diferença de perscrutar o vivido para compreender essas circunstâncias — agora transformadas em causas da via errante do narrador — se apresenta pelos objetos de mediação com o mundo, tais como os livros sobre os temas de interesse nuclear do livro (a morte, o luto e o câncer), os filmes e outras expressões artísticas, como a pintura, e os registros fotográficos apanhados à surdina nos arquivos do pai. Em algumas dessas ocasiões, o tom de relato logo se modifica para o do ensaio, como se estivemos em convívio com alguém que elabora um roteiro de investigação sobre determinada tese. Mas esses elementos exteriores exercem uma função bem à frente disso: são estratégias que buscam colaborar na tentativa de contato com uma memória que não foi  permitida uma formação e ante a impossibilidade de lembrar do vivido, uma vez que a vida intuída não é o vivido, formam algumas peças dessa história impossível de contar, mesmo que para o narrador, tais peças o frustrem porque estão no nível da mentira.
 
Aqui vale citar uma passagem de C. S. Lewis, uma das leituras do narrador sobre o luto e que podemos notar incorporada como parte sua, como se o livro da busca fosse a prova irrefutável ao enunciado pelo outro escritor em estado semelhante: “Embora me esqueça o motivo, sinto que sobre tudo se espalha uma vaga sensação de equívoco e de algo que está em falta. Como naqueles sonhos em que nada de horrível acontece — nada que pareça notável, se os mencionarmos ao pequeno-almoço —, mas em que a atmosfera, o sabor, tudo é sepulcral.” Isto é, o luto cobre tudo de um permanente vazio, do qual se é impossível escapar ou que toda vez retorna quando parece superado. O excerto de Lewis recuperado pelo narrador é uma das muitas maneiras de compreensão possível para o esforço de Hugo Gonçalves, só compreendido pelo nível da sensação de equívoco.
 
Muito já foi dito sobre a escrita enquanto suplemento ou preenchimento da falta. O fim de Mãe não é exclusivamente este, porque, como vimos, trata-se de um livro que compreende uma série de outras questões situadas ao redor do vazio: das mais íntimas às coletivas. Mais que isso o livro se afirma como uma fábula sobre a falta e a tentativa de fazer o escrito suplemento e ocupação. Tentativa porque sabemos que a escrita nunca alcança o sentido original e, portanto, é sempre por aproximação, por em torno, que se desenvolve; ou seja, a letra só se constitui enquanto força em-torno, ou melhor, como equívoco.
 
Se a escrita — e por extensão o romance, um seu derivado — não alcança esse nervo central é porque nada substitui a falta, tampouco a suplementa, e talvez seu papel apenas acrescente uma peça a mais ao vazio: “A ausência da minha mãe é aquilo que sou. Se ela não tivesse morrido, talvez nem sequer escrevesse. Teria outra identidade, outra história. Imaginá-la viva seria, portanto, uma forma de aniquilação.” Às vezes é preciso toda uma vida para compreender isso, ou nunca mesmo chega-se a tanto; outras vezes é possível adiantar a resposta experimentando-se pela criatividade, como escrever um romance, essa forma informe feita de imaginações a partir das babugens da história. Para nossa sorte, Hugo Gonçalves o fez e por seu itinerário é possível um leitor ao vivê-lo também descobrir isso.
 

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