Annie Ernaux: entre a vida e a escrita

Por Aloma Rodríguez

Annie Ernaux. Foto: Arquivo Télérama/ Reprodução


 
O primeiro livro de Annie Ernaux que li foi A ocupação¹ e não gostei: não gostei da narradora, me parecia uma narcisista que se deixava levar pelos ciúmes e, para falar a verdade, me parecia um pouco pesada. Terminei o livro e o devolvi à estante: contava 24 anos, tinha me tornado independente recentemente e queria encher minha primeira — e última — estante Billy meio vazia. A ocupação é a história de uma separação: W., de quem a narradora acaba de separar, inicia um novo relacionamento. A imagem da outra mulher invade a vida da escritora, o livro narra a sua luta, a luta para não se deixar ocupada pelos ciúmes. Talvez eu não tenha gostado porque me sentia muito reconhecida, porque temia que o que aconteceu com a narradora acontecesse comigo.
 
Embora eu me lembre qual foi o primeiro livro dela que li e até quem me deu — o escritor Félix Romeo — e quem foi a primeira pessoa que me falou sobre ela — meu irmão, que havia passado um ano em Evreux, Normandia, perto de onde Ernaux nasceu — não lembro qual foi o primeiro livro de Annie Ernaux que gostei. Talvez tenha sido L’Autre Fille [A outra filha], publicado na França em 2011. Li-o primeiro na sua edição original e fiquei impressionada. Assemelhava-se em alguns aspectos a um dos livros que mais me impactaram: Amarillo [Amarelo], de Félix Romeo, publicado em 2008. Em ambos aparecem a culpa e a morte do amigo, no caso de Romeu, e de uma irmã que nunca conheceu, no da francesa. Em ambos, a culpa está ligada ao nascimento da vocação.
 
Alguns anos mais tarde, de férias na França, comprei um livro apenas pelo título — bem, e porque era escrito por uma mulher — Regarde les lumières mon amour (2014). Mas ela ainda não era uma das minhas escritoras vivas favoritas. O livro é um diário sobre as visitas a um supermercado nos arredores de Paris que a escritora manteve durante um ano. Na contracapa, cita-se uma frase de Ernaux: “Ver para escrever é ver de outra forma”. Lembrei-me de um exercício que a escritora de Málaga Isabel Bono fez: recolhia as notas de compra que encontrava e, com base nos produtos que apareciam, imaginava a personagem que os teria comprado e perguntava-se por quê. É um livro raro, aparecido na coleção Raconter la vie, da editora Seuil, ao contrário de quase todos os seus livros, publicados na Gallimard, mas contém a essência da literatura de Ernaux: oferecer um retrato o mais complexo possível de seu tempo.
 
O verdadeiro lugar
 
Annie Ernaux nasceu em 1940 em Lillebonne, na Alta Normandia. Ela e seus pais logo se mudaram para Yvetot, onde eles administravam um quiosque. Quando tinha dez anos, Annie, que solteira se assinava Duchesne, ouviu sua mãe contar a um vizinho sobre uma filha morta: a irmã que ela nunca conheceu morreu dois anos antes de Annie nascer, vítima de difteria. A escritora nunca perguntou a seus pais sobre sua primeira filha e eles nunca lhe contaram nada. A partir dessa descoberta, Ernaux compreende algumas coisas sobre como foi criada: um excesso de proteção ou medo de alguma enfermidade, por exemplo. O segredo de família a leva a reinterpretar sua infância. Mas, acima de tudo, entende que seus pais não podiam arcar com mais de um filho; portanto, para Annie nascer, sua irmã precisou morrer. Ela escreve sobre tudo isso em A outra filha. O livro é em parte uma carta para essa irmã biológica que ela nunca pode chamar de irmã: “Mas você não é minha irmã. Nunca foi. Não brincamos, comemos, dormimos juntas. Eu nunca toquei em você, abracei. Não sei a cor dos seus olhos. Nunca vi você. Você é sem corpo, sem voz, apenas uma imagem plana em algumas fotos em preto-e-branco. Não tenho qualquer memória sua.” E, a respeito dela diz: “Queria mantê-la assim como a recebi quando tinha dez anos. Morta e pura. Um mito.” O que Ernaux descobre neste livro é que essa outra filha não é a irmã morta, mas ela própria: “Você tinha que morrer aos seis anos para eu nascer e ser salva”. Em outras palavras: “Eu vim ao mundo porque você morreu e eu te substituí”.
 
