Alain Robbe-Grillet: do novo ao cine-romance

Por Adriana Bellamy


Alain Robbe-Grillet. Foto: Arquivo Robbe-Grillet.


 
Amante do esquivo e dos jogos de linguagem, Alain Robbe-Grillet é um dos escritores que renovou os gêneros romanesco e autobiográfico, mas também foi um pesquisador incansável em outros campos como textos críticos, artigos jornalísticos e cinema. Engenheiro agrônomo de profissão, Robbe-Grillet nasceu em Brest a 18 de agosto de 1922 e durante a década de 1950 tornou-se uma figura de destaque na vanguarda literária, especialmente após a publicação de seu segundo romance Le voyeur (À espreita, 1955). Já são bem conhecidas as discussões bizantinas desencadeadas pelo surgimento deste texto e as análises de seus fervorosos defensores, de Roland Barthes, Morrissette ou Blanchot, a Queneau e Bataille. Vários escritores fizeram parte do que ficaria conhecido como o novo romance, que além de Robbe-Grillet incluiu figuras como Michelle Butor, Nathalie Sarraute, Claude Simon e Marguerite Duras.
 
Algumas das características recorrentes desse movimento e seus significados são a escrita fragmentária, a ênfase em objetos de outra perspectiva existencial, a descrição monomaníaca nos antípodas da narrativa herdada pela tradição romanesca do século XIX, cujas exaltações da psicologia da a personagem e o “humanismo trágico” são questionados pelo próprio Robbe-Grillet naquela compilação de textos teórico-jornalísticos que se tornou referência indispensável: Por um novo romance. O principal interesse desse processo de escrita está na organização formal de seus elementos, e não na narrativa em si. Seus romances convertem-se em exercícios teórico-práticos das explorações com a linguagem, sem levantar ou assumir uma função teórica, como ele mesmo apontou: “Não sou um teórico do romance”, frase de abertura desse famoso manifesto, ou melhor, declaração de princípios da criação literária.
 
Não me aprofundarei no contexto romanesco como tal, ou seja, a presença desestabilizadora (até hoje) de Robbe-Grillet, como um gerador de controvérsias no interior da instituição literária que também levou a inúmeras análises de sua vida e obra, ao contrário, interessa-me as rupturas suscitadas por essa nova concepção da narrativa desde os anos 60, dentro da obra cinematográfica com uma dezena de filmes de sua autoria que operam em claro desacordo com o cinema da época, e até mesmo de uma certa perspectiva, o atual. Entre eles se destacam L’Immortelle (1963), Trans-Europ-Express (1966), L’homme qui ment (1968), Glissements progressifs du palisir (1974), Le Jeu avec le feu (1975) ou La Belle Captive (1983). Tal como Marguerite Duras, Robbe-Grillet manteve uma estreita relação com os diretores da Nouvelle Vague francesa, em particular com a sua vertente conhecida como Margem Esquerda (La Rive Gauche), reunida em torno da figura de Alain Resnais. Tanto Duras quanto Robbe-Grillet desde o primeiro contato com esse diretor se aventuram no cinema que desenvolverão ao lado de sua produção literária e crítica. Embora a presença de Duras no cinema continue a suscitar múltiplos ensaios e questionamentos, a crítica tem lidado muito menos com a obra cinematográfica de Robbe-Grillet, com exceção de O ano passado em Marienbad (1961), o filme pelo qual o autor é geralmente conhecido e, embora não o tenha dirigido, foi ao mesmo tempo o início de uma estreita colaboração com Resnais e a gênese de suas criações fílmicas posteriores.
 
Em seus romances e filmes, Robbe-Grillet leva a ideia da narrativa possível a limites insuspeitos e seu traço característico do fragmento como elemento potencial desemboca a um trabalho fértil e vertiginoso de acasos programáticos. Por isso, mais do que pensar uma carreira desenvolvida em vários campos separadamente (literatura, cinema, teoria, jornalismo, pintura, fotografia), seu trabalho resulta em um único projeto, em certo sentido poderíamos concebê-lo como uma espécie de objeto artístico expandido, noção tão em voga no panorama da crítica de arte recente.
 
