Música (alma) e literatura

Por Marcelo Moraes Caetano



William Michael Harnett.  Music and Literature, 1878

 
A relação entre música e literatura se dá, como a que há entre diversas outras artes umas com as outras, de formas múltiplas, muitas vezes complementares, outras vezes apenas paralelas. É fácil e oportuno, por exemplo, à guisa de preâmbulo, traçarem-se correlatos semânticos entre a literatura e a pintura, a literatura e o teatro, a literatura e o cinema, a literatura e a dança e assim por diante.

Falar da comparação entre música e literatura, entretanto, parece tarefa um tanto ou quanto mais árdua, ou menos precisa. Isso porque o significante da música e o da literatura diferem, já na gênese, diametralmente. A literatura dispõe da evocação sígnica da palavra, que grafa no cérebro humano um sem-número de significados provenientes dessa sua propriedade imanente — o som, a escrita, seja lá o que for que provenha da palavra. A música, por seu turno, é expressão muda no que tange aos significados lexicais. A frase musical é a plasticidade sensorial no tempo — no que se torna análoga (não semelhante, mas análoga) à música —, plasticidade esta, porém, que, a priori, não quer e não necessita a interface imediata que a semântica das palavras propicia.

A música é semântica, sim, mas semântica mediata, requer, mais do que a literatura, da cooperação psíquica do interlocutor. Um maior não terá a mesma força-efeito em duas pessoas. Nem terá a mesma força-efeito numa mesma pessoa em dois momentos diferentes de sua vida. E, por mais que uma metáfora com palavras seja polissêmica e aberta a interpretações e recepções diversas também, está claro que “uma rosa é uma rosa é uma rosa é uma rosa...”

Na música não há uma rosa. Há dissonâncias, pausas, assonâncias, intervalos, dominantes, repousos, marchas, forças, tons, modos, clímax, inquietações, paz, conflitos, soluções... tudo isso abrindo mão das palavras, recorrendo a significantes, portanto, quase que cem por cento sob poder do receptor.

Dado esse brevíssimo cotejo entre as duas artes em questão, resolvi, para este ensaio, falar em alguns aspectos em que, no entanto, música e literatura se tocam amigavelmente. Não que uma precise da outra. Antes diria eu: são casos em que uma quis a outra. É bem diferente. Não se trata da área da necessidade, senão, sim, da área do querer, do bem-querer.

Falar em óperas, por exemplo, parece-me o primeiro, mais inequívoco e profícuo campo da comparação. Isso porque a ópera é música e é palavra simultaneamente. Há, pois, um, por assim dizer, eixo hachurado entre as duas artes, que chegam a ser, portanto, interdependentes. Em primeira instância, por isso mesmo, falarei da ópera e das canções como intersecção música-literatura. Depois disso, entretanto, me proporei falar da empreitada de se aliar a música a ideias literárias — só que desprovidas da ferramenta básica da literatura: a palavra. Muitos fizeram isso, mas atribuo a primogenitura oficial (e tentarei mostrá-lo) ao magnífico Franz Liszt.

Começando pela ópera, falar nela, quando se fala no intercurso entre a literatura e a música, é apontar, dentre uma ontologia demasiado vasta, exemplo concreto em que as duas artes se amam. Ocorre-me, por exemplo, a famosa Carmem, de Bizet, que foi inspirada, poucos sabem, no romance de Prosper Merimée, que narra, como diz Zito Baptista Filho (1987, p. 60) “uma história mais longa do que a paixão de Carmem e Don José. Ele [Merimée] narrou a história de Don José Lizarrabengoa, que se envolve numa luta sangrenta em sua região natal, na província basca, e vai reaparecer na Andaluzia como Don José Navarro; refaz sua vida como soldado no regimento dos Dragões de Alcalá, sediado em Sevilha, e aí então conhece Carmem, a cigana, sendo novamente conduzido à marginalidade e à tragédia final”. A arquitetura do libreto da ópera de Bizet, no entanto, coube aos hábeis Halévy e Meilhac, célebres, posteriormente, pelas bem-sucedidas empreitadas nas óperas e operetas do também francês, como Bizet, Jacques Offenbach, que era um ídolo pop de sua época.

