O fator Wells

Por Christopher Domínguez Michael

H. G. Wells. Foto: Yousuf Karsh


 
Não há dúvida que Herbert George Wells (1866-1946) foi uma das figuras decisivas da primeira metade do século XX e que, precedido por Júlio Verne, moldou, previu e profetizou muito do que seria o presente e o futuro. Dos seus sessenta livros, escritos em quase todos os gêneros, basta lembrar apenas alguns dos títulos de seus romances para medir sua influência: A máquina do tempo (1895), O homem invisível (1897), A guerra dos mundos (1898) e Os primeiros homens na Lua (1901). Quase todas as coisas que surgiram no século passado pareciam dever-lhe a existência, e isso é demonstrado por Sarah Cole, a mais recente de seus exegetas, em Inventing Tomorrow. H.G. Wells and the Twentieth Century (Columbia University Press, 2020). É, segundo ela, o “fator Wells” e ela não é a primeira a considerar esse fator, nem será a última a fazê-lo.
 
Para além dessa tetralogia que marca a transição entre os séculos XIX e XX, Cole se empenha em mostrar que Wells foi um grande escritor, se aquela grandeza de elitismo com que se apresentavam Henry James, Joseph Conrad, D. H. Lawrence, Virginia Woolf, James Joyce e T. S. Eliot, todos anglo-saxões contemporâneos de Wells. Alguns deles eram seus amigos e até seus devotados admiradores, outros seus adversários, mas nenhum ficou indiferente à sua presença porque Wells, segundo Cole, exemplifica esse “outro modernismo”, alheio à alta literatura, seus prestígios e seus círculos, mas não à sua ambição intelectual, nem às suas inovações em prosa, embora tenha sido condenado ao inferno da cultura de massa. Ninguém franze a vista para Orlando (1928), de Woolf, nem despreza essa aventura no tempo como pertencente a um subgênero chamado ficção científica. Mas precisou aparecer um Jorge Luis Borges para Wells ser admitido, e com relutância, em um cânone onde ele não permanece confortável.
 
Dos vitorianos — lemos em Inventing Tomorrow — Wells foi um dos poucos que pareciam dar a mínima para o passado, embora cavando mais fundo, Cole nos lembra que o futuro é muitas vezes um retorno à pré-história, um contínuo espaço/ tempo onde, como sabe o leitor de Eliot, “O tempo presente e o tempo passado/ Talvez estejam presentes no tempo futuro/ E talvez o futuro esteja contido pelo passado. / Se todo o tempo é um eterno presente / Todo o tempo é irredimível.” Para viver essa consciência, não são necessários os Quatro Quartetos na tradução de José Emilio Pacheco; basta deixar a pandemia passar assistindo Outlander ou Dark na Netflix, séries baseadas quase que inteiramente em paradoxos wellesianos.
 
Para se tornar quem foi, temo, Wells herdou algo, viciado ou corrompido, do gênio fundador dos Marx, dos Darwin, dos Freud. Ao contrário dos chamados por Paul Ricoeur “mestres da suspeita” o polígrafo britânico tinha a seu comando aquela técnica que muitos de seus contemporâneos abominavam e ele, na boa lide do século XIX, projetava como o futuro irrevogável da humanidade. Esse “modernismo” de Wells — retorno a Cole — lhe permitiu viajar de Heródoto aos marcianos com a segurança de quem, dono do passado (autor de “Esquema da história” em 1919 e outras histórias curtas e não tão curtas do mundo), ele faz do tempo, o seu tempo.
 
A vastidão de seu conhecimento científico, sua extraordinária inventividade, foi maltratada por suas pretensões de ser um sábio aldeão, ainda mais ridículas por suas, hoje diríamos, dimensões globais. Nas páginas finais de Inventing Tomorrow, Cole luta sem sucesso para nos vender a atualidade wellsiana numa globalização, temo, incompreensível em seus termos. Politicamente incorreto, embora seus futurismos oscilassem entre o otimismo e o pessimismo, de Victor Hugo a Oswald Spengler, digamos, Wells era, paradoxalmente sem mácula, imune à lição do século XX.
 