Os livros de Annie Ernaux têm uma base autobiográfica: ela usa suas experiências como matéria-prima para realizar seu projeto, que não é entender-se, contar-se ou explicar a si mesma, mas contar um tempo, um momento muito específico da história e de um lugar. Seus livros têm um desejo documental, de dar conta da vida como ela é. E a vida é o amor, a doença, a educação, a leitura, a morte, a posição social e, também, um corpo e os rastros que a passagem do tempo e das experiências deixam nele. Publicou seu primeiro livro em 1974, Les armoires vides [Os armários vazios], romance sobre uma estudante universitária que fez um aborto. Era autobiográfico, mas era um romance. Na época, ela era professora do ensino médio: seus pais estavam orgulhosos dela, havia alcançado a ascensão social que eles sempre quiseram para a filha. Esse romance foi seguido por Ce qu'ils disent ou rien [O que dizem ou nada] (1977). Ernaux estava presa no que para ela era um inferno conjugal, sobrecarregada pelas exigências de ser mãe, esposa e ter uma carreira profissional, como conta em La Femme gelée [A mulher congelada], seu terceiro romance, publicado originalmente em 1981.
 
A literatura de Annie Ernaux é marcada pelo interesse sociológico, quase etnológico, que a diferencia do que se costuma entender como literatura de si. É uma mistura delicada que combina o uso da memória, das experiências pessoais e do pensamento íntimo com o retrato social. É o que acontece em O lugar, livro com o qual ganhou o prêmio Renaudot em 1984 — mesmo ano quando Marguerite Duras ganhou o Goncourt por O amante — e que abre um novo caminho, uma nova forma em sua literatura. O lugar é um livro sobre seu pai e não é um romance, é o que ela chama de “história auto-socio-biográfica”. O pai de Annie Ernaux morreu dois meses depois que ela passou no equivalente francês de um exame do ensino médio. Ele tinha 67 anos e ainda trabalhava no quiosque Yvetot. Planejava se aposentar no ano seguinte. Este livro não é um relato da complexa relação entre pais e filhos e do choque de gerações, é um retrato neutro, com uma escrita quase plana, mas comovente e cheio de ternura de seu pai e da cultura a qual pertencia: um homem que sempre se dedicou ao trabalho material, cuja linguagem não era elevada nem culta, que em nenhuma das fotos que tirou sai rindo e que quando a filha tinha catorze anos a levou numa excursão a Lourdes. “Como descrever a visão de um mundo em que tudo é caro”, escreve Ernaux. Ela conta que só viu seu avô paterno uma vez, três meses antes de ele morrer, e que sempre que falavam dele diziam que não sabia ler nem escrever. Conta que seu pai usava uma navalha Opinel como único talher e mesmo assim deixava o prato tão limpo que poderia ser guardado sem lavar. Também conta a primeira — e única — vez que seu pai a acompanhou à biblioteca, ou que sempre a levava de bicicleta para a escola. “Nenhuma poesia da memória, nenhuma trapaça jocosa. A escrita plana vem naturalmente para mim, da mesma forma que eu costumava escrever para meus pais para contar as principais novidades”, escreve Ernaux. E assim, com esse estilo plano, documental, quase inventariado, chega ao emocionante e ao comovente sem que isso seja o objetivo principal.
 
O outro personagem fundamental nos livros de Ernaux é sua mãe. Escreve sobre ela em Une Femme [Uma mulher] (1987) e Je ne suis pas sortie de ma nuit [Eu não saí da minha noite] (1997). Ela se afastou de seus pais na adolescência. Além do previsível conflito geracional, outro surgiu entre Annie Ernaux e seus pais: a diferença de classe. Ernaux já era uma burguesa, enquanto seus pais apenas aspiravam a ser. E mesmo sendo o que eles sempre quiseram para ela, a ascensão social, isso os mantinham separados. Uma mulher é um retrato quase cubista da mãe, porque contém todos os seus lados. Ernaux escreve:
 
“Quando escrevo, vejo tanto a mãe ‘boa’ quanto a ‘má’. Para fugir desse balanço que vem da minha infância mais distante, procuro descrevê-la e explicá-la como se fosse outra mãe e outra filha. Assim, escrevo da forma mais neutra possível, mas algumas expressões (“que infortúnio te acontece!”) não são tão neutras para mim quanto seriam outras, abstratas (“rejeição do corpo e da sexualidade”, por exemplo). No momento em que me lembro delas, tenho o mesmo sentimento de desânimo de quando tinha dezesseis anos e, fugazmente, confundo a mulher que mais me marcou na vida com aquelas mães africanas que seguram os braços das filhas nas costas enquanto a parteira corta o clitóris.”
 
