O negro de Dumas

Por Christopher Domínguez Michael




 
Ainda não vi L’autre Dumas, filme de Safy Nebbou lançado em Paris em fevereiro de 2010 que conta, com o inefável Gérard Depardieu interpretando Alexandre Dumas, a dupla vida criativa do romancista que assinou Os três mosqueteiros e O conde de Monte Cristo. Digo assinou e não escreveu porque a autoria plena do escritor sobre suas criações nunca ficará completamente clara e o filme trata das relações entre Dumas e o principal (mas não único), de seus negros, Auguste Maquet. Isso de negro, ou mais precisamente “negro literário”, é uma etimologia francesa do século XVIII e não esconde mistério maior: assim eram chamados os autores escravizados pelos escritores famosos que compunham para eles panfletos políticos, romances e dramas sem que, obviamente, sua autoria fosse reconhecida e aqueles que recebiam, segundo a lenda, pagamentos miseráveis ​​para dar fama a outros. Na anglosfera se chama ghost writers aqueles que na França ainda são chamados de negros. Basta dar uma olhada na Wikipedia ou na Amazon para verificar que o mercado editorial francês é abundante em romances sobre negros ou em memórias de ex-negros que, aborrecidos com o trabalho e fartos do anonimato obrigatório, decidiram quebrar tais vínculos e partir a cabeça dos famosos — atores, políticos, funcionários, escritores — com agendas muito abafadas para escrever — quem os empregavam.
 
Alexandre Dumas (1802–1870) era filho do general Dumas, famoso durante as campanhas italianas do jovem Bonaparte, e neto de uma escrava negra. Isso, essa descendência patente no charmoso rosto africano — lábios carnudos, nariz achatado, cabelos crespos, pele bronzeada, segundo uma descrição de época — do maior criador do romance popular, tornou fácil e fatal uma piada que virou matéria de litígio nos tribunais: um mulato que escravizava negros. Graças a Eugène de Mirecourt, que em 1845 lançou um libelo denunciando Dumas como um falso artista dono de uma galera de negros escravizados que escreviam seus romances para ele, estudantes pobres e tuberculosos que eram trabalhadores de uma indústria que o havia tornado milionário com a vida de um grão-duque e de decisiva influência política, se tornou uma lenda.
 
O que realmente acontecia?
 
Dumas, por volta de 1830, tornou-se um dramaturgo de grande sucesso que popularizou o romantismo com dramas históricos onde patenteou todos os efeitos que o tornariam famoso em Os três mosqueteiros (1844), Rainha Margot (1845), O conde de Monte Cristo (1845), O colar da rainha (1850), O prisioneiro da Bastilha (1861) e muitos outros. Dumas usou uma invenção contemporânea — foi a Revue de Paris que publicou pela primeira vez a fórmula “continua no próximo capítulo” — para vincular os jornais com o romance serializado e dar ao gênero uma fluidez e dramatismo que o cinema herdou no século seguinte.
 
Assim como Balzac, Dumas aproveitou a ideia, então também nova e possibilitada pela regularidade dos jornais, de séries em que os mesmos personagens apareciam tanto em sequências quanto em prequelas. Ele inventou o mecanismo que sobrevive nas telenovelas, que há pouco tempo perdeu, pelo menos na América Latina, a coisa da “tele” e ficou sendo “novelas”. Por isso existem dois tipos de romances hoje, aqueles que são lidos por quem lê livros e aqueles que são vistos na televisão e armazenados em vídeos. Para entender o grande destino de sua invenção, Dumas, um próspero empresário, ficaria muito satisfeito. Dono do seu tempo e dono da posteridade.
 
Mas para que essa indústria florescesse, Dumas teve que se cercar de colaboradores. Maquet, recomendado pelo poeta Gérard de Nerval, preparava a obra. Ou seja, fez as leituras históricas, resumiu-as, redigiu rascunhos e desenvolveu roteiros seguindo o plano geral de Dumas, a quem regressava ao manuscrito para receber o toque artístico e fazer as mudanças que sua noção revolucionária de economia dramática e suspense exigiam. Além disso, Dumas acrescentava os chistes, digressões e detalhes do autor. O que Maquet fez não foi diferente do que foi feito nas oficinas dos pintores renascentistas ou na equipe de muitos escritores e roteiristas de cinema.
 
Foi Maquet quem decidiu pôr fim à relação e denunciar Dumas, em 1856. Foi o negro quem, interessado em obter uma remuneração justa em relação à renda milionária de Dumas (oitenta centavos por linha, 5.626 linhas por volume, 20 volumes, 52.000 francos-ouro), reintroduziu à discussão um conceito de originalidade romântica alheio ao grande romancista, cuja defesa jurídica e literária foi, por sua vez, cruel e impecável. Argumentou-se que, numa época em que o rei Luís Filipe ordenava que todos os seus cidadãos ficassem ricos, era absurdo reclamar que a máquina de fazer livros dava dinheiro. Comprovou-se que Maquet havia sido bem remunerado, e a acusação foi revertida: por causa do gênio artístico e comercial do mestre, o negro era um satélite sem luz própria que brilhara às custas de Dumas, quem, dizia-se, tinha colaboradores como Napoleão, generais. Maquet perdeu os processos e morreu, sem pena nem glória, em 1888. Tem sua pequena rua em Paris.

* Este texto é a tradução livre de “El negro de Dumas”, publicado aqui, em Letras Libres.

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