Os Diários de Franz Kafka: o batismo de fogo

Por Pablo Sol Mora

Franz Kafka. Ilustração: Tom Gauld.


 
Sou um leitor assíduo de diários. Gosto não das fofocas, mas desse motor da literatura; é fascinante ter a oportunidade de espiar a vida privada de um escritor e conhecer suas facetas mais íntimas, seus entusiasmos e suas angústias, suas certezas e hesitações, seus pequenos triunfos e derrotas, sua vida cotidiana e doméstica. É claro que nem todos os diários de escritores são diários íntimos, verdadeiramente íntimos; alguns são escritos desde o início para o leitor e a posteridade. O diariófilo sabe apreciar todos, os realmente íntimos e os mais eminentemente públicos e literários. Talvez o grande diarista seja aquele que escreve apenas ou fundamentalmente seu diário (Amiel, cujo Diário íntimo frequentei muito na adolescência e que me arrependo de ter deixado de fora dessas memórias) ou a quem o diário acaba impondo ao resto de sua vida. Li e gostei de muitos diários diferentes (Gide, Léautaud, Stendhal, os Goncourt, Woolf, C. S. Lewis, Pla, Bioy, Piglia...), mas os que revi obsessivamente na adolescência foram dois: os de Franz Kafka e os de Cesare Pavese.
 
Li inicialmente os de Kafka na edição em dois volumes do Libro Amigo de Bruguera (de novo), na tradução de Feliu Formosa (Barcelona, ​​1983). Mais tarde, apareceriam edições mais completas, onde foram corrigidas as intervenções de Max Brod, mas esta era a única a que tinha acesso na altura. Não sei por que, li muito mais o volume dois, que cobre de 1914 a 1923, do que o volume um. Na capa aparece uma das fotos clássicas de Kafka (na verdade são todas clássicas, são pouquíssimas), com aquelas maravilhosas orelhas de morcego cortadas um pouco pelas margens da foto. O livro está particularmente mal impresso, manchado, com a tipografia em alguns parágrafos muito escura e em outros muito clara. Como todos os meus primeiros livros (abandonaria esse hábito mais tarde), traz meu nome e a data na primeira página: setembro, 1993.
 
Acredito que o diário de Kafka — toda a sua vida e obra — é, antes de tudo, a história de uma vocação literária, do triunfo de uma vocação literária. Não costumamos associar a noção de triunfo a nada kafkiano, pois o caráter opressivo e apavorante de seu mundo ofusca todo o resto (e isso faz parte do mesmo triunfo), mas na realidade Kafka conseguiu uma grande vitória na arena que mais importava para ele, a única que contava para ele: a da literatura e da criação de uma obra. A preocupação por escrever é o fio condutor dos Diários, seu verdadeiro cerne, o tormento permanente: será que algum dia terei tempo para escrever? Poderei escrever o que me proponho? Poderei expressar minha vida interior através da escrita? E é precisamente a dúvida constante, o não possuir nunca a certeza de que está conseguindo, aquilo que o impulsiona a fazê-lo.
 
Muito objetivamente, em 20 de dezembro de 1910, ele escreve: “Como desculpar o fato de eu ainda não ter escrito nada hoje? Não há como. Sobretudo porque meu estado de espírito não é dos piores. Uma invocação ecoa constantemente em meu ouvido: ‘Se viesses, tribunal invisível!’”¹.  Mas não há tribunal mais exigente e implacável do que ele próprio ou a sua consciência — o “cruel interlocutor”, como o chamava Elias Canetti, notável leitor de Kafka —, que a todo tempo o incita constantemente a escrever.
 
Toda a vida de Kafka é uma batalha feroz em defesa da escrita e contra tudo que possa impedi-la (família, trabalho, amor, casamento, filhos etc.). Convencido da extrema debilidade de sua constituição orgânica, ele acredita desesperadamente que somente concentrando-se exclusivamente em sua vocação e desconsiderando tudo o mais poderá fazer alguma coisa. Há dias gloriosos, como aquela noite de 22 para 23 de setembro de 1912, em que ele escreve “As pernas, enrijecidas de ficar sentado, mal consegui tirar de debaixo da escrivaninha. O cansaço terrível e a alegria com a história que se desenrolava diante de mim e com meu avanço como se por uma torrente. Várias vezes durante a noite suportei meu peso sobre as costas. Como se pode ousar tudo, como, para tudo, até mesmo para as ideias mais estranhas, há uma grande fogueira em que elas perecem e ressuscitam. [...] Somente assim é possível escrever, somente numa tal circunstância, abrindo completamente corpo e alma.”
 
