Cadernos de delicada loucura (Parte 1)

Por Antonio Yelo

Le Solitaire. Tennessee Williams, anos 1970 Arquivo: Key West Art & Historical Society


 
1
O detetive de homicídios Somerset, da polícia de Nova York, entra numa sala. As paredes são ocupadas por estantes que chegam até o teto. Nelas, milhares de cadernos estão empilhados. Somerset pega um. Capa sem designativo. No interior, preenchido totalmente de frases manuscritas, diminutos e rascunhados desenhos e pequenas fotos, aparentemente recortadas da seção de contatos do jornal. Os desenhos, imagens e texto ocupam cada centímetro das páginas. Somerset pega outro caderno e o folheia. Igual ao primeiro, cheio até a borda. Somerset vai até outra prateleira e pega outro caderno. O mesmo. O detetive olha ao redor. Estão na casa do assassino. Seu parceiro, o detetive Mills, entra na sala.
 
Três assassinatos brutais foram cometidos. Há um fio que une os crimes: são inspirados em três dos sete pecados capitais. Os detetives verificam se os cadernos não contêm datas ou lugares e não estão organizados de acordo com nenhum critério. São todos iguais e não possuem designativos ou nomes identificadores; cada um deles tem aproximadamente duzentas e cinquenta páginas. Três oficiais uniformizados entram na sala. Somerset abre outro caderno e lê em voz alta:
 
“Somos fantoches doentes e ridículos. Dançamos em um pequeno e asqueroso palco. Nós nos divertimos, dançando e fodendo. Ninguém cuida do mundo. Não somos nada. Não somos o que se pretendia.”
 
A forma desarticulada, a falta de sentido nas anotações e, sobretudo, a quantidade de cadernos para ler, impossibilitam encontrar neles qualquer informação útil que ajude a prender o criminoso e evitar os quatro novos assassinatos que quase certamente ocorrerão nos dias seguintes.
 
Essa cena pertence a Seven, filme dirigido por David Fincher e lançado em 1995. O roteiro é obra de Andrew Kevin Walker. O papel do serial killer (que se faz chamar “John Doe”; o nome dado aos cadáveres não identificados nos Estados Unidos) foi interpretado por Kevin Spacey. Morgan Freeman e Brad Pitt entraram na pele dos detetives Somerset e Mills.
 
2
A poeta Sylvia Plath, desde muito jovem, tinha consciência de que vivia dentro dela uma sexualidade exigente, sempre presente e capaz de arrastá-la para situações que poderiam escapar de seu controle. Sabia que era atraente para os homens e conhecia sua necessidade de tê-los por perto. Ficava claro para ela que havia apenas dois caminhos para sua vida: o de uma esposa e mãe respeitável ou o de uma mulher entregue e abandonada às paixões da carne. Em 17 de julho de 1952, aos dezenove anos, escreveu em seu diário: “Qual das duas coisas…? A dama ou o tigre? Em dez anos saberemos.”
 
Pouco antes de se casar, depois de passar um dia na praia, ela escreve em um de seus cadernos:
 
“Tal era o calor emitido pela rocha, um calor tão áspero e confortável, que senti que poderia ser um corpo humano. Queimando o tecido do meu maiô, um calor imenso irradiava pelo meu corpo, e meus seios doíam contra a pedra dura e plana. Um vento salgado e úmido soprou levemente umedecendo meu cabelo. Através do meu cabelo brilhante eu podia ver o azul cintilante do oceano. O sol penetrava por todos os poros da minha pele, extinguindo cada fibra queixosa dentro de mim com uma grande paz dourada e brilhante. Esticando-me sobre a rocha, tensionei meu corpo e depois o relaxei. Como num altar, senti que o sol me estuprava deliciosamente; me enchia e me completava com um ardor que vinha do impessoal e colossal deus da natureza. Quente e perverso era o corpo do meu amante debaixo de mim. E a sensação de sua carne esculpida era diferente de qualquer outra — não era macia, nem flexível, nem molhada de suor, mas seca, dura, lisa, limpa e pura.”
 
