Jack Kerouac: encarnando a literatura universal

Por José Homero

But I ain’t going down
That long and lonesome road
All by myself.
 
— Floyd Jones, “On the Road Again”

Jack Kerouac. Foto: Zuma Press.


A literatura também é uma comédia de mal-entendidos. Autores que confeccionam uma obra com a noção de um leitor ideal, que passa a vida sem vislumbrar encarnações desse modelo; e autores que conquistam notoriedade entre um público tão estrangeiro que não entende nem percebe os valores de sua obra e, ao contrário, os perverte. Jack Kerouac é um exemplo trágico de ambos os casos. Primeiro sofreu o calvário editorial: seus manuscritos foram rejeitados ou sua publicação foi condicionada à submissão a esse tipo de terno e gravata burocrático que é a correção obrigatória que mina todo ímpeto original, toda insolência de estilo e pontuação e sintaxe uniformes. E quando, após quase uma década de frustração, uma editora aceitou suas condições, On the road só mereceu incompreensão e mal-entendidos. Primeiro, do estrato intelectual, que, alarmado com a entrada de um caipira no seu recinto centenário, reagiu com uma retumbante fechada de porta; e depois, daqueles que se enveredaram pelo livro como um evangelho que incitava a aventura e o excesso. Nem um nem outro entendiam os impulsos ou os propósitos desse escritor memorioso que logo cedo descobriu que viveria para escrever e escreveria sua vida.
 
Numa entrevista para The Paris Review, Kerouac confessou ter descoberto sua voz lendo uma carta de Neal Cassady — a lendária “carta sobre Joan Anderson” —, mas também observou “a advertência de Goethe, ou seja, a profecia de Goethe de que o futuro da literatura ocidental seria de natureza confessional; Dostoiévski também profetizou o mesmo.” A mistificação dos paroquianos e detratores impediu que Jack Kerouac fosse colocado devidamente na galeria literária; e discernir e estabelecer suas correspondências dentro do referido corpus. Ao contrário do preconceito predominante, ele não era de forma alguma o selvagem ou naïf da lenda. Grande leitor educado em seus clássicos com uma visão coerente da história literária, seus objetivos são elevados e seus temas profundos. Renegado da academia, como tantos autodidatas, fez seu aprendizado em bibliotecas públicas enquanto sua iniciação vanguardista deve a mentores e amigos — a formação do gosto e da poética da geração beat mereceria um ensaio em si, basta afirmar que Lucien Carr e William Burroughs assentaram as bases. Esses influxos convergiriam em um projeto e uma poética que, embora não formalmente registrada, se reflete em cada uma de suas criações. A imaginação de Kerouac era ambiciosa; sua ambição, cósmica e universal em seus afluentes.
 
O pacto fáustico
 
A menção de Goethe não é acidental. Depois de abandonar os estudos formais, de volta à sua Lowell natal, Kerouac leu Fausto. Desde cedo assumiu a perspectiva global e idealista do gênio de Frankfurt para recapitular a existência; em 1946, leu Poesia e verdade e começou a escrever Cidade pequena, cidade grande — onde, para sublinhar a filiação, um de seus episódios remete a outro de Os sofrimentos do jovem Werther. A ascendência impregna — inclusive — a descoberta do estilo Kerouac. Uma noite, em meados de outubro de 1951, depois de ouvir o saxofonista Lee Konitz, teve a revelação de que a espontaneidade era o objetivo que perseguia em sua própria arte. E empreendeu esboços: capturar com palavras a temporalidade com palavras: “tempo é essência”, diria; e nessa assimilação da escrita a um desenho apressado e impressionista do mundo sensorial, os ensinamentos de Goethe também convergiam, como confessaria a Allen Ginsberg em carta. Mais do que qualquer outro, Goethe seria seu verdadeiro herói, a ponto de seus climas serem reconhecíveis no Doctor Sax, um de seus personagens se chama Fausto.
 