Nas terras da Santa Cruz, o nosso Brasil, posso citar o caso do grande Francisco Mignone, que adaptou a obra de Manuel Antônio de Almeida, Memórias de um sargento de milícias, sob libreto de Humberto Mello Nóbrega. A ópera de Chico Bororó (pseudônimo dileto de Francisco Mignone) se chamou simplesmente O sargento de milícias, e foi posta a lume no fim da década de 70 do século XX.

Ainda sem sair do glorioso terreno da dramaturgia operística, podemos citar aqueles autores que tinham predileção quase obsessiva por determinado escritor. É o caso do gênio de Salzburgo, Mozart, que, amiúde, recorria a Lorenzo da Ponte para criar o texto (subjacente?) às suas imortais composições. Permanecendo nas searas austríacas, o dramaturgo Hugo von Hofmannsthal, que além de escritor tem também o mérito de ter sido um dos mecenas do Festival de Salzburgo, foi, desde jovem, eleito preferido para dar palavras literárias à por si só grandiloquente música do mestre Richard Strauss. Arabella, Ariadne em Naxos, O cavaleiro da Rosa, Electra são obras que resultaram dessa parceria genial entre o músico e o escritor (GAMMOND, 1986, p. 184 e ss.).

Verdi, talvez o patriarca da ópera enquanto tal, também recorreu diversas vezes à verve dramática de ninguém menos que William Shakespeare. Otelo, Macbeth, Falstaff estão aí para comprová-lo.

O romântico alemão Goethe, por sua vez, tem sido, há muito, verdadeiro inspirador de várias obras musicais, tanto com seu famoso e celebrado Fausto, quanto com seus outros poemas mais curtos. Exemplificam isso, brevemente, a famosa ópera Fausto, de Gounod, Mefistófeles, de Boito, e A danação de Fausto, de Berlioz. (A Valsa Mefisto, de Liszt, é indiretamente baseada na famosa história do doutor que engana o diabo, de autoria de Goethe, pois na verdade ela foi baseada na versão de Nikolaus Lennau sobre a narrativa original. Aliás, como não mencionaríamos, aqui, a versão brilhante e dialógica que Thomas Mann, anos depois, deu ao Fausto primitivo de Goethe, em seu Doktor Faustus?) Ainda Schubert, “o maior dos poetas que a música já conheceu”, nas palavras de Liszt, produziu uma série de canções (em alemão, Lieder), baseadas em escritores como Heine, Shakespeare e — Goethe. É deste último o famosíssimo Rei dos Elfos (“Erlkönnig”), que foi o guindaste definitivo do espírito de Schubert aos ecúmenos da genialidade musical. Eu traduzi para o português essa maravilha em meu livro de poemas Cemitério de centauros (Senai, 2007), que tem prefácio dos magníficos Antonio Carlos Secchin, Arnaldo Niskier e Marcos Almir Madeira, todos membros da Academia Brasileira de Letras. Gostaria de deixar registrado que, nessa minha tradução para meu idioma pátrio, mantive de tal forma a métrica linguística do Erlkönnig original, que, caso se queira, a versão em português caberá perfeitamente dentro do fraseado musical composto por Schubert. Falo isso não como bazófia, mas para demonstrar que minha preocupação, neste caso e nos demais em que música e literatura estão aliadas, é imensa. Há pouco tempo, fiz a tradução da Berceuse de Jocelyn (de Benjamin Godard), e a mesmíssima preocupação de manter a métrica original (dessa vez do francês ao português) se me deu.

A título de ilustração, coloco a primeira estrofe da obra de Goethe (musicada por Schubert), para que se compare que, na minha tradução, as sílabas musicais em português seriam perfeitamente compatíveis àquelas que o mestre de Viena compôs em seu famoso Lied.

Erlkönig
(Johann Wolfgang von Goethe)
 
Wer reitet so spät durch Nacht und Wind?
Es ist der Vater mit seinem Kind;
Er hat den Knaben wohl in dem Arm,
Er faßt ihn sicher, er hält ihn warm.
 
