Lamb: uma família entre outras

Por Fernanda Solórzano



 
Não me lembro de ter visto um filme parecido com Lamb antes. Não é um julgamento de valor, embora poucas coisas me empolguem tanto quanto aqueles filmes que nos afastam de suas reações habituais. Vencedor do prêmio de melhor filme na recente edição do Festival de Sitges, dedicado ao cinema fantástico, e do prêmio de originalidade na seção Un certain regard, em Cannes, Lamb foi descrito como um filme de “horror sobrenatural”. O adjetivo é indiscutível: o acontecimento central da trama escapa às leis da natureza. Mas é uma história de terror? Eu não teria tanta certeza. Não é para os protagonistas; eles, ao contrário, sentem-se abençoados pela irrupção do sobrenatural na vida cotidiana. Sua experiência deve ser o critério a ser considerado.
 
Primeiro longa-metragem do islandês Valdimar Jóhannsson, Lamb se passa em uma daquelas paisagens que ilustram a ideia de “fim do mundo”: um vale montanhoso cuja majestade é de tirar o fôlego, mas que não necessariamente convida a habitá-lo. Os humanos que se instalarem ali terão cortado seus laços com a chamada civilização. Se, ainda por cima, se considera que as florestas nórdicas são habitadas por seres mitológicos, entrar nelas implica aceitar os riscos de ingressar em território fantástico. A noção de fronteira é central para Lamb. Em algum momento da história, ficará claro que elas foram ultrapassadas sem prévio consenso.
 
Tudo isso é sugerido desde a primeira sequência: em meio a uma tempestade de neve já infernal, uma manada de cavalos foge de uma ameaça invisível. O som do vendaval é misturado com algo que soa como um rugido. As cenas a seguir são filmadas na perspectiva desse algo: a câmera se aproxima de um estábulo e, quando a porta se abre, todas as ovelhas olham para aquele que chega. Não é uma presença que lhe é familiar. Logo se verá um deles cambaleando e desmoronando. Mais tarde entender-se-á por quê.
 
Após este prólogo narrado de pontos de vista tão inusitados, o roteiro apresenta seus protagonistas humanos: Maria (Noomi Rapace) e seu marido Ingvar (Hilmir Snær Guðnason), dedicados à criação de cordeiros e sem muito o que falar. Seus momentos de maior intimidade ocorrem quando assistem juntos a partos de ovelhas; Maria as ajuda a expulsar seus filhotes, certificando-se de que sejam limpos e reconhecidos como seus. Ingvar observa tudo e sorri emocionado. Fora desses momentos, o casal se comunica pouco: apenas para compartilhar tarefas ou, por exemplo, se o trator tiver um novo barulho que terá que ser verificado. Seus silêncios, no entanto, parecem ser um sintoma de outra coisa. A suspeita é reforçada quando, uma manhã, um Ingvar animado conta a Maria algo que ouviu: cientistas dizem que será possível viajar para o futuro. Ela simplesmente responde que seria melhor voltar no tempo. Em breve saberemos que a mulher deu à luz recentemente a uma menina morta e que o casal não consegue superar o luto. Sua natureza sombria muda no dia em que, como sempre, assistem ao nascimento de uma borrega. O parto, no entanto, não será nada normal. Ao contrário dos vários cordeiros que vimos nascendo nas sequências anteriores, este levanta a cabeça primeiro. Sua mãe empurra com grande esforço, até que, por fim, o corpo é expelido e cai na cama de palha. Esse último acontece fora do enquadramento. Por um momento, e pelas expressões perturbadas de Maria e Ingvar, tem-se a impressão de que a cria não sobreviveu. Mas, logo o casal se ajoelha ao lado do corpo e troca olhares intensos — ele, de algo que parece medo e ela, de total ilusão. Maria pega o bebê e o envolve na jaqueta que ele estava vestindo. Sua aparência não é muito deste mundo, mas isso não impede que Maria assuma o papel de mãe entusiasmada.
 
Não vou revelar como é o recém-nascido. Basta dizer que ela é de natureza híbrida, e isso sem dúvida influenciou Maria e Ingvar a levarem o filhote para morar com eles e a batizarem com o nome de sua filha morta: Ada. A criatura dorme dentro da casa, em um berço feito por seu pai humano. O casal se reveza em embalar, e quando ela fica um pouco mais velha, eles a alimentam em seu carrinho. Com a chegada de Ada, Maria e Ingvar voltam a rir. Assistem TV juntos, com Ada dormindo entre eles — a cabecinha de sua ovelhinha branca descansando placidamente no ombro da mãe ou do pai.
 