Sim, está equivocada a crença no mito do escritor selvagem, irracional e totalmente emotivo, mas o próprio Jack contribuiu para esses mal-entendidos quando insistiu na espontaneidade de sua prosa. Angústia da influência? Ele deliberadamente tentou apagar os traços das presenças fantasmagóricas que não tão tenuamente deambulam por seus livros? Não. O problema está — antes — em que a espontaneidade é equiparada ao analfabetismo da leitura e à técnica rudimentar, que Kerouac nunca pregou. Politeísta literário, suas leituras clássicas incluem, além de Goethe, Cervantes, Shakespeare, William Blake, Balzac, Herman Melville e Dostoiévski; da heresia moderna, ele era um devoto de Thomas Wolfe, William Saroyan, Thomas Mann, Louis-Ferdinand Céline, Franz Kafka, William Carlos Williams.
 
A sua concepção vital, por sua vez, deriva de A decadência do Ocidente — um ensaio que parte da dimensão fáustica, cuja marca, visível na literatura, na música e na filosofia da primeira metade do século XX, fora para celebrar ou refutar sua perspectiva, mais profética do que analítica. O biógrafo Gerald Nicosia (Memory Babe: A Critical Biography of Jack Kerouac) acredita, por outro lado, que a exuberância wagneriana, de longos períodos com abundantes cláusulas, do autor Oswald Spengler influenciou a sintaxe de Jack. Poderiam realizar-se esmeradas investigações acadêmicas apontando para as confluências entre Kerouac e seus escritores favoritos — empreendimento realizado com sucesso por Stefano Maffina em The Role of Jack Kerouac’s Identity in the Development of his Poetics —, a verdade é que predomina a ascendência dos patronos modernistas, inclusive Céline. Escusado será dizer que Kerouac reverenciava e nunca deixou de ler Fiódor Dostoiévski — o título de Os subterrâneos deriva de Memórias do subsolo — e William Shakespeare, a quem considerava um pioneiro da prosa espontânea, atribuindo-lhe uma criação livre, sem correções.
 
A relação com Proust foi profusamente apontada e exposta nos documentos indiretamente relacionados à obra: cartas, entrevistas e, claro, biografias. Dennis McNally (Jack Kerouac. America and the Beat Generation) atribui a Neal Cassady a sugestão de considerar On the road como a base de uma saga, semelhante a Em busca do tempo perdido — e em espanhol, não há ressonância entre seus títulos, En el camino / Por el camino de Swann, o início do ciclo proustiano? Kerouac expõe precisamente essa chave na introdução de Big Sur:
 
“Minha obra encerra um livro de vastas proporções como o de Proust, com a diferença que as minhas memórias são escritas na corrida em vez de mais tarde doente numa cama. Por conta das objeções das minhas editoras eu não pude usar o mesmo nome para o mesmo personagem em obras diferentes.”¹ 

Ele notoriamente completou a linha ao se apresentar como um “Proust apressado” (running Proust) numa entrevista de rádio em sua terra natal Lowell, enquanto refletia sobre Big Sur. Se Goethe o havia inspirado a transformar sua biografia em tema, Proust lhe revelou a unidade do ciclo. Em uma carta ao crítico e editor Malcolm Cowley — que finalmente levou à publicação de On the Road após seis anos pedindo carona na estrada editorial — ele advertiu que todos os seus livros “são meros capítulos dentro de um trabalho total ao qual chamo Lenda de Duluoz.” Cowley, por outro lado, achava que devia mais a Thomas Wolfe do que a Proust: “toda sua obra era essencialmente baseada na memória” (The Book of Jack, de Barry Gifford e Lawrence Lee).
 
À mercê de uma correnteza selvagem
 
Jean-François Duval questiona — em Kerouac et la Beat Generation — qual é a originalidade, qual é o marco da obra de Kerouac. E observa que: “Ainda hoje não é certo que o público em geral, e nem mesmo os amantes da verdadeira literatura, a leiam mais do que a de Joyce.”
 