Ele temia a escravização dos homens sob o domínio das máquinas e calculou a autoinfligida destruição do planeta, mas permaneceu um pensador totalitário, cujas origens no benevolente socialismo fabiano explicam — e não contradizem — sua paixão pelo fascismo, assim como sua admiração por Lênin e Stálin, os ditadores soviéticos que conheceu. Ele não conseguiu convencê-los, junto com os bolcheviques, da errática visão marxista da economia ou da falácia da luta de classes, mas aplaudiu qualquer rebelião das massas posta a serviço do Estado. Muitas vezes se esquece que a poção de Hitler foi chamada de “nacional-socialismo” e que se Wells ou seu ex-amigo Bernard Shaw não encontraram grandes diferenças, em sua ingenuidade de origem fabiana, entre Moscou e Berlim, isso foi corroborado por pensadores anti-totalitários de aquele segundo pós-guerra em cujos primeiros meses o famoso escritor morreu.
 
Um deles, seu compatriota George Orwell, colocou Wells em seu lugar por seu desprezo instintivo pela democracia liberal. Em 1941, Orwell zombou daqueles que, nascidos por volta de 1900, se sentiram obra de Wells como os personagens de A máquina do tempo ou A guerra dos mundos. Orwell argumentou que muito do que Wells havia imaginado havia se tornado realidade na Alemanha nacional-socialista: “a ordem, o planejamento, o Estado como promotor da ciência, o aço, o concreto, os aviões. Tudo isso está lá, mas a serviço de ideias típicas da Idade da Pedra. A ciência luta ao lado da superstição”. Wells, obcecado pelo futuro, era alheio, pré-histórico, ao horrível presente e obsessivo com sua manipulação pelos ditadores.
 
Muito sobrou das boas intenções de Wells, e tudo isso está no irremediável educacionismo guardado nos documentos de todos os governos e de todas as organizações multinacionais: milhões de páginas, talvez necessárias para o bem-estar planetário, mas que são o mais vasto e o mais ilegível de todos os documentos dos arquivos mortos. Seu “socialismo”, extirpadas suas simpatias totalitárias, é mais uma vez um nonsense vitoriano, “o despertar da consciência coletiva da humanidade”, um ecumenismo veementemente anticatólico (uma de suas peculiaridades originais que lhe trouxe o desprezo de G. K. Chesterton) e uma ética em guerra com a imaginação, obra de quem, segundo Conrad, era “o realista do fantástico”.
 
Embora aborde o romance de Wells — misógino e feminista ao mesmo tempo — com a escritora Rebecca West (1892-1983), de quem restou um filho e uma amizade duradoura, o livro de Cole não é uma biografia, mas uma árdua investigação do muro entre alta cultura literária e o “modernismo” popular. Exceto por dois ou três dos romances de sua época prefaciados por Borges, não li muito Wells e duvido que meu caso seja raro atualmente, embora afirme que em sua autobiografia há genialidade desde o título, como costuma acontecer com ele. Qualquer um capaz de chamar seu livro de memórias por Experiment in Autobiography (1934) sabe que qualquer retorno ao passado a partir do presente é altamente incerto.
 
Wells, amado pelo público, pai involuntário do cinema, roteirista de uma falsa invasão extraterrestre graças ao seu semi-homônimo Orson transmitindo no rádio em 1938, amigo de Le Corbusier e, como mostra Inventing Tomorrow, um prosador nada grosseiro, cheio de audácia romanesca, jamais poderia cruzar aquela fronteira. Muito do que antimodernistas de esquerda ou de direita detestam — da Escola de Frankfurt a um Mircea Eliade — é obra de H.G. Wells. Cabe se perguntar se a História, esse eterno presente, não será um pesadelo sonhado pelo mais persuasivo dos falsos profetas, que nos dá sermões de sua sala de visitas vitoriana, antes de desaparecer diante de nossos olhos como “o viajante no tempo”.

* Este texto é a tradução livre de “El fator Wells”, publicado aqui, em Confabulario.

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