O verão em que mamãe teve olhos verdes, de Tatiana Ţîbuleac

Por Sérgio Linard

Tatiana Ţîbuleac. Foto: Mario Gi.



Quando a pretensão é não traumatizar filhos, o melhor caminho é não os ter. Assim dizem os populares, assim escolheu o nosso Brás Cubas. Mas a mãe de Aleksy o traumatizou e só conseguiu ter uma boa convivência com aquele adolescente em um eterno verão. Este romance da autora moldava Tatiana Ţîbuleac persegue, sob a perspectiva do filho já adulto, justamente aquele verão.
 
São as férias escolares; a mãe, que já tem uma relação bastante conturbada com sua única prole, encaminha-se até aquela escola destinada a jovens infratores, órfãos ou com algum “problema” que a sociedade autointitulada “normal” vê como suficiente para isolá-los da vida em sociedade. E aqui, já no começo do livro, entendemos o grau de repulsa que o jovem tinha por sua genitora:
 
“Naquela manhã em que a odiava mais do que nunca, mamãe completou trinta e nove anos. Era gorda e baixinha, burra e feia. Era a mãe mais imprestável que já havia existido. Observava-a pela vidraça da janela, parecia uma mendiga junto ao portão da escola. Eu a teria matado sem pensar duas vezes.”
 
A despeito da falta de credibilidade que narradores em primeira pessoa costumam receber — neste caso agravado pela lacuna temporal entre os acontecimentos e o tempo em que se narra, posto que é o homem já em meia-idade que conta a história do adolescente —, convenhamos que não é motivo de orgulho para um artista bem-sucedido, como é Aleksy, explanar tais sentimentos por sua própria mãe. Os curtos períodos do excerto acima revelam uma tônica pensada porque meticulosamente pausada, com efeitos que intensificam a gradação do sentimento de ódio até o desejo de promover a morte do ser odiado. Um percurso de um narrador que tem consciência dos efeitos de sua disposição do discurso e que, ainda, recorre, à medida que a história avança, a um processo de humanização desta fala, para que tenhamos uma perspectiva de toda a sua jornada de redenção diante da problemática que se apresenta.
 
Ao passo que os curtos períodos constroem essa imagem de alguém com o controle de tudo, os capítulos baseados única e tão somente em versos esparsos de um grande poema metaforizam a face de alguém em busca de sentido; de alguém que recorre ao campo da linguagem predominantemente poética, uma vez que a referencial já não mais consegue alcançar o que se almeja. Não é somente contextualizar. É sentir.
 
E os setenta e sete capítulos do romance estão estritamente dedicados a essa expressão do sentido por meio da imagem. A jornada de redenção, como mencionei acima, é iniciada, como já de costume, por uma doença grave em estado avançado, gerando, no filho, a obrigação de tornar-se cuidador de sua mãe. Ela, por sua via, é mais uma daquelas vítimas que diuturnamente encontramos: mães que não foram preparadas para essa função e tampouco tiveram amparo familiar e conjugal para desempenhá-la. Uma mulher que tenta criar seu filho na base da tentativa versus erro e como resultado atinge, de Aleksy, um pensamento constantemente igual ao já apresentado aqui.
 
Aleksy sofre com alguma condição — aparentemente psicológica — da qual só se sabe que possui dezesseis letras (cabe lembrar que o livro é originalmente escrito em romeno) e é essa condição que faz com que ele esteja na escola dita especial desde a infância. O homem, agora adulto, diz sempre ter almejado receber afeto e um olhar amoroso por parte de sua mãe. E toda a narrativa terá a imagem do olho e deste campo semântico como fio condutor:
 
“[...] Mamãe me fitava com amor.
Esse seu olhar que eu esperara e mendigara a infância inteira e pelo qual eu teria desistido voluntariamente de todas as minhas economias de criança acumuladora —, agora eu o recebia gratuitamente.”
 
Como uma criança que acaba de fazer algo que, no olhar infantil, é inovador e fica a gritar pela atenção dos pais distraídos em conversas com amigos, o narrador deste romance tenta chamar a atenção da mãe para ele. Quando consegue, finalmente, o espaço para elaboração está ocupado pela já habitual repulsa que nutria por aquela mulher. Ainda que Aleksy tente criar uma imagem de alguém que, naquele instante, encantou-se com o sentimento, suas atitudes reveladas no decorrer da história demonstram que o afastamento prevaleceu. A mãe entrega o olhar terno de forma gratuita, mas, nitidamente, até mesmo este preço era muito alto para que, à época, o jovem estivesse disposto a pagar.




E assim a narrativa prossegue, sempre conduzida por olhares alternantes da mãe, mas com a única perspectiva do filho. Tudo se passa, então, em um fatídico verão no interior da França que, como afirma Aleksy, nunca acabou.
 