A mãe de Annie Ernaux morreu em 1986, de Alzheimer e câncer. Eu não saí da minha noite é o diário que a escritora manteve desde o início da doença da mãe, em 1983, até sua morte. É um tratado insolente sobre degeneração física e mental e um retrato cru da relação mãe-filha e como essa degradação a altera. Também pode ver a inversão de papéis: à medida que a doença progride, a mãe de Ernaux parece adotar o papel de uma criança, e Ernaux tem que cuidar da mãe: lavá-la, pentear o cabelo, alimentá-la, trocar as fraldas. O envelhecimento da mãe é também um anúncio do que será o da filha. Tem o estilo de todos os seus livros: neutro, como um inventário de situações e histórias. Mas é profundamente humano e, novamente, a ternura e a beleza aparecem inesperadamente.
 
Além desses livros, Ernaux escreveu sobre seus pais em seu primeiro romance, Os armários vazios (1974), aqui em chave de ficção, e em A vergonha (1997), onde retornou a um episódio de sua infância que a obcecou: o dia em que seu pai estava prestes a matar sua mãe.
 
O uso da fotografia
 
Uma das coisas que diferencia Ernaux de sua mãe, que foi sua modelo até a adolescência, é sua atitude em relação ao sexo. Na verdade, é uma questão geracional. A jovem Annie queria se apaixonar e adormecer nos braços de seu amor, queria desfrutar do sexo e se entregar. Sua primeira decepção veio no verão de 1958, como conta em Mémoire de fille [Memória de menina] (2016). Era a primeira vez que saía da casa dos pais. Era jovem, mimada, uma filha única superprotegida. Ia passar o verão trabalhando como monitora em um acampamento. Na primeira noite teve uma experiência desagradável que marcou para sempre sua entrada no mundo do sexo e das relações com os homens. Diante das provocações de seus pares, cresce nela o desejo de se encaixar socialmente e a necessidade do calor do corpo masculino. A garota do verão de 58, como Ernaux chama a garota que ela já foi, estava perdida. No final daquele verão, Ernaux começa a universidade em Rouen, sua menstruação é suspensa e ela lê o livro que mudará sua vida, O segundo sexo, de Simone de Beauvoir. Essas memórias são um relato iniciático da entrada no sexo e na formação intelectual. Também conta como descobriu quem queria ser. É curioso que tenha voltado àquele verão depois de tanto tempo, principalmente depois de ter escrito A mulher congelada (1981), sobre casamento, vida conjugal e a necessidade de fugir das obrigações de esposa e mãe para ter sua própria carreira intelectual, ou O acontecimento (2000), onde conta como fez um aborto em 1963, quando ainda era ilegal — “como sempre, era impossível determinar se o aborto era proibido porque era errado, ou se era errado porque era proibido” —, e o que ela assumiu como “acontecimento” na forma como seu entorno a via. Fala de Memória de uma menina como “o texto sempre a ser escrito. Sempre adiado. O vazio inqualificável”. Escreve: “A ideia de morrer antes de escrever o que eu tenho chamado de ‘a garota de me obceca58’ há muito tempo”.
 
“Do prazer sexual eu esperava tudo, além do prazer em si. O amor, a fusão. O infinito, o desejo de escrever. O melhor que me parece, do que consegui até agora, é a lucidez, algo como uma sensível visão livre de sentimentalismo”, escreve em A ocupação. Sobre suas relações com os homens escreve em vários livros: Paixão simples (1991), Se perdre [Perder-se] (2001) e L’Usage de la photo [O uso da fotografia] (2005). Mas do que Annie Ernaux diz quando escreve sobre sexo? Fala do corpo, sim, do físico, que o ato sexual é uma forma de nos amarrarmos à realidade e que o sexo é a prova mais confiável de que estamos vivos. É por isso que em O uso da fotografia, co-escrito com Marc Marie, a história de seu relacionamento escrita a partir de fotos de pós-amor, a doença está constantemente presente: Ernaux estava em tratamento contra um câncer de mama. O amor e a doença; a morte sempre à espreita e o sexo como prova de vida.
 
Outra coisa que este livro compartilha com outros de Ernaux é o uso de fotografias. Nem sempre aparecem reproduzidas com o texto, mas as descrições são frequentes: em A outra filha, em Memória de uma menina, ou em O lugar. Mas se destaca especialmente em Os anos (2008), com o qual ganhou o prêmio Marguerite Duras e o prêmio de Língua Francesa. Os anos abrange seis décadas de história francesa e é um dos projetos em que essa fusão de autobiografia, sociologia e história funciona com mais clareza. De inspiração à Perec e construído a partir da descrição de fotografias, o livro combina a história da vida de Ernaux com a história de um momento para “salvar algo do tempo que nunca mais existirá”. Em sua obra, a memória é importante, e nela os livros de Annie Ernaux lembram em parte os de Patrick Modiano: ambos olham para o passado, ambos trabalham por obsessão e compartilham aquele estilo documental quase frio; ambos contam a história da França.
 