O segundo ato de Lamb narra os obstáculos enfrentados pela nova família. Do assédio da mãe biológica de Ada à resistência de Pétur, irmão de Ingvar, que se recusa a aceitar Ada como sua sobrinha. Pétur pergunta “que diabos é isso?”, referindo-se a ela. A resposta de Ingvar é complexa e até aceitável como moral. “É a felicidade”, ele diz ao irmão. Não há mais o que explicar.
 
Isso leva de volta a se Lamb é uma história de terror. Pode ser que, para muitos, o que produza horror (ou, pelo menos, repulsa) seja a naturalidade com que Maria e Ingvar tratam com amor infinito o que a maioria consideraria uma monstruosidade. Não só isso, mas que forneçam cuidados que devem ser usados ​​apenas para filhotes da espécie humana. A desolação deles é tão grande que perderam o senso? Eles são perversos por não contemplar as necessidades da estranha criatura (e as de sua mãe ovelha, desesperada para recuperá-la)? Ou, pelo contrário, e como Ingvar sugeriu, os termos da felicidade dos outros não devem ser submetidos a critérios de normalidade. Esse último argumento ressoa naqueles que, por exemplo, afirmam que nossos animais de estimação são tão amados quanto uma criança seria — e estamos dispostos a discutir com aqueles que nos acusam de banalizar a ideia de maternidade, até mesmo de família. Claro, Jóhannsson não pretendia traçar esse paralelo, mas essa sugestão estranha aumenta o apelo de Lamb. Se o filme não é propriamente uma história de terror, também não é uma paródia desses laços interespécies que parecem inofensivos para alguns (ou, diria Ingvar, “a felicidade”) e para outros um sinal de degradação moral.
 
E é que Lamb poderia ser ridículo ou gerar humor não intencional. Algo crucial para que isso não aconteça é a imersão de Rapace num personagem que pareceria impossível de interpretar com convicção e honestidade. Desde aconchegar o recém-nascido até cometer um ato violento para impedir que ele seja levado embora, Rapace ajuda o espectador a manter a credulidade. Nunca dá uma nota falsa, o que é admirável considerando que nada do que acontece aqui tem uma correspondência na realidade.
 
A aparência desconcertante de Ada, vestida com roupas do campo, sem dúvida fará muitos rirem. O efeito cômico, no entanto, logo desaparece. E é que vendo do outro lado — tudo neste filme pode ser visto do outro lado — a pequena e monstruosa Ada é um personagem que exala tristeza. Não que ela o vivencie — ou não nos primeiros atos —, mas a história sublinha o tempo todo a impossibilidade de sua existência. Por um lado, o paradoxo: se Ada quiser viver como humana, terá que fazê-lo em total isolamento. De outro, a eventual tomada de consciência sobre sua origem, que parece causar dor e confusão. Ela é percebida em certas cenas, como aquela em que se olha no espelho (talvez pela primeira vez) ou a que observa curiosamente uma gravura pendurada na parede, na qual aparece um enorme rebanho. Quanto mais a trama avança, mais egocêntricos Maria e Ingvar nos parecem: humanos decididos a repor suas perdas, sem considerar mais nada.
 
Na primeira impressão, o resultado de Lamb é trágico. Também não revelarei, mas marca o fim abrupto daquela utopia familiar que tanto escandalizou o tio Pétur, e que até ele viria a aceitar. É um desfecho poderoso, que dá sentido àquelas primeiras sequências de animais perplexos (e um desmaiado). Uma opção para o espectador é se solidarizar com a dor de Maria, mais uma vez diante de uma perda brutal. A outra é imaginar que Lamb é uma história em que seres fantásticos do outro lado da fronteira costumam contar uns aos outros, e que fala de humanos perversos que pagaram por sua ousadia. Olhando por esse lado — tudo em Lamb pode ser assim — esta seria a emocionante história de uma reunião de família. 

* Este texto é a tradução livre de “Lam: una familia de tantas”, publicado aqui em Letras Libres.

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