Sylvia Plath tentou suicídio pela primeira vez quando tinha dezenove anos. Desde os onze anos escrevia um diário. A escritora nascida em Boston passou a maior parte de sua vida lutando contra uma enfermidade mental. As páginas de seus cadernos refletem suas depressões, seus problemas conjugais, sua intensa libido e os altos e baixos de seu trabalho como escritora. Mas também há espaço para seu amor pela culinária e pela comida. É impressionante que, entre as páginas que descrevem descidas aos infernos mais profundos da mente ou reflexões de uma grande inteligência sobre seu trabalho ou sobre o papel da mulher na sociedade, haja outras em que detalham apenas sobre comida.
 
“Eu me diverti muito comendo meus primeiros caracóis, ostras, camarões e provando os vinhos e todo o maravilhoso mundo neon de ladrões e milionários. (13/12/54)”
 
“Como um ovo no café da manhã, depois subo e trabalho, e desço ao meio-dia para fazer uma grande refeição quente para Susan, Frieda e eu, que comemos sentados na alegre sala de jogos. Em seguida eu trabalho. Depois de uma hora de descanso, uma xícara de chá com Susan, e antes que eu perceba, os bebês estão na cama. (25/10/62)”
 
Em 11 de fevereiro de 1963, Sylvia Plath deu bom dia aos filhos (de três e um ano); desceu à cozinha, preparou o café da manhã para as crianças, ligou o gás e enfiou a cabeça no forno. Tinha trinta anos.
 
O poeta Ted Hughes foi o responsável pela primeira edição (1982) dos diários de Sylvia Plath, sua companheira. Hughes reconheceu que havia eliminado inúmeras entradas e que dos cadernos escritos entre 1957 e 1959 não havia incluído nada. No prólogo, ele explicou que havia destruído o último caderno, aquele escrito pouco antes do suicídio de Plath. Ele fez isso, argumentou, para impedir que seus filhos o lessem e para sua própria sobrevivência. “Eu precisava esquecer” escreveu ele.
 
Cinco anos após a morte de Plath, Assia Wevill, amante de Ted Hughes, tirou a própria vida da mesma forma, deixando aberta a torneira do gás. Nesta ocasião, seu suicídio causou a morte de suas filhas. Ela deixou um bilhete: “Não se pode viver com o peso da memória de Sylvia.”
 
3
Aos quarenta e oito anos, André Gide apaixonou-se por Marc Allégret, um rapaz de dezesseis anos. Gide, então, já era um renomado romancista na França. Ainda era casado com sua prima Madelaine. O casamento que nunca foi consumado.
 
O menino era o quarto filho do pastor protestante que foi nomeado tutor legal de Gide quando seu pai morreu. Em seu diário, datado de 1º de maio de 1917, anota: “O prazer de corromper é um dos menos estudados; o mesmo acontece com tudo o que nos apressamos a censurar antes de tudo.” Em dias sucessivos, ele escreve sobre seu estado de felicidade e sobre a calma com que desfruta de sua paixão, mas o faz de maneira velada: “Eu me absterei de falar sobre a única preocupação da minha mente e do meu corpo...” (19 de maio). Em 6 de agosto, escreve: “Conto com ciúmes as horas que me separam de Marc”. A partir desse dia ele começou a usar os nomes fictícios de Fabrice (para ele) e Michel (para Marc) em seus cadernos.
 
Gide foi criado em uma família conservadora e passou parte de sua juventude obcecado com a culpa e a responsabilidade. Aos 22 anos, conheceu Oscar Wilde na casa do romancista e poeta simbolista Henri de Regnier. Profundamente impressionado com o romancista britânico, ele o frequentou nas semanas seguintes. Esse encontro o fez repensar as regras de conduta que lhe haviam sido incutidas durante a infância e relaxar seus princípios morais. “Wilde se dedica a matar o que resta de minha alma em mim com o argumento de que para conhecer uma essência é preciso suprimi-la”, escreve a Paul Valéry.
 