 
O Rei dos Elfos
(Versão: Marcelo Moraes Caetano)
 
Quem cavalga à noite, tarde, vindo ao vento?
É o pai trazendo seu precioso rebento.
Ele o traz tão profundamente no braço...
Mantendo-o seguro, num doce mormaço!
(CAETANO, 2007, p. 31)

Coube a Liszt a primogenitura, como eu já disse, de dar à música tons pictóricos, aproximando-a da pintura, mais até que da literatura. Seus Poemas sinfônicos traduzem isso com inquestionável maestria. E é curioso que, para comparar a música à pintura, no entanto, o mestre húngaro tenha usado o substantivo “Poemas”, em vez de, por exemplo, “Quadros” ou “Cenas”, como fizeram outros compositores, como Schumann, com suas famosas Cenas infantis, ou Mussorgsky, com sua virtuosíssima peça para piano ou orquestra Quadros de uma exposição. Ou seja, pode-se inferir que, na alma do grande magiar Liszt, música, pintura e literatura se interpenetram de tal sorte, que a designação dessas artes pode ser feita quase que de modo indistinto. Assim ficou claro em sua escolha terminológica.

Por falar em Liszt, que, como muitos sabem, é meu compositor dileto, é interessantíssimo o cotejo entre a obra do grego Nikos Kazantzákis, O pobre de Deus, que é a história romanceada da vida de São Francisco de Assis, e o poema musical de Liszt intitulado São Francisco de Assis pregando aos pássaros (LISZT: Budapeste, Editio Musica). Nikos ficou famoso por sua obra Zorba, o grego, levada ao cinema nos anos 1960, tendo como papel título Anthony Quinn. Interessante o cotejo, como dizia eu, diga-se em tempo, até pelo fato de que, neste caso, a obra do escritor grego veio à luz do mundo muitos anos após a escrita da peça do compositor húngaro. (Interessantíssimo, também, saber que Kazantzákis — que escreveu, além da vida de São Francisco de Assis, obras como Sodoma e Gomorra, O Cristo recrucificado, A última tentação, de epifanias evidentemente religiosas — se dizia materialista histórico, marxista, ateu, chegando a ser ministro do governo socialista instituído na Grécia após a famosa resistência frontal e cabal daquele país contra a ocupação nazista.)

No entanto, como nessas coincidências que o destino teima em atribuir ao acaso, há paralelos inegáveis nos dois trabalhos: o de Liszt e o de Kazantzákis. Não apenas — o que seria óbvio e desnecessário — pelo fato de as temáticas serem idênticas, mas sobretudo pelo timbre igualmente poético que se deu à figura central das duas obras-primas: o Arlequim de Deus, São Francisco. Nos dois, por assim dizer, “textos”, Francisco é mostrado não apenas no estereótipo que o senso comum lhe impingiu, qual seja o de figura frágil, debilitada, de ideologia quixotesca e até um tanto insana e inconsequente.

Não.

Nas obras — literária e musical — pode-se antever um Francisco profundamente delicado, lúcido, mas igualmente incisivo nas horas em que tal atitude era forçosa. Um homem que não recuava diante das dificuldades, um Santo que sabia dançar e divertir-se desprovido de qualquer sentimento de culpa judaico-cristã, uma pessoa que não se atirava às cegas “contra moinhos de vento”, mas que sabia para quê e para quem estava lutando, e que edificou sua luta altamente guerreira dentro de um espírito de harmonia com todos os elementos da natureza, sem deixar nada de fora — nem mesmo o diabo, numa atitude quase mefistofélica... pois como ele mesmo diz, em O pobre de Deus, em diálogo com seu irmão, apelidado de “Leão”:

“— Não percas a confiança, meu filho — respondeu [Francisco] acariciando-me a cabeça. Procura dominar-te, e se o Diabo te fisgou, nada temas, a porta se abrirá, e vocês dois entrarão no céu.
“— O Diabo também? Como o sabes, Irmão Francisco?
“— Meu coração se abre a todos e a todos acolhe de bom grado, Irmão Leão. Penso que o Paraíso procede como ele.”