Essa comparação não é estranha, embora Ulysses goze de reconhecimento unânime e os romances de Kerouac permaneçam no purgatório acadêmico — é possível prever que On the Road continuará se expandindo mesmo daqui a 100 anos, enquanto outros ilustres contemporâneos perderão força. Kerouac, que desde muito jovem considerava o clássico joyciano “o maior livro já escrito”, em uma carta a Burroughs proclamou que On the Road deveria ser lido com a mesma seriedade e respeito que aquele (anotação à margem: a megalomania de Jack o compelia a comparar-se com os seus contemporâneos literários e a desdenhá-los, proclamando-se o melhor escritor vivo, mas quase sempre totalmente bêbado). Para Ann Charters — sua primeira biógrafa —, ele manteve “já na maturidade, a fantasia de se tornar o maior escritor da língua inglesa desde Shakespeare e James Joyce”.
 
O leitor familiarizado com a poética de Kerouac — e por isso entendendo o estilo e as reflexões sobre os propósitos estéticos por trás de sua escolha retórica — e também com a de Joyce, não precisa de muitos exemplos ou cotejos cuidadosos para compreender a relação. Enquanto os outros autores favoritos influenciaram nos temas (Goethe), no projeto literário (Proust), na visão dos personagens (Dostoiévski), na prolixidade da memória (Wolfe), Joyce é o único afluente no magma poético de Kerouac. Seu fraseado é ouvido na prosódia. Essa tentativa fáustica de parar um momento tão precioso e reconciliar escrita e experiência só encontraria seu canal através da mimese da consciência. Se Kerouac já havia usado o monólogo interior em seus formatos menos complexos, em trabalhos posteriores ele assimilará o fluxo de consciência — uma variante do monólogo interno — de Finnegan's Wake, transmutando-o em prosa espontânea para qual as ideias, a oralidade, os estímulos do mundo, confluem. Robert Creeley confirmou essa singularidade no prefácio para Big Sur:
 
“Diferente dos escritores que escrevem ‘a propósito’ de algo, que administram a linguagem com temas e motivos ‘à frente’ dos olhos para passar à execução de um ponto de vista externo, Kerouac pretende se situar dentro do fluxo da língua, perfeitamente em sintonia com ela, como o jazzman deixando fluir suas improvisações.”
 
Como se tentasse esconder sua inspiração, Jack atribuiu a descoberta de seu fraseado tanto às ondas de som e às derivas cúmulo sônicas que interferiam, os eólios modernos, os titãs do bop — Charlie Parker ou Miles Davis —, como à febril e dispersividade pós-modernistas — avant la lettre — do relato epistolar de Cassady. Apesar do seu caráter naïf, a narração está enraizada no monólogo joyceano. Não é talvez que a própria descrição de Ginsberg (“cheio de som e fúria, sem pausa, em um fluxo unificado e fundido, sem momentos de tédio, pois tudo era significativo e interessante, com uma velocidade fulgurante de tirar o fôlego”) poderia igualmente aplicar-se ao fluxo de consciência de Molly Bloom ou do Finnegans Wake?
 
Semanas depois de receber a carta de Joan Anderson, Kerouac finalmente empreendeu, em abril de 1951, seu romance projetado sobre suas aventuras com Neal, pela primeira vez transformando a escrita em um acontecimento, numa performance tão significativa quanto o resultado, rascunhando, datilografando, quase ininterruptamente, como um transe ou um longo solo literário, graças ao rolo de teletipo e à benzedrina que lhe permitiu escrevê-lo com pressa febril durante três semanas. Ele não abandonaria mais aquele método premente. E mesmo que o fluxo de consciência seja mais perceptível em livros posteriores — Visões de Cody, inspirado no procedimento de Neal, Visões de Gerard, a coisa mais próxima da prosa livre de Finnegan — a verdade é que Jack continuou a reconhecer o temperamento de sua voz para com seu velho amigo. Os subterrâneos merece uma menção especial, que indica textualmente a filiação com Finnegans Wake: “Eu tinha lido poucos dias antes as primeiras páginas de Finnegans Wake para ele e as explicado, e também a parte em que Finnegan está constantemente construindo ‘edifício sobre edifício sobre edifício’ nas margens do Liffey... estrume!)”.
 