Apesar de sua (auto)proclamada fragilidade, apesar da hipocondria e da doença, que finalmente o alcança, há em Kafka uma vontade ferrenha para cumprir sua tarefa, como registrou em 31 de julho de 1914: “Agora, recebo a recompensa da solidão. Mas não é bem uma recompensa, a solidão só castiga. Ainda assim, toda essa miséria me comove pouco, estou mais decidido do que nunca. [...] Mas, apesar disso tudo, escrever eu vou, sem a menor dúvida; é minha luta pela autopreservação.” É eloquente que a última anotação do diário, 12 de junho de 1923, praticamente um ano antes de morrer, foi uma reflexão ambígua sobre a escrita e terminou, de fato, no que poderíamos considerar uma nota otimista: “Cada vez mais angustiado ao escrever. É compreensível. Cada palavra revirada na mão dos espíritos — esse movimento da mão é seu gesto característico — transforma-se numa lança voltada contra quem fala. Sobretudo uma observação como esta. E assim até o infinito. O único consolo seria: vai acontecer, queira você ou não. E o que você quer ajuda pouquíssimo. Mais do que consolo é: também você dispõe de armas.”
 
Pensemos agora no efeito que esses textos podem ter na cabeça de um adolescente de dezessete anos que descobriu recentemente a literatura e sua vocação. Na juventude, a leitura de Kafka é como um batismo de fogo, e o sacerdote exige total adesão. A concepção kafkiana da literatura é extremamente séria e dramática. Não é, obviamente, a única possível; era a única possível para um escritor como ele, é claro, esse tipo muito raro de escritor — Pascal, Dostoiévski, Kierkegaard, sua família espiritual — que parece quase condenado a tirar as últimas consequências da angústia e para a qual poucos, muito poucos pertencem. Com o tempo me daria conta que existem outros, menos trágicos, mas não menos válidos. No entanto, parece-me bom que seja uma ideia como esta que constitui a nossa primeira aproximação à literatura. É uma prova de fôlego, de energia. Se não há pelo menos um momento na vida de um jovem que lê e aspira a escrever, em que as palavras de Kafka não lhe pareçam, não estou dizendo verdadeiras, mas as únicas capazes de serem verdadeiras, eu duvidaria a seriedade de seus propósitos.
 
Toda vez que começo um curso de literatura, leio para meus alunos na primeira aula a famosa citação da carta a Oskar Pollak: “Eu acho que deveríamos ler apenas aqueles livros que conseguem nos ferir, que nos apunhala. Se o livro que lemos não nos acorda com um golpe na cabeça, por que estamos lendo, então? Porque isso nos deixa felizes, como você escreve? Meu Deus! Seríamos mais felizes se não tivéssemos livro nenhum. E o tipo de livro que nos deixa felizes é aquele que nós mesmos facilmente escreveríamos se precisássemos. Mas nós precisamos dos livros que nos afetam como um desastre, que nos tormenta profundamente, como a morte de alguém que amamos mais do que nós mesmos, como ser jogado em uma floresta longe de todos, como um suicídio. Um livro deveria ser o machado para o mar congelado dentro de nós. Isso é o que eu acredito.”
 
Procuro fazer com que meus alunos vejam que ler literatura — ler com seriedade — é algo muito diferente do que lhes foi dito ou do que eles podem ter pensado até então. Que é uma operação absolutamente vital, potencialmente transcendente, que exige um compromisso total de nossa parte e que envolve riscos que Kafka compreendeu perfeitamente. Todos nós temos uma visão de mundo, composta por uma série de ideias, valores, crenças etc. E de repente chega o livro, aquele machado de que fala, que a destrói completamente ou a abala gravemente, e então ocorre uma transformação dentro de nós: já não podemos mais ver o mundo da mesma maneira. Somos alguns antes de ler tal autor ou tal obra e somos outros depois. A leitura nos marcou para sempre. Poucos escritores como Kafka nos ensinam a transcendência desse ato.
 
Notas da tradução
 
1 As traduções das passagens dos Diários de Franz Kafka são de Sergio Tellaroli (Todavia, 2021).
 
 
* Este texto é a tradução livre de “Los Diarios de Kafka: el bautizo de fuego”, publicado aqui, em Letras Libres.

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