A escrita como metáfora da obra artística do cineasta, abordagem consolidada desde a nouvelle vague, encontra em Robbe-Grillet uma transição peculiar, pois a experimentação com os mecanismos, as possibilidades, as contradições da linguagem literária, suas preocupações em um sentido formal são transferidas para o meio fílmico. Se fizermos um percurso desde seu primeiro longa-metragem, L’Immortelle (1963), até seu último, C’est Gradiva qui vous appelle (2006) — extremos que se tocam, pois ambos abordam a história de um homem na busca obsessiva por uma mulher com o mesmo nome nos dois filmes L(eïla), que desaparece no quadro de um Oriente imaginado, o primeiro na Turquia, o segundo em Marrocos —, reconhecemos uma série de motivos recorrentes: a suspensão de qualquer sentido narrativo convencional sob um princípio aleatório; sobreposições da narrativa por meio de uma atividade de remontagem, associação livre e derivas ficcionais; personagens com identidades desestabilizadoras e intercambiáveis, personagens arquetípicos marcados apenas por uma simples letra ou sinal, já presentes desde O ano passado em Marienbad com A (Delphin Seyrig) M (Pitöieff) e X (Albertazzi); infinitas espirais de espaço-tempo que tanto intrigaram um Gilles Deleuze em sua série de livros dedicados ao cinema e os volumes sobre a imagem-tempo, entre muitos outros.
 
Cada filme adquire nesse emaranhado sua própria construção móvel e inusitada; entre as minhas favoritas encontra-se o primeiro longa-metragem de Robbe-Grillet que contém a nova narrativa em um duplo movimento: como filme-romance e como filme. Em seu interesse em criar outro gênero que combinasse literatura e cinema, ele escreveu quatro romances cinematográficos que resultaram em quatro filmes: palavra, imagem, cinema, romance, esferas conceituais e criação centrada na semiose do texto, onde a escrita questiona como conceber a expressão em imagens da literatura ao cinema, não na intenção de partir de um texto-fonte para outro texto secundário, mas sim um caminho de volta ao que foi concebido de forma mista desde o início.
 
O filme-romance é um gênero intermediário entre o literário e o fílmico, uma obra que não é uma adaptação literária de um filme, mas um outro tipo de obra, um híbrido (como já havia identificado Marguerite Duras) que só faz sentido na passagem de literatura ao fílmico e vice-versa. O filme-romance fez parte da história do cinema em vários momentos, no primeiro pós-guerra tratava-se de reconstruir a história do filme em uma espécie de adaptação ficcional ilustrada por fotografias. Estimular a curiosidade dos leitores, atualizar o costume do folhetim e também vincular-se a outras formas cinematográficas como o seriado, oferecia a possibilidade de encontrar outras formas de relação entre literatura e cinema, inclusive a releitura de grandes obras da literatura clássica e popular em um formato de romance, até certo ponto espetacular.
 
Mas na década de 1960 esses campos vizinhos sofreram uma transformação básica a partir da colaboração entre os cineastas da nova onda francesa e os escritores do novo romance. Torna-se um gênero por si só e já não é condição necessária ilustrar com fotografias (embora acompanhem esporadicamente o texto), mas sim uma exploração das técnicas cinematográficas dentro dos processos de escrita, das engrenagens da linguagem. No caso de Robbe-Grillet, este filme-romance também se aproximará das funções de um roteiro de filme, mas também não cumpre integralmente nenhum manual ou instruções para sua escrita. É um texto que projeta o filme imaginado, que inclui suas mudanças e relações entre os planos, concebe uma moldura sonora interna e outras indicações, mas se constitui como uma obra literária, um sistema de significados e também varia de acordo com o filme-romance escolhido. Um estado anterior do filme, bem como uma espécie de esquema de criação literária do próprio romancista, serão as principais funções desse novo gênero.
 
Em L’Immortelle, tanto o filme-romance quanto o filme se passam na Turquia, uma encruzilhada real e simbólica de civilizações em perpétuo conflito (assim, referido pelos personagens com vários de seus nomes históricos, Istambul, Constantinopla, Bizâncio...), algo que está subjacente à narrativa, mas que nunca virá à tona. De forma semelhante ao que aconteceu em outras obras de Robbe-Grillet, o contorno narrativo é baseado em personagens que nunca são totalmente identificados pelo espectador, exceto por suas iniciais, na verdade, são nomes em potência de significação ou anagramas: N (Jacques Doniol- Valcroze) chega a Istambul e conhece uma mulher misteriosa, L (Françoise Brion), que desaparece. Em sua busca por várias áreas da cidade e seus habitantes, N descobrirá que ninguém se lembra da mulher; mais tarde ela morrerá em um acidente de carro. Em linhas gerais, essa trama no melhor estilo do filme noir será tudo menos a resolução de um quebra-cabeça ou de um assassinato, e sempre temos a sensação de presenciar uma história que nunca se desenrola com clareza. O espectador fica assim posicionado como um estranho ao filme, pois qualquer fechamento satisfatório da história é suspenso pela produzir de outra lógica que não é linear, mas implícita.
 