Kerouac também reconheceu a marca dessa obra para privilegiar o som e não o significado das palavras — por exemplo em Lucien Midnight. Exemplar de sua perfeita assimilação pós-modernista das inovações técnicas do modernismo, Os subterrâneos não só é exemplar em sua recriação — cumprindo o programa do romantismo alemão — dos efeitos de uma arte sobre outra — do jazz, aqui —, mas admite ser lido até mesmo como uma confissão psicanalítica ao proclamar sua rejeição a esse método inquisitivo; um caso ideal para uma leitura desconstrutivista que segue o rastro de tudo o que o longo fluxo literário oblitera — e ainda emerge; “a vergonha é a chave para a repressão na escrita”, disse Jack em Good Blonde & Others:
 
“Nothing — he didn’t move but was just with his head off the pillow when I glanced back in closing the door—I had no clothes on in the alley, it didn’t disturb me, I was so intent on this realization of everything I knew I was an innocent child.”—“The naked babe, wow.”—(And to myself: “My God, this girl, Adam’s right she’s crazy, like I’d do that, I’d flip like I did on Benzedrine with Honey in 1945 and thought she wanted to use my body for the gang car and the wrecking and flames but I’d certainly never run out into the streets of San Francisco naked tho I might have maybe if I really felt there was need for action, yah”) and I looked at her wondering if she, was she telling the truth.”
 
Nosso leitor informado perceberá a prática do fenômeno de rupturas e distinguirá, por meio de inflexões e tonalidades, o entrelaçamento de níveis: o monólogo — não interno — de Mardou, protagonista que ama o personagem narrador, a descrição autoral, suas interpelações dialógicas, a consignação de seu próprio discurso mental... E se ler esses estranhos textos — romances, relatos ou exemplo da anulação dos gêneros que desde suas raízes românticas ansiaram a modernidade? — pode ofuscar, o certo é que esse relato, como Tristessa, ou as visões — Cody, Gerard — não são mais estranhas nem oclusivas que La obediencia nocturna, de Juan Vicente Melo, ou El hipogeo secreto, de Salvador Elizondo, escritores não gratuitamente formados na linguagem de Céline e Joyce, respectivamente.
 
Assim, responderíamos à questão de qual é o verdadeiro mérito da obra de Kerouac — ou melhor, a sua ambição — indicando que a conciliação da vida e da literatura em uma forma, o único destino da literatura, como bem sabiam os velhos formalistas. O próprio Jack intui esse caminho quando em carta a John Clellon Holmes proclama sua intenção:
 
“O que agora começo a descobrir está além do romance e além dos limites arbitrários do relato... para entrar nos domínios da Imagem revelada, a velha FORMA SELVAGEM, a forma selvagem. A forma selvagem é a única forma que contém o que tenho a dizer — minha mente explode para dizer algo sobre cada imagem e cada lembrança…”
 
Basicamente, a escrita, uma forma de êxtase, procura parar, apreender o tempo à maneira de um músico inspirado:
 
“De repente, durante um refrão, ele consegue AQUILO — todos os que o observam percebem, escutam; ele segura, vai em frente e o tempo para. Ele preenche o espaço vazio com a substância de nossas vidas; são confissões vindas do âmago de sua barriga, lembranças e ideias revividas com o clamor de melodias esquecidas. Ele poderia tocar e tocar, cruzando todas as pontes, e retornar com um sentimento tão infinito, explorando as profundezas da alma, porque não é a melodia do momento, que todos conhecem, o que conta, mas AQUILO...”²
 
Notas da tradução
 
1 A tradução utilizada aqui é a de Guilherme da Silva Braga (L&PM Editores, 2011).
 
2 A tradução utilizada aqui é de Eduardo Bueno e Antonio Bivar (Círculo do Livro, 1990).

 
* Este texto é a tradução livre de “Jack Kerouac: encarnando la literatura universal”, publicado aqui, em El Universal.

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