Do ponto de vista formal, há de se destacar uma primorosa escolha de Ţîbuleac por recorrer a um poema para ser ponto inicial, central e de chegada do romance. O imbricamento dos gêneros e dos versos dentro de capítulos separados criam uma interessante gradação das mudanças humorais de Aleksy em relação à sua mãe, perspicazmente associando essa gradação aos olhos da genitora. À medida que a redenção da relação dos dois começa a acontecer, “os olhos de mamãe” saem de uma posição de erro para uma posição de abertura, como que se passasse a conseguir enxergar a verdejante natureza do mundo ao seu redor, ainda que com lágrimas e com dores.
 
A oportunidade que Aleksy tem de escrever sobre sua história com sua mãe, conduzindo a sua própria mudança de perspectiva, faz com que a posição deste protagonista emule, com todas as ponderações necessárias, a forma que Raskólnikov, de Crime e castigo, não apenas pensa nos fatos ocorridos, mas sim dialoga com eles1. Esse diálogo está justamente nas reflexões dos versos individualizados do grande poema que aparece no encerramento do texto. Tem-se uma multiplicidade versos em gradação de matizes irisadas para demonstrar a mesma multiplicidade de cores que aqueles olhos atingiram naquele inacabado verão, situação essa que se materializa, por exemplo, em um poema sem ponto final.
 
Dos olhos de Aleksy, os responsáveis por conduzir essa história, não sabemos a cor. Contudo, somos introduzidos, por meio deles, aos diversos cortes e interrompimentos que aquele jovem viveu com sua família. O corte por não se encaixar dentro do que a sociedade costuma chamar de “normal”, o corte por ter um pai que o renega e vê nele um potencial criminoso, o corte de uma mãe que o encontra em ato masturbatório e não demonstra qualquer tipo de constrangimento, pelo contrário, evoca um sonoro e perturbador: “Vem aqui comigo”.2
 
Assim, o que somos convidados a ver, neste romance, é a forma como os olhos de Aleksy encararam e decidiram dialogar com os muitos cortes por ele vividos. Essas interrupções, contudo, não fazem com que a narrativa seja fragmentada, até mesmo os versos do já mencionado poema, quando aparecem na forma de capítulos, encabeçam o início de uma mudança de perspectiva ou, também, de uma reflexão sobre o que se dirá a seguir. Tudo é interrompido, menos o eterno verão em que mamãe teve olhos verdes.
 
De mamãe nem mesmo sabemos o nome e concluímos a leitura com um questionamento: ela mudou tanto assim ou foi nossa perspectiva que se condensou com o olhar do narrador à medida que a redenção ocorria? Também cabe questionar se há, de fato, uma redenção, posto que o verão nunca acabou e, assim, o processo nunca se concluiu. Talvez o que conste seja justamente isso: o desajuste contínuo da humanidade a se repetir ad infinitum.
 
É destacável, também, a forma como a narrativa consegue, em um volume de poucas páginas, contar praticamente toda a história de vida de Aleksy, desde momentos de rejeição no nascimento até o presente em que ele decide contar sobre aquele verão. A história avança com pequenas pausas para flashbacks, mas faz isso de forma reduzida, com curtos períodos, parágrafos ou capítulos. Essa organização do discurso ajuda a construir imagens com algum impacto reflexivo e, portanto, que precisam ser cuidadosamente processadas. Como o que se lê é fruto da memória, o tempo entre um verso de página em branco e o capítulo seguinte são cruciais para que se possa absorver a proposição. Isso especialmente porque o narrador, em um parágrafo de seis linhas, por exemplo, apresenta um resumo de seu destino, de sua esposa, e de sua mãe sem ser, no entanto, devorado por uma extrema velocidade. Os pontos finais são usados com muita atenção, como pontos de contato entre o que foi dito, o nosso olhar e a imagem que se espera construir. Entra-se, então, em outro período, com imagens complementares deste grande “poema”, fazendo com que a história deste artista seja um compilado de versos narrativos, em que a fanopeia, criada a partir de olhos verdes, é o grande alvo. Um romance, portanto, ocular e para os olhos; mas não somente.
 
Um romance de uma mãe que tenta mostrar para o filho que o amou como pôde. De um filho que nos convida a olhar para e dialogar com este amor e com seus cortes construtivos e destrutivos. Uma obra que vale cada segundo de nossa atenta mirada. Uma autora que deve estar em nosso radar de atenção.

 
Notas

1 Cf. BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense universitária, 2015.
 
2 O destaque foi mantido conforme aparece na versão do livro a que tive acesso: ŢÎBULEAC, Tatiana. O verão em que mamãe teve olhos verdes. Tradução de Fernando Klabin. São Paulo: Mundaréu, 2021.

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O verão em que mamãe teve olhos verdes, Tatiana Ţîbuleac
Fernando Klabin (Trad.)
Editora Mundaréu, 2011
 

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