Essa força e fé inabalável na Misericórdia de Deus está presente, na obra de Liszt, na seção intermediária, em que os trinados longos da multidão de pássaros da música dão lugar a uma crescente onda de força e vigor que começa com notas em pianíssimo e vai, pouco a pouco, mas sem retroceder, tal qual o próprio Francisco de Kazantzákis, transformando-se em oitavas potentes, que chegam ao fortíssimo, em arpejos especialmente brilhantes e vastos, generosos e enraizados, sem perder o equilíbrio e a majestade que provêm de tudo aquilo que é simples.

Em seguida, o Francisco de Nikos Kazantzákis age da seguinte maneira:

“Virou-se para os pássaros, inclinou-se, com os braços bem abertos, e começou a pregar:
“— Meus queridos irmãos: Deus, pai das aves e dos homens, muito os ama, como bem o sabem. E é em sinal de agradecimento que erguem o bico ao céu a cada gota de água que bebem. Na hora em que o Sol vem bater em seu peito, pela manhã, é para louvar o Senhor que saltitam de ramo em ramo, a garganta cheia de canções, rendendo graças à Luz, às árvores verdes e à alegria. Em seguida, voam bem alto no firmamento, para chegar mais perto Dele e serem ouvidos. E quando as fêmeas chocam os ovos que enchem os ninhos, Deus se transforma num pássaro e se põe a cantar para iludir o seu cansaço.
“Os pombos que passavam naquele momento, ouvindo a voz de Francisco, desceram e se atulharam a seus pés. Um deles foi pousar-lhe no ombro, arrulhando. Francisco abaixava-se cada vez mais, agitando as mangas do hábito como se fossem asas. Sua voz cantava, quase se convertia em trinados. Dir-se-ia que ele se esforçava por se metamorfosear em ave. (...)

“Agora eram as andorinhas que chegavam, enfileirando-se em cima da sebe ou na beira do telhado da igreja. De asas fechadas, espichavam o pescoço e ouviam. Francisco saudou-as. (...)

“— Bom dia, irmãs andorinhas, que todos os anos nos trazem a primavera nas asas compridas (...) Pousadas nas telhas das casas cobertas de neve, ou esvoaçando de galho em galho desfolhado, espicaçam o inverno com os bicos afiados, até obrigá-lo a fugir. E quando vier o Juízo Final, serão vocês, minhas andorinhas, que á frente de todos os seres alados, até mesmo dos anjos com as trombetas, revoarão os cemitérios, chilreando sobre os túmulos, anunciando a Ressurreição. Os mortos, então, hão de ouvir e saltar entre os tufos de camomila, saudando a eterna primavera.
“As andorinhas batiam alegremente as asas, os pombos arrulhavam. Os pardais se aproximaram e começaram a bicar com doçura o hábito de Francisco. E ele, erguendo a mão sobre suas cabeças, fez o sinal-da-cruz e os abençoou.” (KAZANTZAKIS, p. 165)

Impossível, realmente, não se visualizar, na música de Franz Liszt, as palavras futuras de Nikos Kazantzákis.
 
A arte tem esses paradoxos: São Francisco de Assis pregando aos pássaros há de ter sido inspirado em O pobre de Deus, ainda que a sequência cronológica negue essa inspiração pelo simples fato, tão tolo e comezinho, de O pobre de Deus ter sido composto muitos anos depois do poema de Liszt São Francisco de Assis pregando aos pássaros.
 
Trata-se apenas de uma questão de sensibilidade e educação artística, não de lógica matemático-cartesiana... A música, como a literatura, provém da alma. E o seu tempo é outro.

Referências


CAETANO, Marcelo Moraes. Cemitério de Centauros. Rio de Janeiro: SENAI, 2007
FILHO, Zito Baptista. A ópera. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987
GAMMOND, Peter. The Illustraded Encyclopedia of opera: a comprehensive guide to over 500 operas. London: Peerage Books Ltd., 1986
KAZANTZAKIS, NIKOS. O Pobre de Deus. São Paulo. Círculo do Livro, sd
LISZT, Ferenc. Années de Pélerinage. Déuxieme année: Italie. Published by Sulyok Imre, Mező Imre. Budapest: Editio Musica, sd

 

 

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