Escrever como uma faca
 
Os livros de Annie Ernaux têm outra característica em comum: seja qual for o assunto — seus pais, a classe social, o inferno conjugal, o despertar para a idade adulta, o sexo, a velhice, a doença, a história recente — eles sempre falam sobre a escrita: são os tipos de livros que contam eles mesmos e o processo pelo qual eles foram feitos. Falem sobre o que falar, os livros de Annie Ernaux tratam sobre escrever e como estão relacionadas a escrita e a vida. “Sei recentemente que o romance é impossível. Para dar conta de uma vida submetida à necessidade, não tenho o direito de ficar do lado da arte primeiro, nem de tentar fazer algo ‘emocionante’ ou ‘comovente’. Reunirei as palavras, os gestos, os gostos de meu pai, os aspectos mais marcantes de sua vida, todos os sinais objetivos de uma existência que também compartilhei”, escreve em O lugar. “Quando escrevo todas essas coisas, escrevo o mais rápido que posso (como se estivesse mal), e sem pensar nas palavras que uso”; “Desde que decidi contar a vida dele, não posso mais escrever depois das visitas”, diz em Eu não saí da minha noite. “As coisas acontecem comigo para que eu possa contá-las. E o verdadeiro propósito da minha vida talvez seja apenas isso: que meu corpo, minhas sensações e meus pensamentos se tornem escrita”, escreve em O acontecimento. Em A vergonha: “Talvez a história, cada história, torne normal qualquer ato, mesmo o mais dramático”. “Não espero que a escrita me forneça temas, mas sim estruturas desconhecidas de escrita. Este pensamento: ‘Só quero fazer os textos que só eu posso fazer’, significa textos cuja própria forma é condicionada pela realidade da minha vida. Jamais poderia prever o texto que estamos escrevendo. Veio da vida”, escreve em O uso da fotografia. “Eu não escrevo porque você está morta. Você morreu para eu escrever, essa é a grande diferença.” A ocupação começa assim: “Sempre quis escrever como se não fosse estar lá quando publicassem o que escrevi. Escrever como se eu fosse morrer e não houvesse mais juízes. Embora possa ser uma ilusão acreditar que o advento da verdade depende da morte.” Em Memória de menina: “Uma suspeita: não quis, às escondidas, desdobrar aquele momento da minha vida para experimentar os limites da escrita, levar ao extremo a luta contra a realidade? (Chego a pensar que meus livros anteriores são apenas aproximações, vistos deste ponto de vista.)”
 
Há um livro-entrevista publicado em 2003, L'écriture comme un couteau [A escrita como uma faca], uma conversa com Frédéric-Yves Jeannet, em que ela fala sobre seu estilo, suas influências e sua maneira de ver a literatura e o ofício de escrever.
 
Em 2011, a coleção Quarto, de Gallimar,d reuniu em um só volume uma seleção de fotografias de Ernaux, fragmentos de seu diário íntimo e uma seleção de seus livros e outros textos dispersos. O livro tem um título esclarecedor, Écrire la vie [Escrever a vida]. Ernaux explica no prólogo: “Me veio de repente, como uma evidência: escrever a vida. Não a minha vida, nem a vida dele, nem mesmo uma vida. A vida, com os seus conteúdos que são os mesmos para todos mas que cada um vivencia individualmente: o corpo, a educação, a pertença e o estatuto sexual, a trajetória social, a existência do outro, a doença e o luto.” Pouco depois, explica: “Não procurei escrever para mim mesmo, fazer da minha vida uma obra: usei-a, os acontecimentos, geralmente ordinários, que a marcaram, situações e sentimentos que conheci, como uma questão a explorar para captar e atualizar algo da ordem de uma verdade sensível. Sempre escrevi tanto de mim como fora de mim, o ‘eu’ que circula de livro em livro não é atribuível a uma identidade fixa e sua voz é atravessada pelas outras vozes, parentais, sociais, que nos habitam.” Por isso os livros de Ernaux são especiais: conta uma história individual, íntima e concreta, ambientada em um tempo e lugar específicos, o que permite a identificação, pois são comuns aquelas experiências que conta em detalhes e com esse estilo seco.
 
Annie Ernaux mantém um diário íntimo desde 1963, que às vezes usa para seus livros. Um dos fragmentos recolhidos em Écrire la vie diz: “A escrita não substituiu o amor para mim, mas algo maior que o amor ou a vida”.

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Notas da tradução
1 Todos os títulos referidos no texto diretamente em língua portuguesa são os que já possuem tradução no Brasil. Os demais são referidos primeiro pelo título original seguido entre colchetes do título possível no nosso idioma.

 
* Este texto é a tradução livre para “Annie Ernaux. Entre la escritura y la vida”, publicado aqui, em Letras Libres

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