Uma leitura de Cheia, romance de Natália Zuccala

Por Tiago D. Oliveira

 



A leitura é uma queda sem freios; em Cheia o suspenso é veloz como a vida. O primeiro evento da narrativa é capaz de marcar na terra a imagem e o peso de um corpo que carrega tantos outros em sua representação. O peso de gerações — uma mulher e seu marido em uma mesa de restaurante, mesa para um, assim ela pede para o garçom, o esquecimento/ apagamento involuntário como ferramenta de defesa do corpo que reage sem pedir licença. A memória só retorna quando o corpo é novamente sublinhado pela mão do marido em seu ombro, a ressurgir, a recobrar, a retomar um lugar, como fizeram historicamente todos os colonizadores. O corpo da mulher ainda é terra que vem sendo devastada, apossada sem que a natureza respire e mesmo assim, contra tudo e todos, a força se figura em beleza quando a luta é contínua e o brado é marcado por uma resistência de coragem, afeto e dor.
 
Em seu primeiro romance, editado pela Urutau, Natália Zuccala apresenta uma narrativa “com a segurança de quem vai muito além da técnica”, como bem aponta, em texto de orelha para o livro, a também escritora Carola Saavedra. E mesmo antes da leitura o suspenso acontece com a possibilidade de uma força que vem para além de moldes possibilitado pelo estudo, pela leitura de outras leituras, de mundo; vem para perto de um lugar natural das percepções que são dadas aos passos de toda mulher. O livro cresce paulatinamente e a técnica de quem já escreveu outros caminhos também é somada ao além das páginas para compor um descaminho da imagem deformada, da cheia que não cessa.

Há no que é contado uma desmemória vivida por Amanda, que é parte fulcral para que o leitor entenda que toda investigação se depara com vestígios que grudam na herança empírica de todo ser. É um caminho sem volta quando o véu é desnudado do pensamento solto para dar lugar aos olhos nos olhos da virada; conhecer é ter dever. Aqui a literatura se faz destino para os desavisados, quando o norte cresce dentro das constatações que são fornecidas na soma das páginas.
 
Uma sensação de quebra é construída com muito cuidado e esmero quando as frases são curtas, quando o pensamento é atravessado e interrompido, quando a soma dos fatos é levada ao choque quando a falta de memória é o chão estratégico capaz de quase se figurar como personagem de uma trama que utiliza bons motivos para costurar as erupções de sentidos na pele do leitor. O que fica por trás da vontade crescente de conhecer o centro dos fatos é muito bem organizado pela desmemória, pelos acontecimentos implícitos, que vão sendo realizados na reflexão do leitor. Nesse momento já somos todos pontuações, tons, palavras do livro. Estamos juntos em uma página lida devagar enquanto a respiração recebe a vida de uma montanha russa. A sintaxe é construída de forma lúcida como um degrau para a subida da consciência, a que podemos chamar de hoje.
 
A memória da protagonista Amanda é parte principal de uma alegoria que constrói para desconstruir o peso histórico ritmado pela soma dos anos no mundo inteiro. Vejo muito bem aqui uma escrita feita de abismos, lugar que nos obriga a olhar para o que passou, muitas vezes sem a chance de retorno, mas principalmente para o que está em nossa frente, o fim ou salto/ recomeço.
 
Poderia pensar em um fluxo de consciência que Amanda atravessa, e assim o leitor vai tendo conhecimento das cenas narradas. Um fluxo que é a todo momento interrompido, quebrado. Desta forma somos também levados a pensar sobre uma ideia de limite — até que ponto alguém consegue ir dentro da dor, dentro do desrespeito, dentro da subtração, aguentar? O corpo passa a medir os limites que transbordam.
 
Traço aqui um painel de pontos soltos que se grudam pela falha do outro, pelo peso carregado por uma mulher. Grávida, Amanda é levada a sentir o descontrole de seus pensamentos, de seu corpo. A condição de carregar outra vida passa a ser palco para reflexões políticas, já que o “ser” se faz aqui também como ato político de resistência — dona de um corpo invadido, possuído, obrigado e em vários momentos a violência causada também pelo não-saber é capaz do paradoxo ingênuo de pensar ser defesa. Refém do descontrole controlado pelo abuso de outro corpo. Sensação refém de outra. Sentir, prisão.
 
Em uma cena pilar para a construção da força da narrativa, lemos Amanda sendo penetrada por Carlos, seu marido, enquanto dorme. O que fica do outro lado desse universo chamado livro, é um descontrole transmitido, é também o corpo reagindo a partir de uma vontade própria capaz de tremer as carnes quando a imaginação vai além das páginas de Cheia. E percebo-me também Cheia, entendo-me parte de uma geografia que conduz a dor como número, como palavras compositoras de uma noite de domingo na revista eletrônica da tv. A potência da narrativa se dá quando o corte dos períodos atravessa o leitor de alguma maneira e aquele incômodo vai ser semente para os dias da semana brotarem em reações já na vida comum. Homens vêm de mulheres, são pais de mulheres, são também as mulheres, a consciência que liberta divide o peso e só assim a dor paulatinamente pode ser dissolvida em ventos mais justos e frescos que poderão surgir.
 
A existência de Amanda vem sobreposta pela de Carlos, o papel histórico do homem na sociedade, provedor do sustento e detentor dos des/ caminhos. Desempregada e ainda jovem, acontece como lugar possível da ilustração do abuso de seu marido. O que a autora constrói é um enredo que se mostra em descontrole, quebrado, uma linearidade comprometida com as intermitências da memória falha. Aqui pensamos as direções de ser, existir e resistir — três faces de uma mesma moeda carregada no bolso de muitas mulheres.
 
Natália escolhe o caminho da composição de imagens que provocam a partir da reflexão. Em um mundo machista, ser mulher é uma luta diária para quebrar barreiras já estabelecidas. Mundo dominado por homens, o que vemos nas figuras do cabelereiro, marido, pedreiro, porteiro, relações que subtraem de alguma forma a identidade da protagonista, que cultuam o desaparecer diário. Amanda não conclui seus pensamentos, suas indagações, suas constatações, isso vai construindo um ser travado que hesita, duvida, não potencializa saúde de natureza alguma. Ela vai sendo preenchida pela falta e assim, em dado momento, está Cheia, uma junção dos sentimentos da perda de identidade com todos os outros atravessamentos violentos que a vida lhe impõe em seu espaço violado de mulher. A perda do controle, tão bem construída pela autora, aqui é um ponto chave para que a narrativa construa uma crítica social fundamental para este tempo, a de que o direito e a liberdade são terrenos natos e importantíssimos para toda mulher. Não ser não cabe mais.
 
O que fica quando a última página é lida é uma certeza sobre o abuso, sobre o “gaslighting”, sobre o terror psicológico contra a mulher — que a “afecção”, termo tão bem cunhado por Espinosa, é um lugar que precisa ser reconstruído a partir dos relatos e vivências da mulher. A cultura da posse seria muito melhor sepultada no passado. Em troca, teríamos a beleza da força situada nas mãos delicadas ou não de uma mulher, e tudo isso enquanto transforma o dia mais comum em um acontecimento genuíno na vida de qualquer semente. Cheia, de Natália Zuccala, é um livro importante.

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Cheia, de Natália Zuccala
 

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