Basta analisar o início do filme para perceber esse jogo perpétuo entre sonho, ocultação e desvelamento. Chegamos a uma lendária Turquia em uma primeira sequência de tomadas externas do lugar, seguidas de um primeiro plano do rosto de Françoise Brion em desfoque que aos poucos adquire consistência e nitidez. A impressão inicial de ser uma foto fixa é quebrada pelo leve piscar da mulher, que indica então uma pose estática, semelhantes aos que este personagem terá em vários espaços nas sequências seguintes. Um primeiro plano marcado em sobreposição com persianas que segmentam a imagem do rosto e também aludem à metáfora vertoviana da câmera-olho-espectador, alterna-se com o plano seguinte de um homem, no canto de um quarto de hotel quase vazio, olhando através de uma janela com persianas. Na sucessão desses três momentos e sua composição, ampliam-se as perspectivas do olhar: talvez aquele homem observe a mulher em campo /contracaampo perfeito ou melhor, esse rosto congelado, depois revelado através das persianas, seja uma imagem-memória, instantâneo fotográfico de um de tempo perdido e catalisador da memória ou, uma terceira possibilidade, vê o mundo passar eternamente por aquela janela como se ele fosse o protagonista de Le Voyeur ou La Jalousie (O ciúme, 1957). O olhar subjetivo do homem voyeurista, posição em que o espectador também se encontra, memória de uma experiência passada ou então, perpétuo presente de motivos que se alternarão ao longo do filme, essa estrutura alude ao que Robbe-Grillet já descrevera em “Sobre algumas noções ultrapassadas em relação à obra de Proust”: recompor uma história em benefício de uma arquitetura mental do tempo.
 
Mas para este autor, o filme não nos convida apenas a nos perguntarmos sobre os limiares do olhar: quem narra, quem observa e a quem, ele também o faz a partir das escutas do filme. A trilha sonora não é complementar, mas temática. E, embora não haja narração em off como em O ano passado em Marienbad ou L’homme qui ment, mas sim uma instância de narração inferida, as sobreposições sonoras da voz, o som do rádio, as repetições e variações também são decisivas no filme. Como em Marguerite Duras, o som em todas as suas nuances, misturas e tonalidades torna-se uma preocupação fundamental do cinema de Robbe-Grillet. Assim, o desenho sonoro, ao invés de focar principalmente em diálogos profusos, cria uma textura particular entre a marcação musical e o som ambiente. Na primeira sequência, os travellings são acompanhados por uma canção turca tradicional para nos abrir a paisagem, não só geográfica mas também imaginária, no final e antes de passarmos para o primeiro plano do rosto da mulher, ouvimos um grito em off e o som de um acidente em um automóvel em antecipação ao desenlace fatal. As mudanças então não são reguladas apenas pela montagem visual, mas sonora. Na sequência seguinte, com um som constante como as batidas rítmicas de um projetor, vemos o homem na sala, ele volta o rosto congelado de L para percorrer seis poses estáticas da mulher em vários espaços, a última delas numa sala onde, movendo a câmera para a frente e enganando as persianas que se fecham lentamente, o espectador é devolvido àquele perpetuum mobile (visual e narrativo), o infinito conteúdo na imagem de um fotograma cujo início e fim são os mesmos.
 
Filme-romance, filme-relato, L’Immortelle em seus constantes deslocamentos, literais e metafóricos, entre evocação, devaneio, realidade e cultura, dá conta do grande projeto desse autor condensado nas origens da palavra texto: tecido que o novo romance pretende desvendar e reinventar a partir de outros caminhos de escrita, deslizamento/ desfiamento de imagens-sons que viajam na tela e, por outro lado, conjunção entre as materialidades da literatura-cinema. Um estado do mundo tão sem fundo de certezas quanto seus personagens, sósias multiplicados como os espaços-tempos narrativos, na obra de Robbe-Grillet há uma insistente reflexão sobre o ver/ olhar: afinal somos N, que através de persianas não vê a realidade, mas a condição de possibilidade do próprio olhar, uma imagem que, longe de reproduzir o mundo, à maneira de um documentário realizado, o mostra como aquela imagem por trás de outra imagem, uma imagem ausente, uma imagem-fantasma à Pascal Quignard, o reverso de si mesma e sua eterna vontade de buscar.
 

* Este texto é a tradução livre de “De la nueva novela a la cine-novela: a 100 años del nacimiento de Alain Robbe-Grillet”, publicado aqui, em Confabulario 

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