Gide e Marc viajaram juntos para a Suíça. Em 7 de agosto escreve: “O medo de ver o adolescente crescer rápido demais atormentava Fabrice incessantemente e precipitava seus amores. O que ele mais gostava em Michel era o que ainda conservava de infantil, no tom de voz, na atitude folgazã, nos mimos, tudo o que reencontraria variadas vezes, louco de alegria, quando se deitavam juntos à margem do lago.” No final da vida, Gide escreve a Maria Van Rysselberghe (sua melhor amiga): “Só duas coisas me interessaram apaixonadamente: os meninos e o cristianismo.”
 
Como conta Ignacio Echevarría em seu bem documentado prólogo à edição espanhola dos dois primeiros volumes dos diários de Gide, um amigo aconselhou o escritor em 1924 a não publicar Corydon. Nesta obra, ele justificava sua pedofilia usando práticas sexuais na Grécia antiga como argumento para recomendar as relações amorosas de adolescentes com adultos. A resposta de Gide ao amigo foi: “Quero calar todos aqueles que me acusam de ser um mero diletante, quero mostrar a eles o verdadeiro Eu”. O livro foi publicado e fez muito sucesso.
 
Esse desejo de sinceridade presidiu o processo de escrita dos diários de Gide. Em seus romances, obcecado pela forma e pelo estilo, perfeccionista por essência, o autor acostumara-se a “escrever devagar”. Essa lenta elaboração de seus textos gerou boa literatura — Gide conhecia sua qualidade —, mas prejudicou a sinceridade de suas páginas. Para expressar sua verdade, por mais crua e chocante que fosse, forçou-se a “escrever rápido” em seus cadernos.
 
Em 3 de junho de 1893, aos 24 anos, escreveu em seu diário: “Minha eterna pergunta (e é uma obsessão doentia): posso ser amado?” Ele confessa à sua amada Maria Van Rysselberghe que se sente um “hipócrita, que sua necessidade de simpatizar com os outros o leva a adotar as opiniões dos outros e acabar dando uma impressão enganosa de consenso”. Consciente de sua inevitável vontade de agradar, à medida que Gide avançava na escrita de seus diários, convenceu-se de que a única sinceridade possível era aquela que saía de sua pena e era impressa a tinta nas páginas daqueles cadernos.
 
No seu romance Os moedeiros falsos pode ler-se, no diário do seu personagem Eduard (o próprio): “Este diário é o espelho que anda comigo. Nada do que me acontece adquire existência real até que eu o veja refletido nele.”
 
André Gide ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1947 e foi o único dos vencedores cuja obra foi proibida pela Igreja Católica. Morreu quatro anos depois, aos oitenta e um anos, de congestão pulmonar. Em seu leito de morte, disse: “Temo que minhas frases se tornem gramaticalmente incorretas. É sempre sobre a luta entre o que é razoável e o que não é.”
 
4
No domingo, 13 de junho de 1937, o jovem Tennessee Williams anota em seu diário:
 
“Eu gostaria de nadar, mas as velhinhas não me deixaram sair por causa do meu nariz machucado. Irritado e entediado. Vou acabar como Rose? Deus me livre! Minha obra teatral vai de mal a pior.”
 
Em 19 de novembro de 1938, Williams vai com sua mãe para ver sua irmã Rose no hospital psiquiátrico onde ela está confinada. Ele descreve a visita em seu diário e acrescenta no mesmo registro:
 
“Vou ao Clube de Poesia amanhã. Não tenho visto ninguém ultimamente — vida tranquila do tipo sonâmbulo – talvez eu tenha um indício da doença da minha irmã?!”
 
Rose Williams foi diagnosticada com “demência precoce” (como a esquizofrenia era chamada na época) e internada em uma instituição psiquiátrica onde passou o resto de sua vida. Devido ao seu mau estado, em 1943 foi submetida a uma lobotomia pré-frontal bilateral. Sua irmã e seu desequilíbrio emocional inspiraram vários personagens das obras de Williams, incluindo Blanche Du Bois, de Um bonde chamado desejo.
 
Durante a maior parte de sua vida adulta, Williams temeu ter a mesma doença que sua irmã, e usou seus diários para medir, calibrar, quão perto ou longe sua mente estava do desequilíbrio.
 
A expressão “blue devils” aparece com bastante frequência nas anotações do caderno de Tennessee Williams. Essas duas palavras, popularizadas pelos músicos de blues em suas canções durante a década de 1930, tornaram-se um sinal codificado de que ele estava deprimido, triste ou desmoralizado. Era um aviso de que o cachorro preto — como Churchill o chamava — da depressão poderia estar próximo. O dramaturgo registrou por escrito ao longo de sua vida a presença dos visitantes endemoninhados e indesejados: “Um diabinho azul selvagem esteve comigo o dia todo” (31/08/36). “O diabo azul abrandou. Só resta um beliscão no meu calcanhar” (09/11/43). “Os diabos azuis me ameaçaram quando chegamos a Barcelona, ​​mas por enquanto eles se dispersaram” (08/1/54).
 
Outras vezes, quando a depressão já estava presente e colonizava sua mente, a análise tentava ser mais completa. Em 29 de julho de 1951, ele anotou em seu diário:
 
“Finalmente consegui dormir por cerca de duas horas. Acho que há alguma causa psicológica — em vez de física — nessa insônia. Embora eu seja de natureza nervosa, a insônia nunca mostrou essa forma antes. Embora acho que também pode haver alguma hipertensão. Acho que partirei de Veneza amanhã, vejo tudo através de uma névoa de doença. Qual é o caminho para sair disso além daquele que eu não quero tomar? Existe algo mais triste do que lugares exclusivamente dedicados à busca do prazer como este grande hotel ao estilo de Miami Beach?”
 
Naquela mesma manhã (3 da manhã), ele escreve novamente:
 
“Tomei meu primeiro Secconal meia hora atrás e estou bebendo um pouco de uísque. Sinto-me relaxado, mas não estou com sono. Eu me pergunto se com um parceiro de cama essa estranha aflição iria embora. E se eu voltasse para minha casa e minha família? Vou tentar usar minha inteligência para analisar minha vida nesses dias atormentados. Serei razoável e paciente. Vou me comportar como um adulto e não me deixarei levar por um desespero inútil, por mais fácil e tentador que seja.”
 
Em 1969, seu irmão Dakin admitiu Tennessee Williams no hospital psiquiátrico em Saint Louis, Missouri, por três meses para receber tratamento devido o abuso de álcool e outras drogas.
 
Sua vigilância exaustiva sobre a doença mental (sua inimiga íntima) durou até o fim de seus dias. Nas últimas páginas de suas memórias, Williams escreve:
 
“Acho que chegou a hora de refletir se sou ou não um lunático, ou se posso ser considerado uma pessoa relativamente sã. (…) Sanidade e insanidade são, na realidade, termos jurídicos. Não estou ciente de que o agora lendário tenente Calley, um símbolo da brutalidade sem coração que tingiu aquela vala na vila de My Lai (Vietnã) de vermelho com o sangue de aldeões indefesos, de avós a bebês, foi declarado legalmente insano. (...) Fiz um pacto comigo mesmo para continuar escrevendo, pois não tenho outra opção, está tão enraizado em mim como forma de existência e luta, mas provavelmente não entrarei em mais produções teatrais.”
 
Williams tinha então sessenta anos (morreu doze anos depois) e já era um dramaturgo de renome mundial. Suas obras, incluindo Um bonde chamado desejo, À margem da vida e Gata em telhado de zinco quente, foram transformadas em filmes e interpretadas por atores e atrizes como Elisabeth Taylor, Paul Newman e Marlon Brando, o que aumentou sua fama.

* Este texto é a tradução livre de Cuadernos de delicada locura (1), publicado inicialmente aqui, em Jot Down.

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

Boletim Letras 360º #596

Boletim Letras 360º #604

Boletim Letras 360º #603

Rio sangue, de Ronaldo Correia de Brito

Bambino a Roma, de Chico Buarque

Kafka, o uruguaio